segunda-feira, 31 de março de 2014

L'hiver c'est les autres

Inverno e inferno confundem-se. Especialmente para quem tenha nascido numa língua germânica, onde o som do “v” é o do “f” – tive um professor que, mesmo depois de se esforçar para não cometer o erro, pedia vacas quando faltavam talheres nas mesas de restaurantes. Para quem tenha nascido numa língua latina é só mesmo porque a chuva já irrita.

domingo, 30 de março de 2014

Rules of engagement

Foi quando se apercebeu que até para quebrar regras é preciso regras que percebeu que não existe quebrar regras.

sábado, 29 de março de 2014

Já escrevi isto amanhã

Estou a ler o quinto livro de crónicas do António Lobo Antunes antes de ler o quarto (vá-se lá saber). Mas já ouvi o quarto livro pela voz do próprio escritor - traz um CD oferta com algumas crónicas lidas por ele. Dez faixas de cinco, seis, sete minutos. É uma sensação estranha ter o "senhor" António a ler-me e a ler-se ao mesmo tempo (ler-me-se? ler-se-me?).

sexta-feira, 28 de março de 2014

Hexagonal

«O Júlio começa sempre os telefonemas da mesma maneira
- Como estás tu?
ou seja, a pergunta mais difícil de responder que conheço. Nunca sei como estou. Estou hexagonal. Estou cor de laranja. Estou chato como a potassa para mim mesmo. Faz-me uma pergunta menos complicada, Júlio.»

Quinto livro de crónicas, António Lobo Antunes

quarta-feira, 26 de março de 2014

terça-feira, 25 de março de 2014

Rien ne va plus

Era extremamente educado e delicado com toda a gente. Demasiado até, de uma forma quase pegajosa. Não era obviamente porque respeitasse os outros a esse ponto. Nada disso. Tinha uma visão pragmática das boas maneiras, via-as como uma ferramenta, um instrumento – afinal, a cordialidade facilita a vida, o dia-a-dia. E, nesse sentido, essa educação e essa delicadeza eram, no fundo, um profundo desrespeito.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Perguntam-me se me dói o dente e a verdade é que não sei dar uma resposta decente.

Em rigor, o dente não me dói. Em rigor, o dente não me pode doer porque ele já não existe. E, no entanto, doer doer, até me dói. Qualquer coisa. Pareço aquelas pessoas que, depois de amputadas, continuam a sentir – e a ter dores – no zona onde estava o membro que perderam. Dores do membro fantasma. É isso, tenho um dente fantasma. E anos de terapia pela frente.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Ou está sentado à secretária ou à entrada a fumar um cigarro logo de manhã.

Tem sempre uma cara carregada. Passo por ele – sou sempre eu que passo por ele, está sempre antes de mim – e cumprimento-o. Às vezes demora um pouco mas responde sempre com um bom dia longo, com os i’s arrastados pela voz de fumador
Bom diiiiiia
que soa tremendamente forçado. Às vezes apetece-me não lhe dizer nada – acho que gostaria não ter que responder a mais outra pessoa, deve passar a manhã toda a dizer
Bom diiiiiia
Percebo que não tenha vontade de dizer mais uma vez. Mas se não o fizesse seria eu o mal-educado que não fala às pessoas. Depois imagino se, não situação contrária, me pouparia de ter que lhe responder, assumindo o ónus da má-criação. E acabo a pensar na forma como digo bom dia.

terça-feira, 18 de março de 2014

sábado, 15 de março de 2014

Voice leading

Escreve cor com acento circunflexo
Côr
Em maiúsculas
CÔR
Escreve sempre em maiúsculas, uma caneta velha e suja, um bocado de papel que improvisou. Escreve de uma forma esquemática, com muitas alíneas e pontos e setas. Fala de notas estáveis e das extensões
Daí a cor
E de repente só consigo pensar naquele acento circunflexo que serve para distinguir duas palavras, dois significados diferentes, aquela em que ele estava a pensar – cor de cromático – e a que vem de coração, por exemplo
Saber de cor
Que no fundo pronunciamos
Cór
Mas também se escreve sem este acento. E de repente estou a pensar se também escreverá este acento, deveria usar se usa o circunflexo no outro caso. E imagino-o a escrever também essa palavra, também em maiúsculas com uma caneta velha e suja num bocado de papel improvisado.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Bula

Pode ser papal ou vir dentro das caixas dos medicamentos. Das duas uma: ou tomar os medicamentos implica fé ou a fé tem uma componente terapêutica.

terça-feira, 11 de março de 2014

C'est qu'ils sont fous, ces romains

É difícil de perceber como é que os italianos conseguem comunicar entre si usando um telefone – con le mani, já dizia o outro. Videochamada, facetime, tudo invenções de enorme valor acrescentado.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Anleitungen

Explica a um amigo comum como costuma escrever textos. Tem o método perfeitamente estruturado, escalpelizado na cabeça, um processo de quatro fases (acho que eram quatro). Acrescenta
O Daniel também deve saber
E eu quase não digo nada senão
Depende
mas não preciso concretizar porque de seguida começa a descrevê-los sucintamente e a conversa segue para outro rumo.
E eu fico a pensar como não tenho processo. Ou melhor, tenho mas são tão distintos.

Há uns que começam só por ter a primeira frase. E depois vão prosseguindo, ganhando estrutura à medida que são escritos, ganhando vida à medida que me explicam qual é a estrutura que devem ter. Há outros que começam pela punchline e aí é preciso andar para trás, é preciso mostrar ao texto qual a estrutura que ele deve ter, como é que deve crescer. É quase como reverse engineering, por forma a chegar ao início que dá origem àquele final que queremos.

Há uns que saem bem, perfeitos, em cinco minutos e que quanto mais tempo se perde com eles pior é: quanto menos intervenção, melhor. E outros que levam anos (décadas!) a ser escritos: de cada vez que se abre o ficheiro acrescenta-se qualquer coisa, por muito pequena que seja, e mesmo assim não chega, e mesmo assim não é ainda aquilo.
Método? Não, métodos. Por exemplo, este texto é daqueles que tinha início e não tinha fim e que não saiu bem à primeira, precisou de alguns dias.

domingo, 9 de março de 2014

The whole nine yards

O aspirador sentia-se muito abaixo na hierarquia electrodoméstica. Achava que a sua função – sugar pó e porcaria e guardar tudo dentro de um saco – estava aquém do seu potencial. O aspirador aspirava a mais, tinha grandes aspirações.

quinta-feira, 6 de março de 2014

quarta-feira, 5 de março de 2014

Macacada

Não tenho nada contra a participação de pequenos países da Europa (ou qualquer outro continente) em competições desportivas. Já estamos habituados, por exemplo, a ver Andorra alinhar com professores e carteiros, São Marino também não é estreia e até o Liechtenstein devia estar na nossa memória pelas piores razões. Mas confesso que não consigo deixar de achar rebuscado ver Gibraltar no grupo D de apuramento para Europeu de 2016 em França. É claro que me podem responder que não é muito diferente das Ilhas Faroé que também por lá andam – e eu já tinha dado por isso em competições anteriores. O rochedo nunca tinha visto. Vai jogar com a Alemanha. Pena não ter calhado num grupo com a Espanha e a Inglaterra.

terça-feira, 4 de março de 2014

Não sabia que guardava isso tudo.

Não sabia que estava tudo dentro dele, algures, numa gaveta, num buraco. Sem dar por isso. Por isso no momento inicial em que, de repente, tudo começou a saltar cá para fora incontrolavelmente, ficou atónito. Uma surpresa. Primeiro não teve reacção. Depois reagiu tentado acabar rapidamente, bruscamente. Ficou incomodado, ficou quase chateado por não conseguir pôr um fim àquilo, por não conseguir fechar novamente a porta e pôr as coisas no lugar devido, na tal gaveta, no tal buraco e regressar ao normal. Como se quisesse varrer todo o lixo novamente para debaixo do tapete de onde tinha saído. Deu por si envergonhado: viu-se exposto, aberto, retalhado. Translúcido. Imaginava os outros a olhar para si – a olhar através de si – a verem tudo e, ao mesmo tempo fingindo, à sua frente, não ver nada. E depois comentando uns com os outros nas suas costas. E então já não valia a pena, deixou a frustração instalar-se progressivamente. A irritação essa ganhou uma forma diferente: uma irritação surda e rancorosa. Uma irritação que guardou só para si – numa gaveta num buraco. Sem dar por isso.

segunda-feira, 3 de março de 2014

O comer e o coçar está no começar

Agassi tem um sorriso enorme estampado na cara. Não esconde.
I’m so excited I’m winning!
Sampras sorri desarmado, inclinado para a frente na posição de receber o serviço. O púbico ri. O comentador engana-se, jogaram em 2001 no US Open mas pela última vez num grande Grand Slam foi a final do ano seguinte que o Sampras ganhou – que forma de arrumar a raquete! O Agassi acrescenta
15 years too late
Está a arredondar.

Print screen

O mundo está dividido entre quem diz “de vez e quando” e “de quando em vez”.

sábado, 1 de março de 2014

Em seara alheia

O mais difícil de admitir não são as nossas mentiras. São as nossas verdades.