quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

O caminho indicado pelo GPS não parece ser difícil.

Na cidade de Trindade, viro num cruzamento e vou subindo. No entanto, a estrada de alcatrão tornou-se, progressivamente, numa de terra e pedras e cada vez mais estreita. Continuo a subir, já não faltam muitos quilómetros, por entre gente de catana na mão, outros a trabalhar a terra, senhoras de alguidares e baldes na cabeça.

Para me sentir um pouco mais confortável (se tal fosse possível nesta circunstância), resolvo confirmar com um senhor que, simpaticamente, me diz que estava quase na Roça Saudade. Quer dizer, até já estava nos terrenos da dita mas os edifícios são mais acima. Continuo, em primeira, pela estrada difícil até passar, com muito jeito, ao lado de duas senhoras que lavavam louça em alguidares, e vou desembocar a uma espécie de praça.

Sigo, devagar, olhando para os dois lados, aliás, para todos os lados sem, no entanto, conseguir identificar o local onde vou pernoitar. A pequena praça tem uma estrada empedrada, ladeada, ao fundo à esquerda, por um muro alto, que deduzo ser o da roça. Sigo ao longo do muro, procurando uma entrada e, pouco depois, desemboco numa estrada alcatroada, em óptimas condições. Olho para o GPS com vontade de o estrafegar: bastava ter feito a viragem em Trindade no cruzamento seguinte e ter-me-ia poupado mais uma aventura de condução todo-o-terreno.

Descoberta esta estrada, por descobrir a entrada para a roça. Faço o percurso inverso e, quase a chegar novamente à pequena praça, vejo um portão velho entreaberto e gente lá dentro: aproveito para perguntar. O miúdo que se prontifica a ajudar não reconhece a Pousada da Roça Saudade. Até que me pergunta se tenho uma imagem. Mostro-lhe o email de confirmação da reserva, que acaba por ser suficiente. Entra pela porta mesmo ao lado das senhoras que continuam a lavar a louça e só então reparo no letreiro da Casa Museu Almada Negreiros. Está virado na direcção de quem vem da estrada principal e não do caminho tortuoso que fiz, por isso não tinha reparado.

Lá de dentro sai um funcionário, passados alguns minutos, que parece algo perplexo a olhar para o email de confirmação. Mais tarde fico a saber que é conhecido por Mola, depois de me dizer o nome do qual, entretanto, me esqueci. Mostra-me a Casa Museu, a estátua do Almada na entrada, a pequena divisão com peças de artesanato e réplicas de gravuras, um poster da exposição da Gulbenkian em 2017. Mais à frente, mostra-me a ainda mais pequena divisão que guarda alguns livros velhos, gastos, que foram coleccionando.

A pousada fica do outro lado da rua, onde as senhoras continuam a lavar, subindo umas escadas de pedra, que vão dar a um portão de correr e um pequeno jardim. Lá em cima, são três os quartos que dão para uma sala comum ampla, com uma enorme varanda de onde se avista a cidade, lá em baixo, à beira-mar.

A construção do espaço terminou há poucos meses. As paredes estão cheias de gravuras e de citações do Almada: “o Dantas cheira mal da boca”, “ Morra o Dantas, morra pim”. Nas mesas de apoio aos sofás e cadeirões, vários livros do e sobre o Almada.

Passada talvez uma meia-hora, surge o dono do estabelecimento. Pede desculpa por não ter estado para me receber. Diz-me que houve uma série de cancelamentos de última hora das reservas, por causa de um incidente: uma manifestação religiosa terminou em protestos violentos e houve uma morte. Assumiu que eu iria também cancelar. Falamos um pouco. Tem uma ideia muito clara e lúcida do que quer para aquele espaço. Dou-lhe os parabéns, digo-lhe que está muito bem conseguido. Depois aconselha-me a ir a Monte Café (ensina-me um atalho) e à cascata a pé. É dos poucos que me incentiva a passear e visitar a comunidade local.

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