sexta-feira, 22 de maio de 2020

Prisão domiciliária - 73º dia

Em Roma sê romano: coloquei duas salsichas bojudas na frigideira quente, ao mesmo tempo que um bocado de arroz fervia num pequeno tacho. As salsichas têm um formato arredondado, o que faz com que repousem naturalmente em alguns lados e outros fiquem naturalmente sem contacto com a superfície quente. Para evitar que partes ficassem com uma coloração rosado-crua e outras escuro-carbonizada, fui ajeitando, de garfo e faca na mão, para forçar que o calor fosse uniformemente aplicado. Tarefa nem sempre fácil, uma vez que se tratava de duas e não apenas uma mas, devo dizer, estava a sair-me relativamente bem quando, já perto de um grau de fritura satisfatório, um som estridente e ensurdecedor (e enlouquecedor) se fez ouvir pelo apartamento, bem como, calculo, por toda a vizinhança.

Tratava-se do pequeno aparelho redondo, branco, colocado no tecto da sala, a que vulgarmente chamam detector de incêndio, e que gritava a plenos pulmões, com uma pequena luz vermelha a pulsar. Não tive muito tempo para aprofundar a profunda (pleonasmo à parte) falta de lógica: já fiz tanta coisa nesta cozinha com igual grau de frigideira, não se entende o porquê desta queixa súbita e histérica. Atravesso a sala de frigideira na mão (não tentem isto em casa), abro a porta que dá para varanda e ai coloco a fonte do sinistro, longe da fonte do ruído. De seguida abro todas as janelas possíveis e imaginárias (esta casa tem mesmo muitas janelas), abro a porta do quarto, que tinha fechado por causa do cheiro, e também aí escancaro as janelas e, finalmente, a porta da rua, para forçar uma corrente de ar.

O aparelho infernal não pára. Já a imaginar uma invasão de bombeiros, já a imaginar todo o género de explicações - juro que estava só a fazer o jantar, pode ver, ainda está na varanda, tem bom aspecto, não tem? Não senhor, não fumo! - reparo, repentinamente, que há um pequeno botão, uma espécie de uma patilha mesmo ao lado da irritante luz vermelha que pulsa freneticamente. Pego na cadeira, ponho-me em cima, e carrego naquela coisa em desespero de causa. O barulho continua. Carrego novamente, com mais convicção, com muita mais convicção, com a convicção de quem está farto desta chinfrineira e só quer o jantar que lentamente arrefece ao ar livre da varanda.

O aparelho infernal não pára. Desisto, salto da cadeira, quem te disse que aquela patilhazita é para se carregar, se calhar aquela porcaria daquele botão não serve para nada ou então serve para outra porcaria qualquer. Considero pegar nos papéis que me entregaram quando me mudei, com os contactos a utilizar em caso de emergência. Quando revolvo a cabeça à procura do local onde os guardei, sou obrigado a reconhecer que, de repente, tudo parece silencioso. Redirecciono a atenção da procura dos papéis para o aparelho infernal e reparo que se calou.

Pego na frigideira e ponho-a novamente na chapa, mais que não seja para voltar a aquecer as salsichas. Reparo que, na confusão, me esqueci do arroz, que começa a querer pegar ao tacho: retiro da chapa, mexo rapidamente e alegro-me por ver que não chegou a queimar. Ponho tudo no prato, onde já estavam os brócolos. Fecho quase todas as janelas e deixo só as que têm rede mosquiteira. Finalmente janto.

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