domingo, 9 de abril de 2017

Chamava-me Daniel com cara de Francisco.

Achava que o meu nome não me assentava, vá-se lá saber porquê. Falava alto e bom som, com uma desenvoltura incaracterística, numa daquelas vozes que enchem qualquer sítio. Uma voz que saía da cadeira onde se sentava sempre, apropriada ao corpo doente, às pernas e ao tronco enfezados. Gritante o contraste que aquela cadeira especial fazia com as restantes cadeiras (normais) da sala de espera.

Respondi à pequena provocação mantendo o mesmo tom a roçar o jocoso. Um puto de 10, 11 anos a gozar comigo. E ficámos um pouco à conversa. Mas a certa altura não resistiu e baixou a guarda. Havia um grupo de pessoas mais à frente na outra sala e disse-me que o que queria mesmo era poder andar como eles. Largou-me esta frase na cara mas não teve a coragem de manter o olhar em mim, virou o pescoço e olhou para os outros.

Deixou-me a sofrer para lhe conseguir responder: que raio se diz? Não me lembro o que me saiu da boca (recalquei?), apenas fiquei com a impressão - ténue, dado o tempo que já passou - que terei conseguido, ainda assim, desfazer aquele aparente nó górdio em que a conversa se tinha transformado. A morder-me todo por dentro.

É que, pior do que angústia da consciência da sua limitação, dificilmente não teria noção do seu próprio desfecho necessariamente precoce. Que, entretanto, já deverá ter acontecido: passaram anos suficientes para que a sua longevidade injustamente reduzida tenha chegado ao fim.

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