quinta-feira, 30 de abril de 2020

Exclusão alimentar

Vegetariano, ficou ofendido quando descobriu que o faqueiro apenas tinha talheres específicos para refeições de carne e de peixe.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Vai para baixo

Tinha tanto azar que, quando chegou a sua vez de apanhar o elevador-social, deflagrou um incêndio e o aparelho imobilizou-se no rés-do-chão.

terça-feira, 28 de abril de 2020

Metade

Acusou-o de ser um misógino. Respondeu-lhe que só tinha percebido metade: na verdade era um misantropo, pelo que à misógina faltava ainda somar a misandria.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Droga

«Et de fait, l'amour de Swann en était arrivé à ce degré où le médecin et, dans certaines affections, le chirurgien le plus audacieux, se demandent si priver un malade de son vice ou lui ôter son mal, est encore raisonnable ou même possible.»

À la recherche du temps perdu, Marcel Proust

domingo, 26 de abril de 2020

Narrativa

No título da notícia, há uma referência à narrativa oficial do governo chinês ao combate há pandemia. Como é expectável, trata-se da possível discrepância entre a forma demasiado rosada como as autoridades estarão a comunicar o processo e o regresso à normalidade e aquilo que verdadeiramente aconteceu no local.

Há uns tempos, um amigo chamou-me a atenção para o emprego que, hoje em dia, se faz, amiúde, da palavra "narrativa". Da mesma forma que, neste exemplo, o governo chinês tem uma narrativa (que pode ser mais abrangente do que o episódio de combate ao Covid-19), há tantas outras narrativas. A esquerda e a direita têm as suas narrativas, as religiões têm as suas narrativas. Outro exemplo: a narrativa (ou uma das) deste governo PS é que pôs fim à austeridade, algo que é contestado por outros partidos e sensibilidades políticas. Até as pessoas que acreditam que a Terra é plana tem a narrativa delas: acreditam que a Terra é plana.

O termo "narrativa" remete-me, de forma quase automática, para uma carteira de sala de aula, que eu ocupava na pré-adolescência. A disciplina é, naturalmente, português, na altura em que abordámos as particularidades deste tipo de texto, os seus elementos - acção, tempo, personagens, narrador, etc.. Lembro-me (surpreendentemente) relativamente bem da professora desta disciplina: costumava insistir, com alguma veemência, na forma como avaliávamos se o narrador era participante ou não-participante: "entra na história...? Mas bate à bota e pergunta "posso entrar?", é isso?".

Em si, narrar é contar, descrever, relatar algo e esse algo pode ser a realidade. Intuitivamente, reservo o verbo "narrar" para aquelas histórias que os anglo-falantes definem como "stories", para distinguir de History, e que tem um equivalente (horripilante) no novo acordo da língua portuguesa sob a forma de "estórias". Ou seja, associo "narrativa" a ficção. Por isso, parece-me inadequado quando se pretende narrar a realidade: é tratá-la como se fosse uma história (estória).

Há o espaço para a subjectividade da interpretação daquilo que é: será um sucesso ter apenas o número de vítimas mortais registado oficialmente, ou será um desastre termos todos estes falecidos contabilizados? Seguramente haverá uma narrativamente para as posições, assim como inúmeras outras para outras posições intermédias ou mais extremadas. Mas o ponto é esse: mesmo em face do mesmo, é uma posição sobre o que significa.

Donde, como sugestão de resolução deste profundo dilema: se fizer sentido, basta substituir a palavra "narrativa" por "opinião", "teoria" ou "hipótese". Porque, normalmente, não é mais do que isso: é uma forma de ver e interpretar a realidade. Certo que, em alguns casos, estamos claramente no campo daquela ficção das história (estórias): por exemplo, no que concerne à hipótese/teoria/opinião que defende que a Terra é plana. Excluindo esses casos da mais obtusa negação da realidade, a troca parece funcionar bem.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Love in an elevator

Toda a gente sabe identificar uma boa música de elevador. Já música de elevador-social parece ao alcance de poucos.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Prisão domiciliária - 43º dia

Ao fim de algum (bastante) tempo, a perspectiva de regresso à normalidade quase parece desencadear agorafobia.

sábado, 18 de abril de 2020

Prisão domiciliária - 39º dia

Pior do que estar fechado em casa é estar fechado em casa a gramar com a música pindérica que algum vizinho resolveu pôr aos berros. Já dizia o outro: l'enfer c'est les autres.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Infinitivar

Dizer que o Secretário de Estado da Saúde por vezes, fala assim, ou seja, inicia as frases com um verbo no infinitivo.

Realçar que não é o único, é uma prática que se verifica em diferentes contextos,

Acrescentar que é bastante recorrente notório na televisão, nos telejornais, especialmente nos casos de jornalistas que fazem directos.

Indicar que não dei conta quando quando começou.

Agradecer ao Ricardo Araújo Pereira, que foi quem me despertou para o fenómeno, referindo-se às pessoas que dizem frases que podem, genericamente, começar com a expressão "grande chefe índio"

Expressar, nesta fase, alguma incompreensão: a que se deve esta renitência em conjugar verbos? Tratar-se-á de uma moda que ninguém sabe de onde brotou? Será, pura e simplesmente, preguiça?

Enfatizar que é um hábito um bocado ridículo.

Pedir que parem com esta parvoíce e voltem a conjugar.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Mi-voix

«Dans la chambre voisine, j'entendais ma tante qui causait toute seule à mi-voix. Elle ne parlait jamais qu'assez bas parce qu'elle croyait avoir dans la tête quelque chose de cassé et de flottant qu'elle eût déplacé en parlant trop fort, mais elle ne restait jamais longtemps, même seule, sans dire quelque chose, parce qu'elle croyait que c'était salutaire pour sa gorge et qu'en empêchant le sang de s'y arrêter, cela rendrait moins fréquents les étouffements et les angoisses dont elle souffrait»

Du côté de chez Swann, Marcel Proust

terça-feira, 14 de abril de 2020

Prisão domiciliária - 35º dia

É complicado quando se manda alguém à merda (ou qualquer outro sucedâneo) e a pessoa pode alegar o actual enquadramento legal excepcional para não poder realizar a deslocação.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Mártir

«Es la historia real de un prisionero republicano que fue fusilado en los primeiros días de la guerra civil ela la prisión de Ávila. El pelotón de fusilamiento lo sacó de su celda en un amanecer glacial, y todos tuvieron que atravesar a pie un campo nevado para llegar al sitio de la ejecución. Los guardias civiles estaban bien protegidos del frío con capas, guantes y tricornios, pero aun así tiritaban a través del yermo helado. El pobre prisionero, que sólo llevaba una chaqueta de lana deshilachada, no hacía más que frotarse el cuerpo casi petrificado, mientras se lamentaba en voz alta del frío mortal. A un cierto momento, el comandante del pelotón, exasperado con los lamentos, le gritó:
-Coño, acaba ya de hacerte el mártir con el cabrón frío. Piensa en nosotros, que tenemos que regresar.»

Es escándalo del siglo, Gabriel García Márquez

sábado, 11 de abril de 2020

Ao prognatismo mandibular também se chama mandíbula Habsburgo.

A associação é devida à incidência do fenómeno naquela família, fruto da prática generalizada de endogamia à qual, para além desta evidente manifestação física, também se atribuíram alguns casos de demência ou loucura. Acaso não existissem mais razões para evitar regimes monárquicos, esta é uma boa razão, de cariz biológico para não se deixar governar por pessoas descendentes de várias gerações de consanguinidade.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Su hombre

«En todo caso, y aun en los tiempos más crueles del invierno, Nicolás Guillén conservaba en París la costumbre muy cubana de despertarse (sin gallo) con los primeros gallos, y de leer los periódicos junto a la lumbre del café arrullado por el viento de maleza de los trapiches y el punteo de guitarras de los amaneceres fragosos de Camagüey. Luego abría la ventana de su balcón, también como en Camagüey
, y despertaba la calle entera gritando las nuevas noticias de la América Latina traducidas del francés de juerga cubana.
(...)
De modo que una mañana Nicolás Guillén abrió su ventana y gritó una noticia única:
- Se cayó el hombre!
Fue una conmoción en la calle dormida porque cada uno de nosotros creyó que el hombre caído era el suyo. Los argentinos pensaron que era Juan Domingo Perón, los paraguayos pensaron que era Alfredo Stroessner, los peruanos pensaron que era Manuel Odría, los colombianos pensaron que era Gustavo Rojas Pinilla, los nicaragüenses pensaron que era Anastasio Somoza, los venezolanos pensaron que era Marcos Pérez Jiménez, los guatemaltecos pensaron que era Castillo Armas, los dominicanos pensaron que era Rafael Leónidas Trujillo, y los cubanos pensaron que era Fulgencio Batista. Era Perón, en realidad.»

El escándalo del siglo, Gabriel García Márquez

quinta-feira, 9 de abril de 2020

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Parece-me estranho quando alguém manifesta acreditar em coisas como a lei da gravidade ou que a Terra é redonda.

Ambos são factos comprováveis e, por isso, estão fora do contexto deste verbo. Não há como acreditar naquilo que é: a questão nem sequer se coloca, seria o equivalente a dizer que se acredita na verdade. Já o contrário, estranhamente, não me parece tão estranho: é possível acreditar naquilo que não é. Ou seja, admito (embora não perceba) que haja quem acredite que a Terra não é redonda mas sim plana. Estão errados mas, ainda assim, acreditam (em algo que não é verdadeiro).

sábado, 4 de abril de 2020

4 mãos

Consta que a mãe lhe ofereceu um rolo de piano quando começou a aprender a tocar, na mais tenra idade. Art Tatum rapidamente emolou, na perfeição, aquilo que ouvia. Acontece que o rolo tinha sido gravado por duas pessoas, o que talvez ajude a explicar porque parecesse ter quatro mãos a muitos dos que o viram tocar.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Prisão domiciliária - 23º dia

Em cima da mesa está o Proust, cujas algumas centenas de páginas são o último reduto de literatura disponível. Em versão física, tenho plano de contingência digital. Dificilmente outro romance terá um título mais apropriado ao momento psicológico do que "em busca do tempo perdido".

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Equilíbrio

Devia ser proibido dar lições de moral orçamental quando se dirige um paraíso fiscal.