quarta-feira, 2 de março de 2022

Primatas como nós

«Sei que os meus pais não eram apenas aquilo que as minhas memórias de criança garantem que foram. Mas tive de chegar aos quarenta e um anos, tendo sido protagonista do medo, do falhanço, da imprudência, do enfado, do desgosto, da injustiça, do egoísmo, do remorso e da vergonha, para perceber que, embora sublimados na minha infância, eles seriam afinal como eu, como todos os outros: primatas de ânimo inconstante e satisfação temporária, julgando-se especiais de manhã e uma merda à noite; tão paralisados pela dúvida como errados nas certezas; irascíveis por estarem com fome ou sono; mesquinhos no exercício do poder, transportadores de arrependimentos, culpas e mentiras; trabalhando em algo de que não gostavam, ficando na cama numa manhã escura de janeiro; em pânico com a doença, cansados, com ciúmes, suscetíveis ao mau agoiro do boletim meteorológico; dispostos a morrer pelos filhos num dia, mas a atirá-los pela janela no outro.»

Filho da mãe, Hugo Gonçalves

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