sábado, 23 de dezembro de 2017

Sou um coleccionador de panfletos que pessoas simpáticas entregam na rua.

Seja de matérias políticas, religiosas e até mesmo dos curandeiros com capacidade para solucionar todo o tipo de problemas. Há dias, fui presenteado com (mais) um panfleto de testemunhas de Jeová. Nestes casos, costumo empregar um processo que se assemelha a uma corrida de estafetas: praticamente sem parar de andar, estico o braço para recolher o papel que me querem dar e, desta forma, evito a potencial conversa que perigosamente se poderia desenvolver caso incorresse na incúria de abrandar o passo.

Neste último panfleto lê-se a seguinte pergunta: "Qual é o segredo para uma família feliz", com uma imagem de um homem e uma mulher, que se olham, de perfil e, no meio, uma criança sentada, cabeça em cima da mão, com uma expressão preocupada. No interior do panfleto, uma série de sugestões, maioritariamente baseadas em histórias bíblicas, são oferecidas para combater os problemas que nos assolam.

Não é, de todo, o método mais eficiente: a forma mais fácil para descobrir o segredo de uma família é, claro está, visitar a cozinha de um restaurante chinês.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Fala-se da quadra natalícia

Mas nunca de quintilha natalícia. Ou sextilha, septilha, etc.. Ou, no sentido contrário, terceto, dístico, monóstico.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Me Hansa, vai!

Quando os primeiros europeus chegaram à região ouviram os locais referir-se àquele lago gigantesco - hoje tem uma dimensão muito menor do que tinha à altura no século XIX - como Chad. E foi assim que ficou baptizado: lago Chad. Não só vingou como também acabou oferecer a designação do país que o alberga. Acontece que, na língua original, "chad" significa precisamente lago. Ou seja, dizer lago Chad é o equivalente a dizer "lago lago".

Algo semelhante ocorre com a Liga Hanseática, a associação de cidades mercantis de há uns quantos séculos: "Hansa" significa qualquer coisa como "liga" ou "associação". Donde, pela mesma ordem de ideias, isto só pode acabar de uma forma bastante análoga. Liga Hanseática é qualquer coisa como "liga liga".

sábado, 16 de dezembro de 2017

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Catch-22 calórico

«Throughout history, people adapted to a lack of calories by not growing too big or too tall. not only is stunting a consequence of not having enough to eat, especially in childhood, but smaller bodies require fewer calories for basic maintenance, and they make it possible to work with less food than would be needed by a bigger person. A six-foot-tall worker weighing 200 pounds would have survived about as well in the eighteenth century as a man on the moon without a spacesuit; on average there simply was not enough food to support a population of people of today's physical dimensions. The small workers of the eighteenth century were effectively locked into a nutritional trap; they could not earn much because they were so physically weak, and they could not eat because, without work, they did not have the money to buy food.»

The great escape: health wealth and the origins of inequality, Angus Deaton

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Regime

Há eixos rodoviários que são verdadeiras artérias da cidade mas nenhum é uma veia. É possível ter-se veia artística mas nunca artéria artística.

domingo, 10 de dezembro de 2017

Abres a boca, tapas os ouvidos

«Voaram as primeiras bombas, eu estava parada, acompanhando-as com o olhar até caírem na terra. Alguém aconselhou a abrir a boca para evitar ensurdecer. Abres a boca, tapas os ouvidos, mas ouves na mesma como elas voam. Como uivam. É tão assustador que a pele se estica, não só na cara, mas em todo o corpo.»

As últimas testemunhas, Svetlana Alexievich

sábado, 9 de dezembro de 2017

Comércio internacional

«O princípio é sempre o mesmo: os organismos abdicam de alguma coisa em troca de algo que outros organismos têm para oferecer; no longo prazo, esta colaboração tornará a vida mais eficiente e a sobrevivência mais provável. Aquilo de que as bactérias, as células nucleadas, os tecidos ou os órgãos abdicam é, regra geral, a independência; aquilo que recebem em troca é o acesso aos «bens comuns», bens que resultam de um acordo cooperativo em termos de nutrientes indispensáveis ou de condições gerais favoráveis, como o acesso ao oxigénio ou a certas vantagens climáticas. Pense nisso da próxima vez que ouvir alguém a acusar os acordos comerciais internacionais de serem uma má ideia.»

A estranha ordem das coisas, António Damásio

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Não sei se se pode dizer que seja um pedinte.

Isto porque, na prática, não pede como os outros. Nem sequer abre a boca, em praticamente nenhuma circunstância: as poucas vezes em que o vi falar foram quando alguém entabulou conversa com ele. Estes casos excluídos, olha constantemente para baixo. Sentado no chão, directamente sob o passeio largo da avenida, à sua frente uma lata velha e gasta mas que, ainda assim, dá para ver que é de salsichas tipo Frankfurt da Nobre. O olhar pesado parece repousar sobre aquela lata, como se se concentrasse nela para, ao mesmo tempo, se abstrair de tudo o resto. A maioria das pessoas que passam parecem nem sequer reparar. Absortas, imagino-as a, inadvertidamente, dar um chuto na lata de salsichas. A lata que, no fundo, faz as vezes de pedinte, substitui-se à voz dele e ao olhar com que outros - esses, sim, pedintes na verdadeira acepção do termo - procuram compungir os transeuntes. Ele não: olha para aquela lata com o que parece ser sobretudo vergonha.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Os condenados são normalmente arrastados até ao local.

Não é um trajecto que, normalmente, se faça de livre e espontânea vontade, de bom grado. No caso do invisual, o motivo era duplo: à sua resistência a realizar o seu último trajecto, havia igualmente a questão óbvia de não conseguir ver onde punha os pés. Ali chegado, foi devidamente preso, não só para evitar uma tentativa desesperada de fuga, mas também que caísse por terra caso lhe faltasse a força nas pernas. Perguntaram-lhe se tinha últimas palavras e ele balbuciou-as atabalhoadamente. Depois disso, mexeu a boca, à procura, quase como estivesse a tactear o ar, do último cigarro que lhe haviam colocar nos lábios. E, antes de o pelotão apontar as armas na sua direcção e se preparar para disparar, colocaram-lhe uma venda nos olhos.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Contar

«Contava as bombas. Caiu uma, duas... Sete...
Foi como aprendi a contar...»

As últimas testemunhas, Svetlana Alexievich

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Shibuya num sábado à noite.

Onde os turistas se concentram para olhar de boca aberta para aquela que é considerada a passadeira mais movimentada do mundo. Máquinas fotográficas em tripés, estrategicamente colocadas de forma a conseguir captar, a baixas velocidades de obturação, a deslocação de uma mole de gente de cada vez que o sinal para os peões abre. Mais turistas que se juntam àquela mole e fazem filmes com os telefones como se estivessem no olho do furacão.
Este é um dos sítios onde se percepciona o outro lado. O lado em que os nipónicos dão asas à possível necessidade de extravasar uma vida contida e delimitada por regras, costumes e comportamentos agrilhoados. Como se se quisessem livrar de um espartilho, de um cinto que já não comporta o perímetro abdominal mais dilatado. E aqui as manifestações são variadas. Incluem métodos relativamente universais como a intoxicação alcoólica: a primeira vez que vejo pessoas bêbedas, adolescentes a rir descontroladamente, no chão, encaracolados no canto da entrada de um edifício em Tokyo.

Mas há tanto mais e algumas manifestações que serão mais características deste canto do mundo. Dentro de uma das inúmeras arcades, vários pisos amplos e escuros, repletos das mais variadas máquinas de jogos – dos clássicos Super Mario e Sega até aos jogos de combate, corridas de carros e cestos de basquete para tentar encestar o maior número de vezes – vemos hordas de locais a despejar moeda atrás de moeda dentro das ranhuras para ter acesso a mais algum tempo em frente aos monitores gritantes e botões coloridos. Sendo certo que as camadas mais jovens são o principal alvo deste tipo de estabelecimentos, não é de todo incomum ver extratos de maior idade. Engravatados, embora com o nó possivelmente alargado, a pasta de pele no chão de um dos lados, gesticulam avidamente à frente do aparelho. Descomprimem da intensidade da jornada de trabalho recorrendo a uma outra intensidade, exigida por aquele jogo, que mais parece uma aula de aeróbica. A mania dos jogos chega ao cúmulo de ser possível vestir-se de um qualquer personagem do Super Mario e conduzir karts pelas avenidas de Tokyo, pelo meio dos outros veículos. E isto sem falar dos inúmeros bonecos do Sangoku, Pikaxu e companhia que enfeitam algumas ruas.

O ambiente é totalmente distinto na loja de manga. Temos, é verdade, uma vez mais, pisos e pisos dedicados à mesma temática, neste caso forrados de prateleiras repletas de livros com lombadas coloridas, aqui e ali alguns posters alusivos nas paredes. Mas já este é um local mais solitário, não como os bandos que jogam entre e contra si nas máquinas dos árcades, ou cujos amigos observam as performances: aqui os utentes folheiam em silêncio, um pouco como se estivéssemos novamente nas carruagens do metro e os smartphones fossem substituídos por livros. E, nos pisos cimeiros, onde as publicações se debruçam em matérias mais sensíveis, tais como o erotismo, sente-se um certo desconforto quando o interesse de um leitor é exposto por presenças alheias, como se se tratasse de um interesse ilegítimo ou censurável.

O pináculo deste desconforto é, no entanto, reservado para as secções eróticas das grandes lojas onde se vende de tudo. Depois de passar o primeiro piso do supermercado, nos pisos onde se vendem de roupas a aparelhos domésticos, é comum existir uma zona, por vezes delimitada por um cortinado opaco que assinala a imposição ou advertência de uma idade mínima de 18 anos, onde se podem adquirir vibradores, roupas, mamas de borracha e vários outros produtos íntimos. Alguns cuja existência desconhecia em absoluto e que só após ter virado a caixa e ter olhado para instruções ou imagens ilustrativas consegui perceber, algo surpreendido, devo dizer, qual o propósito a que se destinam. E aqui, apesar da minha total ausência de julgamento, alguns autóctones sentem um verdadeiro embaraço perante presenças alheias naqueles espaços e chegam inclusivamente a desaparecer rapidamente sem virar as costas.

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

A carrinha do ryokan apanha-nos no centro da pequena (e pouco relevante) cidade de Himeji

Leva-no ao longo de alguns quilómetros pelos arrabaldes até chegarmos ao local. Descalçamos os sapatos assim que entramos e só os voltaremos a ver passado um dia, no momento da nossa partida. O processo de check in é um pouco diferente do de um hotel tradicional. A senhora de sorriso rasgado mostra-nos as áreas, interior e exterior, de banhos termais, os onsen, e depois leva-nos ao nosso quarto. Assim que se entra, à esquerda, a casa-de-banho (sem duche) e, em frente, uma porta de correr que abre para um espaço minimalista: uma esteira sob a qual está uma mesa e umas almofadas para sentar, alguns quadros e figuras na parede. Serve-nos um pouco de chá usando a água de uma chaleira eléctrica e passa à parte de nos mostrar pedaços de papel plastificados com algumas indicações e instruções. Mostra-nos também onde estão os nossos trajes e as toalhas que devemos usar para ir aos banhos. Assim que sai, iniciamos o complicado processo de colocar os trajes e acertar com a forma correcta de atar os cinturões à cintura. É necessária alguma luta até nos sentirmos em condições para sair para o corredor e fazer caminho até ao balneário onde nos preparamos para o ritual do banho.

Depois do banho e de uma pequena sesta no chão de esteira do quarto, um pequeno toque na porta do quarto. A senhora e o seu sorriso rasgado vêm buscar-nos para jantar. Descemos um piso e entramos na sala de jantar, uma divisória grande onde se encontram uma série de pequenas subdivisões com as mesmas portas de correr do quarto. Somos encaminhados para a nossa onde, uma mesa também ela ao nível do chão nos aguarda, desta vez com a simpática característica de ter um desnível onde podemos colocar confortavelmente as pernas depois de nos sentarmos no chão que, nestas circunstâncias, passa a parecer um normal banco. A mesa está repleta de pequenos pratos e tijelas com comida que temos dificuldade em identificar. A senhora, sempre com o mesmo sorriso rasgado, dá-nos instruções em relação aos pratos, o que nos permite perceber, mais coisa menos coisa, com que molho ou acompanhamento vai cada um deles. E sai para regressar passado com pouco, com ainda mais pratos, que põe à nossa frente depois de retirar os vazios. Perdi a conta ao número de vezes deste vai e vem, sempre com mais pratos, sempre com o mesmo sorriso, sempre com as mesmas explicações na língua que não percebemos mas com os gestos que nos permitem ir acompanhando. A seguir ao jantar, quando regressamos ao quarto, a mesa foi retirado do centro que é agora ocupado por dois colchões, lençóis e cobertas. No pequeno-almoço da manhã seguinte, o mesmo processo do jantar, incluindo uma diversidade substancial de comida.

O hotel onde ficamos no dia seguinte tem cacifos à entrada para de imediato tirarmos os sapatos e aí os colocarmos, e calçarmos uns chinelos que nos são cedidos. Depois subimos até ao topo, ao último andar, onde ficam os cacifos apertados onde lutamos para enfiar a mala, as casas-de-banho e os chuveiros. Depois descemos um andar para a zona onde se dorme. O corredor é longo, pouco iluminado, com os números escritos no chão, setas a apontar para a entrada. Parecem favos de uma colmeia. Descubro o meu número, e entro na minha cápsula, uma das de baixo. Lá dentro um colchão suave, um edredon fino e uma almofada. Fecho a cortina da entrada, que protege da ténue luz e do (pouco) movimento dos outros hóspedes que passam à procura das respectivas camas. À pergunta óbvia que surge sempre respondo que não, não é claustrofóbico. Pelo menos para mim, que não sou de todo um fã de espaços apertados, não me incomodou minimamente. Aliás, posso até garantir que foi uma noite bem passada.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Lost in translation

Voltemos ao primeiro dia, aquele em que precisei de aproximadamente um dia para chegar a Narita e de umas seis horas, em três comboios diferentes, para chegar do aeroporto até à estação de Hiroshima. Estou desejoso para chegar ao hotel e falta-me apenas uma etapa: apanhar um eléctrico que me leve da estação até perto centro da cidade. Mas para o efeito preciso de levantar ienes. Olho e calcorreio em todas as direcções e não há meio de ver um ATM. De repente vejo um casinhoto logo à saída da estação com o símbolo de turismo.

Lá dentro, sou imediatamente recebido por um maravilhoso ar-condicionado que me resgata do calor pegajoso da rua. E depois sou atendido por uma senhora simpática mas que fala inglês mais ou menos como eu falo malaio. Felizmente consegue perceber um pouco melhor do que eu percebo malaio e, após algumas repetições, percebe a pergunta. A resposta surge sob a forma de uma indicação num papel plastificado com um mapa da zona, onde ela me aponta a localização da máquina. Explica-me três, quatro vezes e, mesmo assim, tenho sérias dúvidas de que tenha verdadeiramente percebido, dúvidas essas altamente fundadas dado que, de facto, continuo sem perceber onde fica o raio da máquina. Com cara de barata tonta, pergunto ao segurança da estação que não percebe o que digo. Em quase desespero entro num pequeno centro comercial para refrescar as ideias no ar-condicionado e, golpe de sorte, aí estão várias máquinas ao fundo do corredor. A primeira não funciona, a segunda tampouco, mas a terceira, diferente em aspecto das outras duas, cospe umas quantas maravilhosas notas com imagens do imperador e muitos zeros num dos cantos. Desde este ponto até ao quarto no hotel é trigo limpo farinha Amparo.

Uns dias depois, em Kyoto, numa visita guiada ao Palácio Imperial, conhecemos a pessoa com quem melhor nos intendemos em inglês. A guia, uma senhora de pala na cabeça e que sofre com o calor como nós, fala-nos entusiasticamente dos vários edifícios pelos quais vamos passando, coloca-se à disposição para eventuais questões, que a deixam visivelmente radiante por responder quando efectivamente surgem. Perto do final, antes de pedir à audiência para se sentar nuns bancos para uma última explicação, fala connosco à parte e fica surpreendida com a nossa proveniência. Imediatamente discutimos influências culturais mútuas como a origem portuguesa da tempura, os peixinhos da horta que ficaram com uma designação que tem a palavra “tempero” como génese. Voltamos à fala depois do final da charla, está curiosa por saber mais coisas, onde estivemos, o que ainda vamos ver. Acabamos a falar com ela ao longo de uma boa meia-hora, na cafetaria, mostrando-lhe fotos dos percursos e de pratos que comemos sem saber o que são. Despedimo-nos dela com indicações e sugestões de coisas para fazer a seguir.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

As lojas de conveniência acabam por cumprir um papel de extrema importância.

Pelo menos para nós, meros e comuns não-autóctones. O calor semi-tropical – muitos japoneses andam constantemente com uma pequena toalha para limparem o suor da cara e do pescoço – convida à presença constante de uma garrafa de água, de preferência cheia. Mas a compra da dita garrafa vem sempre acompanhada da antecipação de um desconforto num futuro bastante próximo. Praticamente não existem caixotes de lixo nas ruas japonesas. Uma ausência que contrasta fortemente com a presença abundante de vending machines, em cada rua, cada esquina. E que, no entanto, não tem reflexo no aspecto das ruas, sempre limpas e asseadas: os japoneses são educados desde pequenos a levar o lixo para casa. Para nós, o resultado é um acumular de garrafas e outros detritos no saco da máquina fotográfica, prontamente despejados em seven-elevens e lojas do género que, misericordiosamente, têm recipientes para o efeito perto das máquinas de café.

Ao jantar demos aso, invariavelmente, ao pecado da gula. Num dos poucos dias em que me calhou a escolha do estabelecimento, parei num conjunto de fotos do Trip Advisor que me agradaram. Só depois me apercebi que se tratava do número 1 de sushi da cidade. Fomos rapidamente com receio de que a cozinha pudesse encerrar. À chegada, enquanto esperámos até sermos conduzidos aos nossos lugares ao balcão, escolhemos da ementa o que queríamos. Ao elencar a (extensa?) lista ao empregado/sushiman, recebemos um aviso de que poderia ser demasiado. Dissemos-lhe que não se preocupasse. E tínhamos razão, não sobrou nada.

De frente para o balcão onde as peças são preparadas, com uma estrutura de madeira a fazer lembrar as velhas carteiras das salas de aula, as peças são colocadas e deslizam suavemente até à extremidade curva, onde ficam retidas, como as canetas dos alunos. Numa parede, ao fundo, um olhar mais atento detecta uma barata. Mexe-se de vez em quando. Optamos por não dizer nada mas o casal ao nosso lado também repara e avisa o empregado/sushiman, que inicia uma operação de captura do bicho que o leva a correr desalmadamente por uma divisão adentro que fica fora do nosso alcance. Passando um momento, regressa com uma cara compungida e, atrapalhado, desfaz-se em desculpas. O tipo do casal, que por esta altura já tinha terminado a refeição, diz
Don’t worry, the food was really tasty
e rimo-nos. E tinha razão, a comida estava excelente. Comemos lindamente, um sushi maravilhoso, incluindo porções da deliciosa parte gorda do atum. No final, de estômago bem cheio e consolado, com o restaurante já praticamente vazio à excepção de uma mesa com italianos que trocaram algumas palavras de português brasileiro connosco, pedimos a conta que sabíamos seria elevada, dado o que tínhamos escolhido. E, com a mesma cara ainda um pouco desconfortável com a situação, o sushiman deu à volta ao bar e veio falar connosco, baixinho, e dizer-nos que nos cobraria apenas metade da refeição, sem incluir sequer as cervejas. Dizemos que não aceitamos, insistimos que queremos pagar, que a refeição estava óptima mas a vontade dele sobrepõe-se.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Há duas classes de pessoas no metro:

as que olham avidamente para o ecrã do smartphone, muitas vezes com auscultadores nos ouvidos, e as que dormem, contorcidas a tentar encostar-se ao apoio da cabeça que não existe. Uma coisa é certa: há um silêncio quase sepulcral, só entrecortado aqui e ali pelo anúncio das estações vindouras, sempre com uma voz infantilizada (mais até do que propriamente jovem), que roça o ridículo.
Shinjuku
pronunciado como “txiiinjuku”, com um “i” longo e repetido maquinalmente após uma curta pausa
Shinjuku Shinjuku Shinjuku
Como se fosse um alerta redobrado, triplicado, etc., para os mais distraídos. Num dos dias levo uma T-shirt vestida que comprei em Camden Town há mais de uma década. Tem o símbolo do metro londrino e, numa brincadeira que certos considerarão de mau gosto, lê-se “Fuck the gap”, num óbvio trocadilho. Sentado num dos bancos compridos com as costas para as paredes laterais da carruagem, vejo duas adolescentes com traje de escola – saia de flanela e blusa branca – entrar e sentar-se no banco em frente àquele onde estou. Apercebo-me que estão a olhar para a minha indumentária, levam a mão à boca a conter um risinho agudo que parece querer escapar. Uma pega no telemóvel, olha para a T-shirt e para o teclado à vez, aparentemente a digitar aquilo que vê escrito. Depois disso, de obter uma confirmação ou maior precisão da tradução, o risinho intensifica-se.

Nas lojas, supermercados, os funcionários das caixas falam connosco enquanto passam os artigos pela máquina registadora e os colocam em sacos. Em japonês, quase me esquecia de adicionar. Duvido que não estejam cientes de que não percebemos patavina. Mas ainda assim vão dizendo uma lenga-lenga suave e delicada, quase monocórdica, que acompanha a tarefa e, no fim,
Arigato gozaimasu
As duas mãos, sempre as duas mãos a dar e receber coisas, e uma pequena vénia ao qual tentamos responder. Fico um pouco dividido em tentar retribuir estes comportamentos de cortesia, tenho algum receio de não reproduzir os gestos de uma forma correcta e apropriada, e que, por isso, possa ser interpretado de forma errada.

Um dia, numa loja de conveniência, porque a despesa ultrapassou um determinado limiar, sou presenteado com uma raspadinha que daria acesso a um qualquer prémio. Coloco a mão dentro de uma caixa de cartão e tiro um papel ao calhas. Raspo a superfície prateada e mostro-lhe o resultado pouco afortunado. E o que então se segue é extremamente curioso: a senhora solta uma profunda exclamação de pesar, acompanhada de uma expressão facial de quase consternação, como se tivesse acabado de assistir a uma injustiça terrível. Os mais cépticos poderão argumentar que se trata de uma reacção teatralizada, farisaica, com o intuito de gerar qualquer tipo de empatia com o cliente. Aceito, é uma observação totalmente válida. Mas devo dizer que pareceu bastante genuína e ainda para mais numa situação em que a criação da empatia com o cliente pouco proveito traria àquela senhora (nunca mais pus os canudos na mesma loja).

domingo, 26 de novembro de 2017

A sensação começa assim que se chega.

Regresso aos corredores do aeroporto de Narita – limpo, incluindo, pasme-se, as casas-de-banho impecáveis – e desemboco no controlo fronteiriço. Há uma meia-dúzia de funcionários, de pé ao lado de um computador com uma maquineta, que processam as declarações alfandegárias. A linha rapidamente avança e calha-me um senhor de alguma idade, com um sorriso estampado, que tece um comentário entusiasmado quando vê a minha origem. É simpático e agradável enquanto percorremos os procedimentos, findos os quais me indica que avance com a mão direita estendida, diz-me
Welcome to Japan
enquanto dobra ligeiramente a cabeça numa vénia. Depois de atravessar a cabine do agente da polícia que me carimba o passaporte, dirijo-me ao balcão dos comboios de ferro japoneses para levantar o meu passe de 15 dias. Uma vez mais, sou recebido com um sorriso e bastante disponibilidade por, neste caso, uma senhora. Para além do passe de 15 dias, dá-me três bilhetes, número de comboios diferentes que tenho de apanhar até Hiroshima, com o meu lugar reservado.

O primeiro comboio é o expresso do aeroporto de Narita para a cidade, vai relativamente cheio e em pouco tempo nos deixa nas principais estações de Tokyo. Não me recordo em qual, mudo de plataforma para a do primeiro de vários Shinkansen que hei de apanhar durante estes dias. O comboio bala percorre a vasta plataforma lentamente. No chão, estão indicadas as portas das várias carruagens onde os passageiros já formam uma pequena fila e o alinhamento entre as indicações e onde a porta efectivamente fica é milimétrica. Entro, descubro o meu lugar, coloco a minha mala na estrutura por cima dos bancos e sento-me no lugar que me foi atribuído. Espaçoso, muito espaço para as pernas e confortável.

O interior deste comboio é aprazivelmente silencioso. As pessoas falam suavemente, quase como se sussurrassem, não há mais ruídos senão o anúncio das estações quando delas nos aproximamos. E mesmo a senhora que atravessa a carruagem a vender bebidas e snacks, parece conseguir fazê-lo com uma ligeireza e subtileza incaracterísticas. Devo ter adormecido a certa altura, embalado pelo movimento e pela ausência de ruído e, dado o conforto, sem desta vez ter massacrado mais as costas.

O pior foi a seguir, quando acordei e tentei ligar ao wifi do comboio. Ligam-me e atendo o telefone, falo entusiasticamente apesar do cansaço. E só então me apercebo que não deveria estar a fazê-lo. Um sinal indica que, não só se deve manter os telefones em silêncio, mas também as chamadas devem ser somente feitas nos extremos das carruagens, depois de passar as portas de vidro que dão acesso ao corredor pequeno pelo qual se sai para o apeadeiro. Despacho o amigo com quem falo, de repente sinto-me mal por estar a falar ao telefone dentro de uma carruagem de comboio. Cujo silêncio me aparece acentuar-se ainda mais, depois do meu erro barulhento.

sábado, 25 de novembro de 2017

Tudo somado, levo um dia inteiro de viagem desde que saí da Portela até chegar a Narita.

Mesmo assim não estou muito cansado. O voo mais longo apanhou grande parte da noite e, por isso, consegui dormir umas boas seis a sete horas que, embora me deixem a cabeça mais leve, pesam-me no pescoço e nas costas, tensos do desconforto do assento do avião.

E, enquanto percorro os corredores do aeroporto em direcção à saída, vem-me à cabeça a primeira vez que ouvi o Christian falar sobre o Japão e dou-me conta de que foi há quase vinte (!!) anos atrás que, sentado no canto da mesa rectangular, de frente para a porta da sala de aula. Era frequente ouvi-lo falar sobre as suas viagens, tinha passado grande parte do início da idade adulta a viajar pelo mundo, munido de uma máquina de escrever que usava para a profissão de jornalista. As minhas preferidas eram sobre o Brasil, de quando fez a cobertura da inauguração de Brasília – acompanhou a comitiva da qual o próprio Niemeyer fez parte – e de quando foi mordido por uma cobra num tornozelo e um dos locais de imediato lhe fez um corte na pele, chupou o sangue e queimou a ferida com um cigarro acesso. Esta última aventura era contada com a exibição do tornozelo, perna das calças ligeiramente para cima e meia para baixo.

Mas sobre o Japão acho que aquela foi a primeira vez. A pedido, alguém lhe perguntou, um dos outros alunos. E ele parou um pouco antes de responder, uma pequena pausa antes de
Die Japaner sind wie Ameisen
e nós rimo-nos um pouco. A analogia é engraçada e, mais do que isso, facilmente conseguimos perceber como os nipónicos podem ser comparados a formigas, faz parte de uma ideia pré-concebida de uma sociedade com um elevado nível de organização e onde as pessoas têm um código de conduta bastante vincado.

Donde o que vem a seguir é um spoiler alert que, no fundo, não é um spoiler alert, a não ser para os mais distraídos: é exactamente essa a sensação com que se fica do país do sol nascente. É um lugar-comum que, de uma forma abusiva, pode ser generalizado como diferença entre grande parte das sociedades asiáticas e ocidentais: um equilíbrio diferente o individual e o colectivo, os asiáticos mais abnegados e com maior entrega para o colectivo, os ocidentais com maior propensão para olhar para o umbigo. Claro que não estou imune a um certo condicionamento que me tenha levado a descobrir essencialmente aspectos que confirmem a minha ideia original – um comportamento típico e cada vez mais presente no mundo actual das redes-sociais e do jornalismo sem tempo e dinheiro para investigar. Ainda assim, fazendo esta última ressalva, não me parece de todo descabida a atribuição de uma certa formiguidade aos japoneses.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

terça-feira, 21 de novembro de 2017

O sermão que Father John Misty pregou no Coliseu

(Publicado originalmente aqui)

O Coliseu de Lisboa está sem as cadeiras na plateia, magotes de pessoas de pé e algumas sentadas, ao fundo, na geral, assistem a Weyes Blood, uma californiana nascida no final dos anos oitenta. Cabelo liso, escuro, longo, vou aqui usar uma comparação que não é da minha autoria e cuja utilização solicitei: parece uma Mafalda Veiga americana com os seus pássaros do sul. Como sempre nestas coisas, o público pode até mais do que tolerar e ter mesmo uma genuína empatia por quem tem a ingrata tarefa de fazer tempo até surgir o cabeça de cartaz, mas é por demais redundante dizer que o que quer ver é mesmo o cabeça de cartaz. E, embora bata palmas e exulte, goste daquilo que ouve, quer que o primeiro concerto acabe e dê lugar ao segundo.

Para os maiores fãs, esta pode ser uma longa espera. Quase tão longa como o percurso que levou Josh Tillman até ao alter ego (?) Father John Misty. Um percurso que incluiu anos dedicados à música, noutras bandas – e, por vezes, sentado à bateria, – assim como em próprio nome, sob a égide do qual, aliás, gravou oito álbuns, repletos de uma música folk maioritariamente sombria, e que passaram relativamente despercebidos. E, escusado será de dizer, sem nunca atingir minimamente o patamar alcançado enquanto Father John Misty.

Num longo artigo da New Yorker do verão deste ano, é descrito, logo no início, aquele percurso, que contou com bastantes atribulações pessoais, incluindo depressões e drogas. E drogas para lidar com depressões – segundo o próprio, o LSD tem nele um efeito terapêutico que é normalmente associado à cannabis. Mas foi uma experiência com cogumelos alucinogénios que, em 2010, o levou a deixar a cidade onde então vivia, Seattle, em direcção a Los Angeles, com um plano em mente: escrever um romance.

Nessa senda, deu conta que, naquilo que agora escrevia com um intuito diferente, estava uma voz diferente, uma voz que era mais sua do que aquilo que até então tinha escrito na sua música. Voltou a pegar na guitarra e a escrever novamente músicas e também nesta circunstância havia algo de diferente e novo. E assim nasceu um novo eu, mais verdadeiro do que anterior, cujo nascimento Josh Tillman baptizou de Father John Misty. Tillman descreve o desconforto com que se sente na pele de cantor e compositor e das personagens que assume em palco e tem uma frase que gostei particularmente que, traduzida para português, é qualquer coisa como “quis ser autenticamente falso e não falsamente autêntico.”

Um primeiro álbum em 2012 chamado “Fear Fun”, um segundo em 2015 chamado “I love you, honeybear” e, esta primavera, “Pure Comedy”, tema aliás com que dá início ao set, depois das luzes da sala se apagarem e imagens de bonecos, com expressões sinistras e macabras, aparecerem projectadas no fundo do palco.

Caminha lentamente, de um lado ao outro do palco. Faz gestos incisivos com as mãos, algo teatrais. Aliás, toda a postura parece uma representação, como se Josh Tillman se tivesse mascarado e assumido a personagem de Father John Misty. Faz uma espécie de dança, com um ligeiro meneio, o braço esticado com a mão a tecer uma ligeira curvatura e que desce ao longo do corpo, num misto de sevilhana com dança erótica. O público reage efusivamente, partilha e comunga como se se tratasse de uma experiência religiosa. E então percebo: o público já não é público, deixou de o ser. O público é o rebanho que ouve a palavra do seu pastor, um conjunto de acólitos que bebe a palavra sagrada do pregador. Que procura a salvação.

O concerto desenrola-se com uma precisão milimétrica, as músicas seguem-se umas atrás das outras, com pouco espaço para qualquer desvio ao line up, para qualquer pequena manifestação de espontaneidade. Mesmo quando, impelido por um momento de maior intensidade musical, Father John Misty se coloca de joelhos a cantar e, mais ainda, se deixa tombar para trás até as costas tocarem o palco, parece um movimento que segue uma lógica e um fio-condutor inescapáveis, como se não pudesse existir qualquer outra manifestação noutro momento que não aquela.

Estamos no miolo do concerto, no tema “True Affection”, introduzido por um som digital acompanhado de imagens de um coração na tela gigante, quando surge a primeira brecha: ouve-se um “thank you very much” dito na passada, que rapidamente é deixado para trás pelo tema seguinte. E, um pouco mais à frente, quando no início de “Bored in the USA” a luz do holofote que lhe é apontado o incomoda, dá uns passos ao lado para evitar ser encadeado. E o rebanho reage. E, ainda nessa música, arranca e puxa pela voz e o rebanho volta a reagir efusivamente. “Let’s hear it for the band”, pede – e é devidamente correspondido – logo no tema seguinte, “I’m writing a novel”. E tudo parece ganhar uma nova intensidade, uma nova força quando canta “Hollywood forever cemitery” e “I love you, honeybear” para terminar o set, com beijinhos soprados para o rebanho.

Finalmente no encore se sente que a encenação caiu por terra e que é agora Josh quem está à nossa frente. “Thank you very much, this is incredible”. Lá à frente, junto às grades, alguém tem um cartaz que ele lê “Please give me the setlist or let me touch your beard”. Josh opta pela segunda opção, desce do palco e dá a barba a tocar, ao mesmo tempo que explica que tem a pele um pouco seca. Há mais alguém que pede um abraço que também é correspondido. Regressa ao palco e dá-nos um elogio “you are the best crowd in the world”. E é precisamente neste momento que deixamos definitivamente de ser um rebanho e nos transformamos novamente num público.

“Real love baby”, “So I’m growing old on magic mountain”, “Holy shit” e o conjunto de encores termina com um intenso “The ideal husband”, num sermão que praticamente totaliza duas horas. Não somos só nós que voltámos a ser público: parece ser Josh Tillman quem está agora em cima do palco e não o mesmo Josh Tillman que, por momentos, foi Father John Misty. Ou um terceiro John Tillman que, enquanto Father John Misty fez de Josh Tillman.

domingo, 19 de novembro de 2017

Num poster que tem uma foto do Einstein com a língua de fora

«He who joyfully marches to music in rank and file has already earned my contempt. He has been given a large brain by mistake, since for him the spinal cord would suffice. This disgrace to civilisation should be done away with at once. Heroism at command, senseless brutality, deplorable love-of-country stance, how violently I hate all this, how despicable and ignoble war is; I would rather be torn to shreds than be a part of so base an action! It is my conviction that killing under the cloak of war is nothing but an act of murder.»

sábado, 18 de novembro de 2017

Para e de

«There is more than one kind of freedom, said Aunt Lydia. Freedom to and freedom from. In the days of anarchy, it was freedom to. Now you are being given freedom from. Don't underrate it.»

The Handmaid's Tale, Margaret Atwood

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Sororize

Fraternize means to behave like a brother. Luke told me that. He said there was no corresponding word that meant to behave like a sister. Sororize, it would have to be, he said. From the Latin. He liked knowing about such details. The derivation of words, curious usages. I use to tease him about being pedantic.

The Handmaid's Tale, Margaret Atwood

terça-feira, 14 de novembro de 2017

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

terça-feira, 7 de novembro de 2017

O que mais me vem à memória é o teu sorriso.

Grande, vasto. Largo. Orelha a orelha. Os olhos pequeninos, franzidos com rugas, marotos. Vejo-te com a boina na cabeça, a andar no quintal, a tirá-la da cabeça quando nos vês e vens falar.
Ça va?
As bochechas subidas a acompanhar o movimento da boca. Assim era quando te via, normalmente passado algum tempo, e te cumprimentava. Quando falávamos sobre qualquer coisa. Quando nos metíamos contigo. Como quando te picavam para tocar o realejo e tu não te inibias nada e tiravas o objecto do bolso das calças
Bah voilà
levavas à boca com as duas mãos e sopravas. Um bem-disposto.
Relembro-me daquele verão, vejo-te a entrar em casa pelo corredor, cacete debaixo do braço, boina na cabeça. Viravas à direita para a cozinha, onde a mesa redonda ficava à justa, era só esticar os braços para tirar as coisas da gaveta, pegar em algo da bancada, para onde a gata cinzenta, bola de pêlo
Bibiche
saltava e lambia o queijo de triângulo suavemente, quando não eram os pedacinhos pequeninos de bife cru cortados com uma faca
Come melhor do que nós, o raio da gata
e ficava ali com o focinho na tijela pequena. Acabávamos o almoço e começavas o teu ritual seguinte: sentavas-te no canto esquerdo do sofá, bem encostado e rapidamente adormecias. Ouvi-te ressonar vezes sem conta, naqueles poucos minutos de sono pós-prandiais. E, de repente, acordavas quase sobressaltado, saias do sofá com um pulo, como se tivesses molas nos pés
Ça y est
e regressavas à tua vida, depois de voltar a pôr a boina cabeça. Andavas pelo quintal a tratar das coisas enquanto me lembro de ter visto o anúncio da Sega
Sega, c’est plus fort que toi
tantas vezes na televisão. Por vezes entravas rapidamente pela sala adentro quando ela não estava por perto para te censurar e, a olhar por cima do ombro, abrias a porta de baixo do armário na sala, retiravas uma garrafa lá de dentro, e despejavas um pouco num copo pequeno. Olhavas para mim de seguida, cara de maroto, dedo indicador esticado à frente da boca e do nariz, e fazias
Shiu
antes de beber rapidamente o conteúdo do copo. Não querias que ela soubesse das tuas incursões pelo armário das bebidas e eu cumpri o teu pedido, como se fosse uma espécie de segredo de Estado, uma omertà selada entre nós. Pelo contrário, os cigarros
Gauloises, aqueles maços azuis clarinhos com o capacete alado, fazia-me lembrar os livros do Astérix
tinhas permissão (ou desplante) para fumar, embora levasses sempre sermão quando eras visto com um na mão. E, como sempre, rias-te, o sorriso aberto e largo, os olhos pequeninos escondidos atrás das bochechas. Da mesma forma como quando te metias connosco em miúdos. Estás em cima de um escadote ou de um banco, na cozinha, virado para a janela do fundo, a que dava para o caramanchão antes do portão da garagem, a arranjar qualquer coisa lá em cima, quando nós entrámos. Pela cozinha, como sempre se entrava naquela casa. Cumprimentamos-te e tu para te meteres connosco, mostras-nos os músculos do braço e, com gestos exagerados e teatrais, sopras com força para o teu polegar ao mesmo tempo que contrais o músculo do teu antebraço, que faz um alto redondo perto do cotovelo, como se fosse um balão que tivesses acabado de encher com o ar que entrou pelo polegar, subiu o braço e se alojou naquele sítio. Apertei-te o alto no braço e quis mostrar-te que já era suficientemente crescido para não acreditar nesse número.
Bah dis donc!
E tu, como sempre, riste-te. Olhos franzidos, o sorriso.
Há muitos anos, numa daquelas noites de verão da casa que costumava ficar cheia naquela altura do ano, sentámo-nos na sala no piso de cima. Naquele espaço entre os quartos todos onde praticamente dividíamos todo o tempo passado naquela casa, juntamente com a cozinha ampla. Não me lembro como começou mas acabámos a jogar à sardinha, sentados nas cadeiras de lona. Cadeiras que tinham braços e, quando o jogo assim exigia, e tínhamos de retirar rapidamente os nossos próprios braços para não levarmos uma palmada, os meus cotovelos bateram violentamente nos braços de plástico da cadeira. Riste-te da primeira vez que me viste esfregar o cotovelo de dor. Das vezes subsequentes riste-te ainda mais. A certa altura, lembro-me de te ver encolhido a um canto, agarrado à barriga. Rimo-nos todos, para dizer verdade, a certa altura eu ria-me de te ver a bandeiras despregadas.

E é assim que quero continuar a lembrar-me de ti.

domingo, 5 de novembro de 2017

Trio de Aaron Goldberg foi às Caldas tocar nice jazz

(Publicado originalmente aqui)

O receio de que o dia de chuva possa condicionar o trânsito foi felizmente infundado. Rapidamente passo os túneis do Campo Grande, subo a Avenida Padre Cruz e desço a Calçada de Carriche. Talvez por ser 2 de Novembro: muita gente colou ao feriado do dia anterior dias de férias até ao fim-de-semana seguinte. Daí até aos quilómetros iniciais do asfalto duvidoso e trajecto sinuoso da A8 é um instante e, volvida uma hora, estou a sair da auto-estrada nas Caldas da Rainha. A aplicação do telemóvel vai falando comigo, indicando-me que direcção devo seguir, dando-me as instruções precisas até ter o Centro Cultural e de Congressos, que surge à minha esquerda.

Lá dentro, no impressionante auditório, já está na hora de início de mais um concerto do Caldas Nice Jazz e ainda o roadie coloca garrafas de água em palco. Uma senhora entra na fila à frente da do meu lugar e diz aos amigos que os músicos se atrasaram no “checksound” – uma forma recorrentemente utilizada para designar o “soundcheck” – e que estavam a acabar de jantar. São mais alguns minutos até as luzes se apagarem e o trio entrar em cena.

O primeiro tema é de Chico Buarque, “Trocando por miúdos”. O contrabaixista, Yasushi Nakamura, inicia o seu solo com frases pentatónicas, cheias a rebentar de groove e intenção. Pausadas, comedidas, com a calma de quem sabe esperar e respirar. Um dos vários momentos ao longo da noite em que Nakamura esteve em destaque, teve várias intervenções de grande nível no decurso do concerto.

Agora Goldberg estala os dedos para dar o tempo para o segundo, mais rápido. “Tokyo Dream” que, como nos explicará mais à frente, ocorreu-lhe num sonho numa noite em Tokyo. Foi a única vez que compôs um tema a sonhar e, por essa razão, nem sequer sente que a autoria seja sua. Uma estrutura e um cheiro bluesistico. Leon Parker, na bateria, de óculos escuros e cabelo rapado, emite uns sons agudos e umas exclamações enquanto toca, à la Keith Jarrett, seja quando aumenta a intensidade de um momento em que tem mais espaço para dar asas à sua arte, seja em resposta a algo que os outros dois músicos fazem que lhe agrada.

Goldberg tem uma ligação interessante à nossa língua. Fala-a de forma um pouco titubeante e quebrada, brasileiro gringo, como o define. De vez em quando regressa ao inglês nativo, alegadamente para não excluir os outros dois companheiros de palco – Leon Parker a certa altura parece afastar-se como quem desiste e se vai embora. Apresenta a banda pela primeira vez ao final do segundo tema e explica-nos que este é o último concerto da digressão. Agradece a hospitalidade com que foram recebidos, que chegou a incluir uma ida às termas que lhes deixou um odor sulfuroso. Aprecia o facto de não precisar de nos explicar a letra do tema de Chico Buarque. E, como se não bastasse tudo isto, termina anunciando o tema seguinte, que nos explica ser dedicado ao activista angolano Luaty Beirão, que teve o prazer de conhecer recentemente. O público responde com uma ovação sentida ao tema que leva no título o nome próprio “Luaty”.
Mais à frente vamos ouvir outro tema que remete para o Brasil. A introdução tem a linha de baixo do “Hit the Road Jack”, tónica menor, seguida de sétima, sexta, quinta, e liga com a “Manhã de Carnaval”, banda sonora do filme “Orfeu Negro” da autoria de Jobim. E vamos ouvir também, entre outros, uma versão do “All of me” que é também um habitué do set list dos concertos de Goldberg.

Um momento diferente, quase caricato, fechou o set: Leon Parker levanta-se do banco da bateria, afasta-se enquanto abre os botões da camisa (calma, tinha uma t-shirt por debaixo), e coloca-se à frente de um microfone. E, com recurso à sua voz e a estalidos com os dentes e a língua, duas mãos a bater no peito – uma com o punho fechado, outra com o punho aberto – estilo Tarzan, acompanha os companheiros (passo a redundância). Depois disto, que naturalmente arrancou uma reacção bastante efusiva do público, só mesmo um encore com a já clássica versão do “Isn’t She Lovely” de Stevie Wonder fez os músicos regressar para encerrar a noite.

Há uns bons anos tive o prazer de ver Aaron Goldberg mas não como frontman. Desta vez, tive o privilégio de o ver brilhar nesse papel, apoiado numa excelente secção rítmica. É provável que tenha atingido uma fase da sua carreira em que não precise de se afirmar – há quem diga que o temos de fazer constantemente – mas, caso restassem algumas dúvidas, ficaram cabalmente esclarecidas: Goldberg está claramente numa classe aparte, juntamente com a elite dos pianistas de jazz actuais.

sábado, 4 de novembro de 2017

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

A música e a alma de Peter Evans inundaram o Maria de Matos

(Publicado originalmente aqui)

Ao entrar as portas do Teatro Maria de Matos, depois de ter conseguido navegar as restrições ao trânsito na avenida de Roma causadas por um desfile de pessoas vestidas a rigor para o Halloween, tentei recordar-me da última vez que ali tinha estado. Um sítio onde fui algumas vezes com os meus avós, assim como aos cinemas King, poucos metros mais abaixo, à esquerda na esquina. E, se é certo que não consegui aceder ao local remoto da minha memória onde essa recordação possa estar (hipnose?), é também certo que não esperaria regressar a este local para ver um concerto. E ainda para mais este tipo de concerto: o septeto do trompetista nova-iorquino Peter Evans, que esteve em Lisboa esta 3a feira dia 31, depois de ter passado pelo Conservatório de Música de Coimbra e pela Casa da Música, no Porto.

Evans é um trompetista que já experimentou com inúmeras formações diferentes, a solo, em duo, em trio, quinteto. Seguindo uma lógica incremental, o quinteto foi alargado para incluir um violinista e um percussionista. Eis os seis que subiram ao palco do Maria de Matos com o frontman para apresentar o mais recente projecto denominado Action/Metempsychosis: Mazz Swift (violino), Ron Stabinsky (piano e sintetizador), Sam Pluta (electrónica), Tom Blancarte (baixo), Levy Lorenzo (percussão e electrónica) e Jim Black (bateria e sampler).

O espectáculo inicia de rompante, de forma inesperada, com a voz da violinista Mazz Swift, um instrumento que não vem listado na comunicação oficial mas que se revela de importância logo na primeira nota. É uma voz forte, penetrante, que canta, ri, geme e, pelo meio, respira, suspira. Ganha um cúmplice na corda solta do violino que se lhe associa por algum tempo, até os restantes progressivamente se juntarem. Trompete e voz formam uma quase união em notas lentas e prolongadas até a música prosseguir noutra direcção, ao longo de um set único de cerca de uma hora e vinte minutos.

A liberdade dos membros deste septeto é bastante grande. Nos momentos em que se sente no seu expoente máximo, é como se cada um estivesse a dar o seu próprio concerto ou recital a solo. Mas tal não significa que cada um esteja a tocar para seu lado; pelo contrário, há uma fluidez e uma simbiose nas melodias que se intersectam e se cruzam que confere uma unidade e torna aquilo que parece um exercício individual em algo fortemente colectivo.

A riqueza dos instrumentistas em palco permite também explorar diferentes combinações da lógica anterior mas em pequenas formações – duos, trios – formadas dentro do conjunto. Por exemplo, quando ao solo de electrónica se associa a bateria e a percussão que, por sua vez, levam a uma “conversa” entre Jim Black e Levy Lorenzo – que enverga uma t-shirt na qual se lê, em letras amarelas, “agora pense num groove bom” – e que, também, por sua vez, levam a outra combinação de sons e timbres. Outras vezes, estas várias divagações laterais simultâneas – como grupos de pessoas que conversam bilateralmente à mesa de uma sala de reuniões repleta – desaguam num riff conjunto, numa linha melódica forte e incisiva que todos executam, manifestando ou relembrando a sua unidade.

Como qualquer liberdade, esta que é conferida pela formação maior vem associada a uma responsabilidade: a de saber ouvir os demais, com ouvidos de ouvir, e de saber reagir, responder e interagir adequadamente, com o objetivo comum de criar música. Talvez a isto queira Evans aludir com a metempsicose que faz parte do título deste projecto: a forma como a música passa de intérprete para intérprete, como a alma que vai encarnando em diferentes pessoas, ao longo de um percurso. E talvez, se ainda maior especulação me é permitida, seja uma forma de salvação da alma, em cujo caso a expressão trocadilhística “for Evans sake” poderia fazer algum sentido. Estou, no entanto, em plenas condições de afirmar, sem qualquer especulação, que a minha alma de espectador saiu mais consolada do Maria de Matos. Que tenha sido no Halloween é um pormenor que só o torna mais curioso.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Em defesa do medo

Desde a capacidade de enfrentar o desconhecido até à mais primitiva valentia física, a coragem é uma característica com imensa saída, valorizada socialmente. De tal forma que temos vergonha de admitir os nossos medos, como se fossem falhas de carácter e de postura.

A História lembra e exulta os corajosos, que tiveram a ousadia de enfrentar os canhões, o poder, ultrapassar obstáculos. Normalmente não perde muito tempo com os medrosos, a não ser para adicionar referências negativas. Assim como não perde muito tempo com os corajosos que se dão mal.

Mas a verdade é que o medo faz mais por nós do que a coragem. O medo protege-nos enquanto a coragem nos expõe a riscos. Talvez por isso, todos tenhamos medo de alguma coisa. Ou várias ao mesmo tempo. Seja de levar uns tabefes ou da mudança, de alturas ou de espaços fechados, do escuro ou de aranhas. Porque do ponto de vista da nossa sobrevivência, o medo é um valor seguro e a coragem algo arriscado.

E, por isso, algumas vezes sinto que o medo é injustiçado. Tratado como inferior e indesejado. Vítima de escárnio e maldizer quando, na prática, é o nosso melhor conselheiro em tantas circunstâncias do dia-a-dia.

Talvez seja esta a única fosse a única circunstância em que a coragem não aleija: não ter medo de enfrentar o tabu e assumir o medo. E, para aqueles que porventura possam não sentir medo – uma minoria desajustada, vítimas de uma gritante falha evolucionária que as deixa desamparadas para enfrentar o mundo – basta ter a coragem necessária para ter medo.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Assim foi o one-man show de Jack Broadbent no CCB

(Publicado originalmente aqui)

Desde cedo é perceptível que o Grande Auditório do CCB não vai encher. Nem sequer vai ficar perto disso. Sentado numa das primeiras filas da segunda plateia, vou vendo as pessoas ser conduzidas pelos funcionários que tiveram uma noite pouco movimentada. Sinto um quase nervoso miudinho, na expectativa que mais espectadores surjam e que, pelo menos, a sala fique composta. Quando as badaladas para chamar os mais atrasados se ouvem, talvez metade dos lugares da primeira plateia estivessem ocupados. O palco é de um minimalismo que parece solidário com o resto desta sala: apenas se vislumbram, ao centro, duas guitarras, uma de cada lado, no meio das quais um amplificador rectangular, assente sobre um dos lados mais estreitos.

As luzes apagam-se e Jack Broadbent surge do lado esquerdo. Camisa branca, calças pretas e garrafa de Corona na mão, avança à beira do palco e faz uma vénia teatral ao público. Senta-se no amplificador, deita a guitarra que está à sua direita em cima das suas pernas, como um pai natal que senta a criança ao seu colo. Só que neste caso é para tocar slide e não para lhe perguntar se se portou bem no ano que termina. Ajeita o tripé do microfone e faz estalidos com a boca como se testasse o som, que o público, divertido, imita. E, de repente, inicia uma sucessão de frases carregadas de blues até mais não, até rebentar, frases essas que, aos poucos, vão desembocar no riff da primeira música da noite: On the Road Again.

Deseja as boas vindas do público a mais uma sexta-feira. E, de imediato, inteligentemente, aborda o elefante da sala para, assim, o poder ignorar: refere que a sala não está cheia mas que, desta forma, temos o espaço todo só para nós e podemos pôr os pés para cima. E o que segue, de certa forma, é isso mesmo: ficar à vontade. O guitarrista britânico age como se estivesse num espaço mais intimista como um bar. Reage e estimula os comentários que chovem do público que se mostrou altamente interventivo. Diz piadas, gags que se nota fazerem parte de um show que já repetiu vezes sem conta. É blasé e irónico, com um humor auto-depreciativo aqui e ali. Vai alternando entre a guitarra slide – a tal da sua direita – e outra guitarra que usa de forma digamos mais ortodoxa – a da sua esquerda. Alterna também entre um conjunto de covers, algumas das quais são já uma imagem de marca, e alguns temas originais.

No final do original Don’t Be Lonesome, pergunta ao público se está tudo bem e brinca com o facto de só ele ter algo de beber. Aproveita para pedir à organização para trazer mais trezentas Coronas para todos nós. Do público sugerem-lhe Super Bock, marca de cerveja que diz também apreciar. Para dizer a verdade, no fundo, aprecia todas, acrescenta. “Drinking is bad for you”. Dois temas à frente, após uma cover do mítico Lead Belly, é presenteado com uma nova garrafa de Corona, trazida por um dos roadies que tenta fazer a tarefa impossível de entrar em palco discretamente.

Um dos pontos altos é um tema da banda americana Little Feat chamado Willing que, segundo Broadbent, é “fucking beautiful”. Talvez por isso o dedique ao seu pai, ele que também é guitarrista e irá juntar-se ao filho em Nashville, no Tennessee, dentro de um mês, para o auxiliar na gravação de um novo álbum que diz ter quase pronto. Outro é um tema que tem uma história engraçada por detrás. “Funny one”, nas palavras do guitarrista. Segundo explica, um dia foi-lhe dito que tinha um “heroin body” – logo ele que, confessa, havia anos que não consumia a droga – por um homem de baixa estatura. Tão baixa estatura que nem sequer teve coragem para partir para vias de facto porque achou que seria demasiado desigual. Ao invés, optou por lhe dedicar um tema que lhe tocou na semana seguinte, com o título “Small Man Syndrome”. O homem de baixa estatura – que ainda por cima vendia seguros! – não terá apreciado a prenda mas parece que os amigos se riram. Das covers, não posso deixar de destacar ainda o Moondance de Morrison e o grande Wind Cries Mary do também grande Jimmy Hendrix.

Chegamos agora à recta final do concerto. Broadbent brinca uma vez mais com o público, olha para o relógio e diz que já não tem muito tempo, que só dá para mais dois temas. Aos pedidos de um qualquer espectador para que toque três, diz que sim, com certeza, faz parte do espectáculo criar esse suspense. E então surge o Hit the Road Jack, que já havia sido solicitado por outro espectador. Uma forma de terminar o set em grande, o guitarrista levanta-se repentinamente, agradece e sai de palco com a garrafa de cerveja na mão para regressar pouco depois, atravessando o palco e saindo do lado oposto, caminhando casualmente como se descesse a rua. Depois sim regressa para tocar, promete-nos um primeiro tema calmo – um original chamado Too Late – e termina com um tema mais intenso – Black Magic Woman de Carlos Santana.

Assim foi o one-man show de Jack Broadbent no CCB. Um concerto diferente sobre diferentes aspectos. Um concerto próprio para uma sala pequena feito numa sala grande pouco cheia. E, sobretudo, uma forma diferente de tocar guitarra e interpretar grandes temas. Ficamos à espera de mais música deste senhor.

sábado, 28 de outubro de 2017

Panis et circenses

«A cultura diz respeito a objectos e é um fenómeno do mundo; o entretenimento diz respeito a pessoas e é um fenómeno da vida.»

Entre o passado e o futuro, Hannah Arendt

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Catch-22

«À primeira vista este homem deixara de ser um doido: houvera um motivo no seu crime - querer endoidecer. Mas, por amor de Deus, tal motivo melhor vinha provar ainda a sua loucura: só a um doido podia ocorrer semelhante ideia.»

Mistério, Mário de Sá Carneiro

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Mesmo sabendo como é, de quem que já lá tinha estado e também tinha ficado impressionado, não estava preparado.

A única coisa que me disseram que precisava era do meu cartão de cidadão. Saí com ele na carteira naquela noite sabendo perfeitamente a finalidade para a qual iria precisar dele. O caminho até ao centro da cidade levou-nos por avenidas largas e compridas, pelo meio das obras, perto da Câmara Municipal. Daí até às ruas pedonais repletas de lojas, bares, restaurantes, é um pulinho. Locais e turistas preenchem as ruas, sentam-se nas esplanadas. Os locais com copos de café à frente – bebem pouco álcool mas têm o hábito do café –, os turistas é mais comum vê-los de caneca alta de cerveja à frente. Gatos pululam por todo o lado, muitos sentados à espera que caia algo da mesa de quem come.

Algures lá à frente, depois de passar pela animação da rua, vê-se um pré-fabricado, daqueles que normalmente associamos a escritórios em locais de obras. Branco. Uma bandeira. Chegamos e mostramos a nossa identificação ao oficial fardado à nossa frente. Olha para os cartões e faz-nos sinal com a mão para avançarmos. Poucos passos depois e estamos na no man’s land, um segmento (um quarteirão?), da mesma rua de há alguns passos atrás, completamente deserta, as lojas com as grades corridas em baixo, as portas e as janelas entaipadas. E, lá à frente, num pré-fabricado similar, um outro oficial fardado, com uma farda diferente, aguarda-nos. Mostramos novamente o cartão e obtemos autorização para entrar na República Turca do Norte do Chipre, de acordo com uma inscrição.

A rua continua a ser mesma mas agora as placas têm um nome em turco, escrito num fundo diferente. As lojas têm um aspecto diferente, assim como as pessoas. Os transeuntes são agora muito menos e praticamente não se vislumbram turistas, a maioria são locais e do sexo masculino. Locais que também se sentam nas esplanadas dos poucos cafés e falam uns com os outros. E que parecem ficar ao seguir-nos com os olhos enquanto passamos. Os gatos também marcam presença, passam ao nosso lado, atravessam à nossa frente enquanto vou olhando em todas as direcções. Ao fundo, à direita, ergue-se a mesquita, a partir da qual vêm os cânticos que se ouvem também do outro lado da cidade. Que é já ali ao lado.

Pouco depois resolvemos voltar: este local parece-me estranhamente inóspito, pouco convidativo. Talvez pela estranha diferença incutida por uma fronteira inesperada em algo que, de outra forma, não tem razão para ser diferente. Como se a nossa fronteira com Espanha fosse em plena Rua Augusta. Fazemos o percurso inverso de passar pelos pré-fabricados e pela zona deserta que os separa, que em tempos deveria ter tanta vida como qualquer parte da mesma rua. À chegada ao ponto de origem, olho para a placa que se ergue à beira da fronteira. Em cima, lê-se Nicósia escrito em grego; por debaixo, em inglês, francês e alemão, lê-se “a última capital dividida”.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Salto

A maior parte dos que puxam a TV-box para trás para ver a Quadratura do Círculo avançam as partes do Jorge Coelho para a frente.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Crime (re)compensa

«There seems to be little correlation between poverty and honesty. One would rather expect the opposite; dishonesty may not always pay but surely it sometimes does.»

Capitalism and freedom, Milton Friedman

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Armas de fogo

O argumento de que o Estado não pode acudir sempre aos cidadãos e que estes têm de ser capazes de se fazer valer é usado frequentemente nos EUA para justificar o direito de posse de armas.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

A funcionária do aeroporto de Viena pede-me para ver o cartão de embarque e a minha identificação enquanto aguardamos.

Mostro-lhe o meu cartão de cidadão e o visor do telefone mas ela quer em papel para poder rabiscar e, desta forma, poupar-me a ter de mostrar novamente quando for o momento de entrar para o ambiente. E diz-me
I think you wouldn’t be lucky when I wrote on your phone

Duas coisas que não fazem sentido. Começo pela segunda: “when” é claramente “if” e está relacionado com o facto de o “wenn” alemão significar as duas coisas, apenas o contexto da frase os distingue. Mas concentremo-nos na segunda, outro falso amigo com o qual ainda não me tinha deparado a falar inglês com nativos da língua alemã. O “lucky” não é “lucky”, é “happy”. Acontece que “glücklich”, de “Glück”, que significa sorte ou felicidade, tanto pode, por isso, ser “sortudo” como “feliz” ou “contente”.

Esta coincidência dos dois significados na mesma palavra é interessante. Porque parece que a felicidade ou o contentamento germânicos são fenómenos de sorte, como se fossem exogenamente determinados por um acaso favorável, e não algo decorrente de uma acção levada a cabo por aquele que se sente feliz ou contente.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Os cartazes eleitorais

O processo de escrutínio e avaliação do grau de comicidade dos cartazes eleitorais é um clássico das autárquicas. Mensagens e emails, redes sociais, programas de televisão em que os casos mais caricatos são dissecados ao pormenor. Mas há outro prazer, um assumido guilty pleasure que associo a estes cartazes - em bom rigor, também é possível de realizar noutras eleições, embora com muito menos escolha do que nas locais: a adulteração das imagens dos candidatos, através de dentes pintados, verrugas acrescentadas com canetas, rugas e demais características físicas pronunciadas. É altamente infantil e, admito, parvo. Eu próprio não me dedico a este tipo de intervenção pouco cívica. Mas não resisto a um sorriso e, nas melhores manifestações de criatividade, mesmo até um pequeno riso, quando observo, na via pública, algumas verdadeiras obras de arte.

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Substituição

«(...) That unquenchable hunger, that hollowness at the center, does speak to something real - to a profound emptiness at the heart of the very culture that spawned Donald Trump. And that hollowness is intimately connected to the rise of lifestyle brands, the shift that gave Trump an ever-expanding platform. The rise of the hollow brands - selling everything, owning next to nothing - happened over decades when the key institutions that used to provide individuals with a sense of community and a share identity were in sharp decline: tightly knit neighborhoods where people looked out for one another; large workplaces that held out the promise of a job for life; space and time for ordinary people to make their own art, not just consume it; organised religion; political movements and trade unions that were grounded in face-to-face relationships; public-interest media that strove to knit nations together in a common conversation.

All these institutions and traditions were and are imperfect, often deeply so. They left many people out, and very often enforced an unhealthy conformity. But they did offer something we humans need for our well-being, and for which we never cease to long community, connection, a sense of mission larger than our immediate atomized desires. These two trends - the decline of communal institutions and the expansion of corporate brands in our culture - have had an inverse, seesaw-like relationship to one another over decades: as the influence of those institutions that provided us with the essential sense of belonging went down, the power of commercial brands went up.»

No is not enough, Naomi Klein

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Fala-se de tendências a propósito da moda.

Não faz muito sentido: a ser alguma coisa, a moda é altamente cíclica. Com alguma componente irregular, aqui e ali.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

domingo, 17 de setembro de 2017

Se isto não chega para um gajo ficar informado

Para além dos habituais cadernos e revista, o Expresso deste fim-de-semana trazia também: uma revista Portugal em destaque, o jornal Vanguarda sobre actualidade em Angola, o jornal Mercado, o jornal da região de Cascais, publicidade ao Masters de Padel que está a decorrer no Estádio Nacional, publicidade do Teatro Municipal Joaquim Benite em Almada e o guia de Outono do Corte Inglês.

sábado, 16 de setembro de 2017

Não te consigo dizer que foi esperado.

Porque a verdade é que não estava à espera. Mas também não te consigo dizer que foi inesperado. De certa forma, contava com isso. Para lá da sensação de óbvio associada à retrospectiva. Se não tivesse acontecido não teria sido uma surpresa. Mas ter acontecido, lá bem no fundo, tão-pouco é surpreendente. Um inesperado esperado. Ou um esperado inesperado.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Sleep on it

Nos momentos em que a noite mais poderia ser boa conselheira é quando ela, na prática, menos consegue ser.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

sábado, 2 de setembro de 2017

Serradura

«A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, de perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.»

Mario de Sá Carneiro

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Liberdade

«It [free economy] gives people what they want instead of what a particular group thinks they ought to want. Underlying most arguments against the free market is a lack of belief in freedom itself.»

Capitalism and freedom, Milton Friedman

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

É difícil ter um Master Card

São inúmeras as vezes que me fazem a pergunta "o seu cartão é Visa?". Esta pergunta, aparentemente banal, inofensiva e, acima de tudo, objectiva, é, afinal, de resposta dúbia. Porque, levada à letra, a resposta só pode ser negativa - trata-se de um Master Card. Mas a pergunta é normalmente substituta da verdadeira pergunta, seguindo aquele costume de associar uma determinada marca a um produto: tal como o Black&Decker substitui a palavra berbequim, Visa aqui substitui cartão de crédito (por oposição ao de débito que é, corriqueiramente, designado por Multibanco). Ou seja, pensando um passo à frente, a resposta deveria ser positiva, embora seja objectivamente negativa. Não é fácil.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Autárquicas

Nas zonas onde o passeio foi levantado, há um letreiro onde se informa que os trabalhos em curso se destinam a colocar caravelas na calçada portuguesa. Isto seis meses depois da comemoração do final das obras na Avenida da República.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Jazz em Agosto 2017 trouxe um toque humano aos jardins da Gulbenkian

(Publicado originalmente aqui)

O auditório ao ar livre da Fundação Calouste Gulbenkian encheu-se uma vez mais para o Jazz em Agosto que, este ano, decorreu entre 28 de Julho e 6 de Agosto. A 34ª edição do festival contou com catorze concertos, numa amálgama das tendências actuais do jazz moderno.

Antes de dizer seja o que for sobre o ali decorreu, as regras da boa crónica, assim como da lisura para com os leitores, levam-me a começar este texto por fazer uma espécie de declaração de interesses. Sou um grande apreciador dos Human Feel e, em particular, do saxofonista Andrew D’Angelo. Por isso, é altamente provável que este texto sobre o Jazz em Agosto de 2017 resulte particularmente enviesado. Altamente provável é, como quem diz, o mais certo. Quase de certeza. Vá, seguramente. Mesmo que não intencionalmente. Pelo que, o melhor é assumir logo à partida o enviesamento e fazê-lo intencionalmente.

Donde, e para ir direito ao assunto, sem rodeios, começo de imediato por abordar o concerto do segundo sábado do festival. E, só depois de o deixar ficar para trás, faço algumas notas sobre outros momentos altos do festival deste ano. Aqui vai.

Human Feel

Não costumo dar muita atenção ao percurso de vida dos artistas. A de Andrew D’Angelo é uma excepção. A história de como, relativamente novo, teve de enfrentar um cancro continua a ser-me marcante. Para os mais interessados, o relato, na primeira pessoa, ainda está no blog do seu site. Que na altura, também serviu para realizar uma petição para angariar o dinheiro necessário para que pudesse receber tratamento médico, uma questão que continua na ordem do dia, numa altura em que o actual presidente americano tenta, por enquanto sem sucesso, revogar a chamada Obamacare.

A noite em que o vi tocar no Village Vanguard – algures em Setembro de 2008 – como convidado da formação de Bill McHenry (como me ajudaram a recordar), que contava com a presença de peso de Paul Motian na bateria (como também me ajudaram a recordar), foi pouco depois da sua recuperação. D’Angelo deu um concerto notável: McHenry deu-lhe imenso espaço para que brilhasse e soltasse toda aquela música visceral que lhe sai das entranhas, com uma energia e uma força que não são comuns.

Andrew D’Angelo pisa o palco do auditório ao ar livre com um boné garrido na cabeça, inúmeras cores que contrastam com a camisa roxa. Kurt Rosenwinkel tem aquela pseudo-boina com pala – à falta de melhor designação – de sempre, imagem de marca. Chris Speed tem um fedora branco, que o faz ganhar mais uns centímetros, relevantes para quem é quase mais pequeno do que o saxofone tenor que empunha.

“Ready?”, ouve-se D’Angelo perguntar quando se vira para trás, para os colegas de palco, após o que a melodia arranca, a duas vozes nos dois saxofones, à qual se junta uma terceira voz do avião da TAP que se faz à pista do aeroporto, convidado assíduo do festival, não falha uma edição que seja.

Uma marca deste quarteto: uma espécie de solos, paradoxalmente, a quatro mãos, com os dois saxofonistas a enveredar por um dado caminho que se cruza e se completa na perfeição. Por seu turno, Rosenwinkel acaba por assumir um papel mais de suporte nesta formação: junta-se a Jim Black numa secção rítmica que tem tanto de atípica como de eficaz.

Para usar uma analogia futebolística, é uma espécie de formação com dois pontas-de-lança – os saxofonistas – e dois centrais – o guitarrista e o baterista –, um dos quais é um lateral adaptado para jogar naquela posição e que pega de estaca – o guitarrista. Mas tal não invalida que este último não tenha os seus momentos debaixo dos holofotes, como no início do terceiro tema, sozinho na grande área em zona de finalização, só encostar. Enfrenta o público sem os companheiros mas sem estar sozinho, munido de uma panóplia de efeitos – alguns dos quais comprados a correr no próprio dia porque parte ficou perdida na viagem – na guitarra e electrónica, num resultado indiscritível, que só é interrompido pela entrada explosiva de D’Angelo.

Volvida uma hora e pouco de música, temas novos – o quarteto editou o álbum Party Favor o ano passado – e alguns retirados do baú, e Chris Speed dirige-se ao público antes do último tema do set. Agradece o convite da organização, a presença do público, o prazer de tocar com os amigos neste beautiful festival, beautiful place, beautiful city, beautiful country, beautiful people, beautiful language e termino aqui, sem aspas, porque não posso, de todo, garantir a precisão da citação.

High Risk

Ao primeiro olhar, o que de imediato me saltou à vista foi o aspecto particularmente jovem e imberbe de dois elementos: o guitarrista Rafiq Bhatia e o baterista Ian Chang. Faz-me pensar em trabalho infantil. Uma pesquisa subsequente veio a revelar que possa eventualmente ter exagerado: o primeiro tem 29 anos; o segundo não consegui descobrir (onde anda a Wikipedia quando precisamos dela?). Não obstante, a qualidade de ambos é invejável para, ainda assim, a pouca idade que têm. Dave Douglas, um repetente com cadastro neste festival, aparece aqui como uma espécie de mentor, um olheiro que soube escolher como se rodear de jovens talentos.

Bhatia traz uma telecaster azul linda, que contrasta com uns chinelos nos pés parecidos aos que uso na natação. A guitarra alimenta dois amplificadores Fender, lado a lado, não sem antes passar por uma panóplia de pedais e efeitos, que terão bastante uso ao longo do concerto. Chang é fininho e tem um aspecto meio desengonçado a tocar, cabeça projectada para a frente, os braços longos. Faz lembrar o Brian Blade não só por isso, mas também porque toca que se desunha.

Esta é uma banda cool, que transpira groove por todos os lados. Uma mistura de jazz com música electrónica, em larga medida conduzida pelo aparelho posicionado em frente a e manuseado pelo baixista Jonathan Maron, mas que tem também um sustento muito grande no enorme conjunto de recursos do baterista (não sei se já vos disse que toca que se desunha). E tem à disposição o som distorcido da tal telecaster azul, que nos enche de sons enquanto o miúdo de 29 anos e chinelos de piscina se contorce, em frases rápidas e notas suspensas, em bends e slides, repleto de efeitos e, aqui e ali, um feedback controlado.

Douglas apresenta a banda ao microfone e termina dizendo “there’s the moon”, “it’s not often we get to play watching the moon”. Mais à frente pedirá desculpa pelo presidente americano, “we have to remind you we didn’t vote for him”, numa altura em que penso que os mais novos nem idade devem ter para votar (têm, estava a exagerar). Termina com palavras repletas de carga política e escolhe, para o encore, um tema que compôs inspirado nos acontecimentos de Ferguson, no Missouri. Para ser inteiramente justo – e pode ser que esteja a sobreavaliá-los para compensar o meu já confessado enviesamento –, este concerto que encerrou o festival foi melhor que o da noite anterior dos Human Feel.

Sélébéyone

Regressemos ao primeiro concerto desta edição, na 6a feira dia 28. Sélébéyone, o nome do novo projecto de Steve Lehman, um termo da língua Wolok, falada no Senegal, Gâmbia e Mauritânia, e que significa “intersecção”. Neste caso – e de acordo com a definição da geometria euclidiana – resulta num ponto, contacto entre as rectas do jazz do frontman da banda e do hip hop de HPrizm e Gaston Bandimic. Uma quase simbiose, onde por vezes, às duas vozes daqueles dois rappers – tanto em inglês como na tal língua impenetrável – se junta a do saxofone de Lehman. Uma voz adicional e pujante, intensa e frenética, insistente e irrequieta.

O saxofonista diz-nos que a primeira vez que esteve no jazz da Gulbenkian foi há 17 anos (quando tinha 21), veio a acompanhar Anthony Braxton. Regressam para o encore, Lehman agradece o entusiasmo do público que pede mais música. Diz-nos que vai contar à mãe e que ela vai estranhar: “they wanted to hear more?!?”. Queríamos, sim senhora, garanto-lhe.

Starlite Motel e Life and Other Transient Storms

Duas palavras para terminar. A primeira para os noruegueses Starlite Motel, um projecto dirigido pelo baterista Gard Nilssen. O único não norueguês desta formação é o americano Jamie Saft, que se senta aos comandos de um Hammond e outros teclados e, aqui e ali, põe no colo a lap guitar que, após um set de uma tema único de cerca de uma hora, enche de uma sonoridade folk o encore com que terminam. Não resisto a fazer um destaque ao baixista desta banda, com um som brutal e incisivo, por vezes obtido com uma baqueta de bateria e, outras, com um conjunto de efeitos, manuseados de joelhos no chão.
A segunda para o projecto da jovem trompetista portuguesa Susana Santos Silva, que subiu ao palco no primeiro dia de Agosto. Life and other transient storms vive bastante da forma como as duas mulheres dos sopros – para além de Susana, Lotte Anker nos saxofones – tocam as suas melodias entrecruzadas e se deixam acompanhar e suportar pelos restantes membros, num tema único que cobre o set. Há uma quase componente onírica, pontilhada por elementos como aquela espécie de trinado, feito com a flauta, que deu início ao encore único. Houve uma baixa na formação: o pianista Sten Sandell foi impossibilitado de viajar até Lisboa por doença, mas foi devidamente substituído por Rodrigo Pinheiro.


E aqui ficam algumas impressões do Jazz em Agosto de 2017. Terminado mais uma edição desta festival referência, resta esperar pela edição do próximo ano.

sábado, 5 de agosto de 2017

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

sábado, 24 de junho de 2017

Ainda a propósito de Miguel Beleza

Duas coisas. Primeiro, a presença de espírito para não perder a noção daquilo que somos - e continuamos a ser - apesar do que possamos ter alcançado. Ou, dito de outra forma, (e taulogicamente) para não nos acharmos mais do que aquilo que somos. E segundo, o sentido de humor. Que não somos menos sérios por sermos irreverentes e largarmos uma piada em situações sérias. Parafraseando (ou na, volta, literal e inadvertidamente citando) o Ricardo Araújo Pereira, a circunspecção não é sinónimo de seriedade.