terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Amigo, se não houver ninguém na praia, não vá se banhar.

Enquanto vais à água eles levam tudo. Eles não fazem mal mas tudo o que houver de bom eles levam.

Faço a pé o curto caminho da guesthouse até à praia de Tamarindos que, adivinhe-se, à excepção de um pescador que se cruza comigo pelo caminho, ao ir-se embora, não tem mais ninguém. O sofrimento de não ir à água não é muito grande, o tempo chuvoso e o mar não são convidativos. Isso e os mosquitos que, após atravessar as rochas ao fundo, que permitem aceder à praia seguinte, incomodam irritantemente, como é seu apanágio. Quando olho, vejo um enxame de moscas pousado no preto da mochila.

Ao final da tarde, enquanto espero pela barracuda grelhada e a banana frita com arroz do jantar, Mateus, o filho do casal, aborda-me, embora seja parco de palavras. Quer mostrar-me a bicicleta, a bola. A mãe, preocupada que o miúdo possa estar a incomodar o hóspede, liga-lhe o televisor. Na TVS está a dar telenovela brasileira.

De manhã, ao pequeno-almoço, a propósito da omelete com micocó, a planta local para cuja existência e propriedades afrodisíacas já tinha sido alertado na Roça Agostinho Neto, reitera a convicção de que “é bom para o homem”.
À noite, depois de jantar, bebes um chá de micocó e estás pronto para a cama.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Uns minutos antes das 9h, a hora combinada, bate-me à porta do quarto a avisar que a boleia para o aeroporto já chegou.

Arrumo rapidamente as últimas coisas, desço o lance apertado de escadas. Dez minutos depois estamos à porta do pequeno terminal, que dá para a pequena pista, aberta no meio da densa floresta.

Enquanto uns funcionários tratam dos trâmites do check in, outros pedem para verificar a bagagem. Abro o saco e a mochila para que o funcionário possa passar a mão enluvada pelo interior. Completas estas medidas de segurança, regresso ao local do check in, onde me devolvem o passaporte e a minha impressão da reserva do voo, acompanhados de um bilhete que apenas tem o número do voo escrito à mão.

Ao lado, uma porta metálica abre para uma pequena divisória, dentro da qual outros dois funcionários tratam de percorrer os passageiros com aparelhos detectores de metais. Para demonstrar que não tenho nenhuma substância estranha na garrafa metálica, um deles pede-me que beba um pouco.
Cuidado com o degrau,
acrescenta quando transponho a porta para a sala de embarque. Algumas cadeiras à direita, na parede da esquerda, ao fundo, um televisor passa, em loop, um anúncio da fábrica de chocolates do Claudio Corallo. Calor, apesar da forte chuva que cai.

E é por causa dela que, pouco depois, funcionários com coletes entram na sala e, de forma quase solene, fazem o anúncio de que o voo está atrasado, que o avião não sairá de São Tomé antes do meio-dia, devido ao mau tempo. Somando uns 40 minutos de voo, o aparelho só deverá chegar pelas 12h40, mais o tempo de saída dos passageiros de São Tomé e embarque dos do Príncipe, calculamos que só um pouco depois das 13h deveremos arrancar, cerca de 3 horas depois da hora original.

Estou separado dos meus amigos de circunstância por duas cadeiras, ocupadas por duas portuguesas, que se levantam amiúde e falam muito e, por isso, não me deixam passar convenientemente pelas brasas. Queixam-se do calor e conseguem convencer as funcionárias a abrir mais janelas e a ligar as três ventoinhas do tecto. Uma delas repara que há uma rede wifi e pede a password a uma das funcionárias. Sigo-lhe as pisadas para avisar o fulano da empresa de aluguer de veículos, que está à minha espera no aeroporto de São Tomé, para me entregar o jeep. Enquanto digita a password no meu telefone, reparo que olha em frente: o código está escrito, a caneta, em letras e algarismos toscos, na parede amarela.

Alguns dos passageiros vão-se embora, os motoristas dos resorts de luxo levam-nos novamente para as instalações para que aguardem aí. A debandada é maior quando, pouco antes das 12h, recebemos um novo comunicado, uma vez mais com alguma pompa e circunstância: afinal, o voo já não vai sair de São Tomé senão pelas 14h, dado que persistem as condições adversas. Entretanto, no Príncipe, já havia parado de chover.

De repente, estamos só nós no pequeno terminal: eu, os meus companheiros de circunstância belgas e as 2 portuguesas. Os próprios funcionários desaparecem e não há nenhum sítio nas redondezas para onde possamos ir. A electricidade falha, ficamos sem ventoinhas e wifi. O belga, bem-disposto, brinca com a situação, que é inadmissível e que quer um reembolso. Acrescenta, em relação aos que regressaram aos resorts de luxo
They are tourists, we are travelers.
É a diferença, não trazemos a impaciência de quem vem para estes locais com a expectativa de que não vai haver nenhum impasse ou inconveniente.

Perto das 14h, os funcionários começam a regressar mas ainda não nos sabem dar nenhuma informação sobre o voo. Mas, aos poucos, os passageiros que foram esticar as pernas para os resorts – os tais turistas, na linguagem do belga – começam também a reaparecer. Trazem a boa nova de que o avião terá mesmo saído pelas 14h30.

A certa altura, há quem confunda o barulho de um carro com o das pás do bimotor. Falso alarme. Qual Fata Morgana, o Saab 340 faz-se à pista pelas 15h e picos, deixando umas 3 dezenas de pessoas extasiadas. O desembarque e reembarque são rápidos e, pelas 15h40, estamos sentados na máquina. A hospedeira embirra com a minha mochila porque estou sentado numa saída de emergência mas, como não a consegue encaixar nos compartimentos por cima dos lugares, acaba por a enfiar novamente debaixo do banco à minha frente.

Às 16h30 lá está o fulano à minha espera, com o meu nome num papel. Dá-me algumas indicações sobre o jeep e sobre o caminho até Neves. O sol põe-se pouco depois e os 40 kms em estrada esburacada, sem iluminação e com muita gente, levam-me hora e meia. Chego à roça onde vou passar a noite e estendo-me uma hora na cama até me chamarem para jantar.

domingo, 29 de dezembro de 2019

Digo cobras e lagartos do caminho que, virando à direita à chegada à Roça Belo Monte, leva até às praias do nordeste da ilha.

A única indicação que tenho é a evitar descer até à praia Banana de carro, o dono da residencial alertou-me para uma secção que, à subida, é difícil de negociar. Por isso, no dia anterior, desci, a pé, a essa praia de difícil regresso. Segundo ele, de resto não há problema. Mas agora que tento chegar à praia Macaco, começo seriamente a duvidar dessa recomendação, enquanto tento manobrar o jeep pelo meio da terra, pedras e da lama.

Já relativamente perto, de acordo com as contas do GPS, a estrada bifurca e, nessa bifurcação, numa pequena construção abandonada, redonda, de tijolo e cimento, estão dois locais, que me desejam bom dia. Um deles aproxima-se de mim e pergunta-me onde quero ir. Aponta-me o caminho à minha esquerda que é, literalmente, um caminho de pedras. Espontaneamente solto um
Por aqui?
e ele conforta-me (ou tenta confortar) dizendo-me que está quase, estou perto. De facto, tem alguma razão: o caminho parece pior do que efectivamente é, basta descer devagar em primeira e, pouco depois, a praia surge.

Há algumas construções abandonadas ao longo do areal – que venho a saber a depois faziam parte de um projecto de resort turístico que acabou por não chegar a bom porto – e que dão um ar um pouco fantasmagórico ao local. O facto de não haver rigorosamente vivalma na praia também, devo dizer, contribuiu para essa sensação. Um pequeno pedaço de paraíso, de água azul e límpida, coqueiros e palmeiras a projectar sombra em parte da areia fina.

Passados alguns mergulhos e caminhadas na areia, surge um local, que me cumprimenta e volta a desaparecer, caminhando no areal. Pouco tempo depois, ouço um barulho por detrás de mim. Olho e vejo-o trepar um coqueiro com uma agilidade desconcertante. Uma vez no topo da árvore, manda uns quantos cocos para a areia e volta a descer com a mesma facilidade com que subiu. Bate fortemente com um dos cocos contra uma amurada da construção abandonada, retira-lhe a casca, abre uma pequena incisão com uma faca e, sem pronunciar uma palavra, oferece-me.

sábado, 28 de dezembro de 2019

A residencial está localizada de frente para a igreja, onde está a haver uma celebração.

Do lado esquerdo da fachada da igreja, estão várias mesas de madeira compridas. As pessoas estão sentadas à conversa e a comer. Uma percentagem grande das raparigas tem vestidos brancos. O dono da residencial – nascido na roça Sundy, viveu 27 anos em Lisboa até regressar à ilha após a morte do pai, para tomar conta do negócio – explica-me que foram realizadas cerimónias religiosas (primeiras-comunhões, crismas) e as pessoas agora juntam-se para a festa. Tomo nota de um conjunto de dicas que me dá de sítios para visitar.

Saio para ver os edifícios que Estrela me apresentou na boleia conjunta. Vou até à rua que termina a praia. Duas raparigas estão sentadas na amurada. Faz-me lembrar o Malecon de Havana, embora, honestamente, não tenha assim tanto de parecido. Regresso por outra das ruas perpendiculares à praia e, depois de esperar um pouco debaixo de um telheiro para que uma carga de água passe, dirijo-me até à igreja.

É com algum espanto que reparo que a maioria das pessoas ainda ali está, apesar do dilúvio que acaba de cair. Mal tiro as primeiras fotos ao edifício e um grupo de miúdos vem ter comigo
Me pega
E eu certifico-me:
Querem que vos tire fotografias?
Fazem uma autêntica sessão fotográfica à minha frente – agora só eu, agora eu só com ele, agora só elas. Riem-se quando lhes mostro o resultado no visor da máquina. Recomeça a chuviscar e, a certa altura, tenho que lhes dizer que já chega.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Bem-vindo à capital mais pequena do mundo,

diz-me quando, a seguir a mais uma curva, a estrada vai desembocar à entrada de uma pequena baía e se lê, numa placa de trânsito, Santo António. Indica-me, à direita, a esquadra da polícia e a prisão. Brincamos com o facto de a própria ilha, de si, ser uma prisão, quem vai conseguir escapar daqui. Esta é a praça principal e, ali ao fundo, é o Palácio do Governo Regional. Aquele é o edifício da Assembleia Regional. Não estejas já a dizer tudo ao Sr. Daniel senão ele fica sem nada para fazer.
interrompe ele com um sorriso. Mas ela continua:
E este é o único sítio onde há internet à borla – acredita que é importante saber (no dia seguinte, à noite, lembrei-me da advertência quando vi uns quantos jovens encostados às paredes, de telemóvel na mão). E ali é a minha casa, informa-me pouco depois (muito pouco depois). Despedimo-nos, ela com um até logo que nunca veio a concretizar-se.

Vínhamos no mesmo voo, no bimotor Saab da São Tomé Airways, com indicações em cirílico por baixo das escritas em português e tripulação ucraniana, que assegura a ligação de 40 minutos, entre São Tomé e o Príncipe, a poucas dezenas de passageiros. À chegada, estaria alguém da residencial para me levar do pequeno aeroporto para a povoação.
Sr. Daniel?
Perguntam-me assim que cruzo a porta, de saco às costas. Seguimos até ao estacionamento e ela acompanha-nos. Dentro do jeep, é ele quem nos apresenta, após algumas perguntas de circunstância sobre o voo e sobre a minha proveniência em Portugal. Diz-me que partilho o carro com uma personalidade importante. Ela afasta essa caracterização. Explica-me porque chove mais, demasiado, no Príncipe do que em São Tomé (onde há zonas de savana) e a erosão que está a causar nos terrenos e nas praias. O seu nome incomum – Estrela Matilde – ajuda-me a que seja capaz de o recordar mais tarde e a procurar na internet da residencial. Aqui fica uma reportagem da TVI sobre esta alentejana que assentou arraiais naquele sítio remoto.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Mau fígado

Enquanto não for determinado que outro órgão, para além do fígado, sofra da mesma maleita, declaro a expressão "cirrose hepática" um valente pleonasmo.

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Tribalismo

«(...), the claim that humans have an innate imperative to identify with a nation-state (...) is bad evolutionary psychology. Like the supposed innate imperative to belong to a religion, it confuses a vulnerability with a need. People undoubtedly feel solidarity with their tribe, but whatever intuition of "tribe" we are born with cannot be a nation-state, which is historical artefact of the 1648 Treaties of Westphalia. (Nor could it be race, since our evolutionary ancestors seldom met a person of another race.) In reality, the cognitive category of a tribe, in-group, or coalition is abstract and multidimensional. People see themselves as belonging to many overlapping tribes: their clan, hometown, native country, adopted country, religion, ethnic group, alma mater, fraternity or sorority, political party, employer, service organisation, sports team, even brand of camera equipment. (If you want to see tribalism at its fiercest, check out a "Nikon vs. Canon" Internet discussion group.)»

Enlightenment now, Steven Pinker

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

sábado, 21 de dezembro de 2019

Repentinamente

De um momento para o outro, o orçamento de Estado para a orçamento do Estado. Confesso que ainda não me habituei.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Estávamos a ver os Jogos Olímpicos, não me lembro há quanto tempo.

Ele sentado na cadeira à minha direita, eu no sofá. Estavam a decorrer as provas de atletismo e a transmissão ia acompanhando as diferentes modalidades agendadas para o dia. Uma delas era o lançamento de peso ou de martelo, não me lembro exactamente qual, mas era seguramente uma das modalidades de força. E, um aspecto sobre o qual não tenho a mínima dúvida, tratava-se da vertente feminina.

A certa altura, a câmara foca uma das senhoras possantes, de cabelo curto, que se preparava para mais um ensaio. Sentado ao meu lado, soltou um riso contido e, com um sorriso na cara, olhou para mim e perguntou-me se sabia como se chama a uma mulher daquelas na terra dele. Respondi que não sabia e preparei-me para o que aí vinha.
Macha
disse-me, e não resisti a rir-me deste (chamemos-lhe) feminino de macho, que não destoa terrivelmente numa terra onde também há cadelos, raparigos, tomatas e ervo (na era do correcto automático, é um desafio escrever estes termos). Mas há ainda uma particularidade relevante nesta palavra "macha": tal como em muitos outros sítios do país, o "ch" é pronunciado como se fosse precedido de um "t", ou seja, é como, por exemplo, o "tch" de "tchouriça". Ou seja, "macha", na prática, diz-se "matcha".

E esta é a razão pela qual sempre que ouço falar no chá tradicional dos japoneses me vem à cabeça uma senhora de equipamento de desporto e um dorsal e, sobretudo, com poucos traços alusivos à sua condição feminina.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Energia

«Energy channeled by knowledge is the elixir with which we stave off entropy, and advances in energy capture are advances in human destiny. The invention of farming around ten thousand years ago multiplied the availability of calories from cultivated plants and domesticated animals, freed a portion of the population from the demands of hunting and gathering, and eventually gave them the luxury of writing, thinking, and accumulating their ideas. Around 500 BCE, in what philosopher Karl Jaspers called Axial Age, several widely separated cultures pivoted from systems of ritual sacrifice that merely warded off misfortune to systems of philosophical and religious belief that promoted selflessness and promised spiritual transcendence. Taoism and Confucianism in China, Hinduism, Buddhism, and Jainism in India, Zoroastrianism in Persia, Second Temple Judaism in Judea, and classical Greek philosophy and drama emerged within a few centuries of one another. (Confucius, Buddha, Pythagoras, Aeschylus, and the last of the Hebrew prophets walked the earth at the same time.) Recently an interdisciplinary team of scholars identified the common cause. It was not an aura of spirituality that descended on the planet but something more prosaic: energy capture.»

Enlightenment now, Steven Pinker