sexta-feira, 28 de setembro de 2018

O médico gestor

(Declaração de interesses: este texto é da autoria do meu pai, que acedeu ao meu repto para aqui o publicar. Traça um retrato da evolução da medicina ao longo das décadas e do seu estado actual, pelos olhos de quem assistiu a todas estas transformações na primeira fila.)


O Estado preocupou-se pouco com a organização e gestão dos hospitais até à década de setenta do século passado. Preferiu delegar esse encargo nas Misericórdias. Eram estas instituições que, por todo o país, se encarregavam de administrar as unidades de saúde, aliando a sua vocação e desejo à reiterada intenção do poder político.

Fora deste convénio tácito ficaram os hospitais centrais, localizados em Lisboa, Coimbra e Porto, que davam resposta aos doentes com situações clínicas mais graves, referenciados de todo o país. Estas grandes unidades, que funcionavam como fim de linha, também usufruíam desse estatuto de excepção porque sediavam as faculdades de medicina, o que acrescentava alguma complexidade ao planeamento da actividade e ao seu funcionamento global.

Estes casos particulares serviam ainda para mostrar que o Governo não alienava totalmente a sua responsabilidade, numa área tão sensível como é a saúde da população.

Em abono da verdade se diga que, nessa época, a gestão de um hospital público não apresentava as dificuldades que actualmente se lhe reconhecem. Os custos com pessoal constituíam a grande parcela de gastos e o ministério tutelar, através da tesouraria de cada instituição, assegurava essa despesa sem a questionar.

As outras rubricas assumiam muito menos importância. Os consumíveis, a alimentação (confeccionada internamente), os exames auxiliares de diagnóstico (apenas a radiologia convencional e uma gama limitada de análises clínicas) e o equipamento cirúrgico, tinham pouco impacto no dispêndio global.

Nos serviços farmacêuticos já pairava no horizonte uma preocupação séria: os encargos com os antibióticos. Estes fármacos consumiam metade dos orçamentos hospitalares para medicamentos e a atenção dos dirigentes começava a ser direccionada nesse sentido.

Não é exagero dizer que os clínicos mandavam nos hospitais, suportados no princípio de que a medicina não se faz sem médicos. Mesmo quando não manifestavam disponibilidade para integrar os conselhos de administração, exerciam a sua influência através dos órgãos técnicos, onde estavam obrigatoriamente representados. Por isso, não admira que tivessem sempre uma palavra importante a dizer na elaboração das grandes opções de investimento. Contudo, importa sublinhar que o maior crédito dos clínicos era a sua enorme capacidade técnica, alinhada com o interesse do doente e que, desta forma, acabava por condicionar muitas das decisões a tomar.

Perante este panorama geral, estava simplificada a tarefa dos directores dos serviços de acção médica. Ficavam libertos para fazer o que mais gostavam: equacionar os problemas dos doentes e tratá-los de acordo com o estado da arte. Nesta lógica, passavam muito tempo na enfermaria, dando grande atenção à vertente clínica, envolvendo-se no estudo e discussão das situações patológicas mais complicadas e que, por isso, colocavam problemas de diagnóstico pertinentes.

Das suas tarefas obrigatórias fazia parte a visita semanal à enfermaria. Nesse momento, carregado de simbolismo, reuniam toda a equipa e, sem pressa, com gosto e um máximo de rigor estimulavam o interrogatório e a observação meticulosa e sistemática dos doentes. Interferiam com frequência na colheita de dados de anamnese e participavam nos vários passos do exame físico. Na posse dos elementos relevantes, não era raro que logo ali, em espaço aberto, promovessem a abordagem do diagnóstico diferencial. Essa discussão prolongava-se no recanto de uma sala e nas acaloradas reuniões clínicas.

Esta metódica sequência assistencial tinha outro objectivo nobre: dar formação aos mais jovens, preparando o seu futuro profissional. Todos os protagonistas neste ritual desejavam ter uma trajectória de sucesso nas exigentes carreiras médicas e conseguir, se possível, um lugar no quadro das instituições. Ora, esta aprendizagem prática era fundamental para atingir esse desiderato, embora necessitasse de ser completado com o estudo teórico.

Médicos e doentes olhavam-se de frente, sem quaisquer barreiras administrativas ou tecnológicas a interpor-se entre eles. Não se falava em listas de espera para consultas, execução de exames ou actos cirúrgicos. A situação clínica e o bom senso estabeleciam as prioridades e, caso fosse necessário, havia um moderador que tinha a última palavra, a que se afigurasse mais adequada ao interesse do enfermo.

Se eram os médicos a influenciar a gestão, faziam-no através dos directores de serviço, que estavam no topo de uma cadeia hierárquica bem definida e que ninguém questionava. Todos estes aspectos ajudavam a retratar a figura do médico sábio que, embora paternalista, desempenhava a sua actividade com grande sentido de humanidade e de proximidade ao doente. Desta forma, era colocado no centro do sistema, dispensando os chavões que hoje, tão a despropósito, estão em voga. E quando não era possível curar ou melhorar a sua doença, havia palavras para o confortar…

Após a revolução de Abril, este estatuto privilegiado do médico sobreviveu às poderosas comissões de trabalhadores, porque seria de uma grande irresponsabilidade interferir numa área tão sensível. Mas percebia-se que, mais cedo ou mais tarde, a trajectória reformista iria trazer alterações nas cada vez mais complexas estruturas hospitalares, sendo certo que o papel dos clínicos iria ser questionado. A progressiva valorização da promoção da saúde, e não só dos seus aspectos curativos, também terá contribuído para alterar a relação de forças existente.

Administradores hospitalares e enfermeiros, algumas vezes em estratégias concertadas, encontravam-se na linha da frente para lhes disputar a liderança. Os primeiros foram aumentando em número e assumiam um protagonismo crescente. Jogava a seu favor a coesão de que sempre deram provas e os apoios que tinham nos corredores dos ministérios. Perceberam que a sua hora tinha chegado. Seria uma questão de tempo e de espreitar as oportunidades para acederem à gestão de topo.

Os enfermeiros também acharam que estava na altura de se libertarem da tutela técnica dos médicos, um desejo muito antigo. Dava asas a essa ambição a melhoria da sua preparação profissional, fomentada de forma sistemática pelos organismos que os representavam.

O percurso seguido pelos médicos ia em sentido contrário, revelando uma atitude de progressivo distanciamento da orgânica interna dos hospitais. Esta postura também ajudou a criar a ideia de que se preocupavam pouco com as contas e que descartavam as tarefas burocráticas. Estava criado o ambiente propício ao seu afastamento gradual dos gabinetes de comando.

Esta onda desfavorável foi ampliada pela degradação da formação pós-graduada e pelo facilitismo que passou a imperar nos concursos de progressão na carreira médica, que no passado tanta importância tiveram para a criação de quadros competentes. A descida da fasquia de exigência do sistema de selecção levou a que nem sempre os melhores ocupassem os lugares para que estavam destinados. A evolução neste sentido não podia deixar de trazer consequências na manutenção da sólida e responsável hierarquia, que caucionava as boas práticas e a aprendizagem.

Neste contexto, antevia-se um choque de culturas entre a actividade clínica e uma nova organização administrativa tida por disciplinada, mas algo rotineira e muito parcelar. Outros factores importantes contribuíram para que este confronto de ideias e de estratégias não fosse adiado por muito mais tempo.

O notável progresso médico, que aconteceu a partir da década de 80, agudizou as contradições deste processo. Surgiram as novas técnicas de diagnóstico e de terapêutica – ecografia, tomografia axial computorizada (TAC), ressonância magnética (RM), angiografia digital, tomografia por emissão de positrões (PET), cintigrafias e endoscopias –, os medicamentos inovadores, de elevado custo, sobretudo para a sida, doenças oncológicas, reumatismais e hepatite C. O aumento da expectativa de vida, com o rosário de doenças crónicas que se lhe associam, também deu um contributo significativo para o disparo dos custos com a actividade assistencial.

Perante esta realidade (doentes graves, actos médicos complexos e gastos a subir em flecha), é natural que os governantes quisessem direcções que imprimissem rigor na gestão, sobretudo nas áreas da farmácia e do aprovisionamento, mais do que focarem-se na qualidade assistencial. Este cenário consolidou a noção de que os médicos eram uma má aposta para se sentarem ao leme destes barcos gigantes. Apesar dos ventos desfavoráveis, o bom senso de alguns ministros levou-os a não prescindir dos clínicos na direcção das unidades de saúde mais complexas. Na grande maioria dos casos estiveram à altura do cargo, com desempenhos exemplares.

Mas o que mais abanou o exercício da actividade clínica tradicional e que teve uma enorme repercussão na vida interna dos hospitais foi a introdução das inovadoras técnicas de diagnóstico. Com elas passaram a visualizar-se “coisas invisíveis” e a descobrir processos patológicos que antes eram apenas imaginados. Do uso parcimonioso, até porque eram caras, passou-se à “adopção” generalizada. Estava aberto o caminho para a sua sobreutilização acrítica.

Com todas estas possibilidades postas ao dispor da medicina, nada podia ficar como dantes. Os médicos adaptaram-se à modernidade e a sua prática alterou-se. As especialidades que utilizavam técnicas passaram a ser disputadas pelos clínicos melhor classificados. Esta opção é compreensível, se tivermos em conta que quem as dominava passava a usufruir de um estatuto especial, e com proveitos económicos que não estão ao alcance de quem usa apenas o estetoscópio.

Esta conjuntura trouxe outras consequências, como a de impulsionar a superespecialização, até certo ponto justificada pelo progresso técnico e científico. Mas é sabido que se foi longe de mais, tornando quase mórbida essa tendência, quando se formaram peritos de técnicas e não apenas de áreas de conhecimento.

Com a mudança das mentalidades percorreu-se um caminho de afastamento da disciplina mãe. Centraram-se à volta do órgão ou sistema em causa, aproximando-se das especialidades afins. Desta forma, perdeu-se a intervenção coordenadora da medicina interna e da cirurgia geral, que deviam ter um papel importante na avaliação crítica do que se faz e na racionalização dos actos médicos. Só assim seriam integrados de forma eficaz e com rentabilidade máxima os enormes avanços tecnológicos.

Para chegar a um diagnóstico rápido das doenças os clínicos passaram a acreditar cegamente nas técnicas. Por isso, não admira que as peçam em catadupa, à espera que alguma delas traga a chave da equação. Nessa lógica, desvalorizam ou dispensam mesmo o precioso contributo da história clínica e do exame objectivo, que poderiam dar alguns elementos fundamentais para se chegar a bom porto. Se assim fosse, evitar-se-iam muitos trajectos erráticos no estudo do doente, que acaba por funcionar como uma peça da engrenagem criada.

Outro corolário lógico desta mecanização e “industrialização” da medicina é o afastamento, cada vez mais notório, do médico e do doente. As máquinas funcionam como um muro intransponível colocado entre eles. E o lema em voga é o de que não há tempo a perder com diálogos, porque os aparelhos têm de ser rentabilizados. Sem interlocutor com quem possam dissipar dúvidas, os doentes socorrem-se da Internet.

A informatização do processo clínico também contribuiu para criar este caldo de cultura. A colocação de cruzes nos quadrados de folhas fotocopiadas dispensa as “maçudas” histórias clínicas a que os mestres antigos atribuíam grande importância. Os doentes referem, com frequência que, durante a consulta, o médico nunca orientou os olhos na sua direcção, desviando-os sistematicamente para o computador.

Existe outro problema de fundo relacionado com as novas técnicas: a falta da sua inserção no contexto clínico. Nunca se devia esquecer que a inocuidade de algumas não é absoluta e são falíveis, por mais sofisticadas que sejam. Visto o problema de outro ângulo, não se questiona a capacidade técnica de quem as faz e interpreta. Não entrar em linha de conta com estes factos pode levar a omissões e erros grosseiros, que dificultam o diagnóstico e resultam em claro prejuízo para o doente.

Noutra perspectiva, os médicos têm de lidar com lógica e bom senso perante alguns achados ocasionais, sem significado clínico. Se assim não for, cai-se na tentação de pedir novos exames, à espera que o mistério fantasma seja desvendado. Esta desfocagem da investigação, desviando-a do essencial, acrescenta riscos, gera custos e intensifica a ansiedade de quem sofre. Muitas vezes entra-se num verdadeiro carrossel de investigação académica, sem qualquer interesse para o esclarecimento da doença em causa.

A embriaguez dos clínicos com as técnicas criou mais um factor adicional para a degradação da afectividade inerente ao acto clínico. É indubitável que o notável progresso médico das últimas décadas acabou por introduzir barreiras na relação do médico com o doente.

Contudo, é a primazia dada aos indicadores clínicos, remetendo os doentes para segundo plano, a ameaça mais séria a este princípio ancestral. Por isso, a voragem pelos números é uma marca pouco louvável da moderna gestão hospitalar.

Para a evolução do exercício da medicina neste sentido, não sabemos qual o impacto que terá tido a perda de poder dos médicos. Mas é um facto que a escolha dos gestores nem sempre é a melhor. Nota-se a falta de uma boa organização que possa responder às dificuldades na orientação do doente.

Penso que para responder a esta disfunção é necessário o regresso do primado da clínica, que permita conciliar os avanços científicos com a humanização dos cuidados de saúde. Ora isto não é fácil, porque as circunstâncias são diferentes e a história não volta para trás. Remover conceitos, práticas, interesses e vícios é uma tarefa hercúlea. Mas, temos de sonhar, para poder acreditar que ainda é possível conciliar estes dois mundos tão diferentes, porque só desta forma se faria um aproveitamento óptimo da evolução da medicina em prol do doente, libertando-o do intrincado mosaico de interesses que grassa nas instituições.

Claro que a mudança depende sobretudo de opções políticas, mas tem de ser a governação clínica a recriar essa cultura. Nessa perspectiva, os directores clínicos devem encabeçar a cruzada, para alargarem o movimento de regeneração a todo o corpo clínico. Na conjuntura actual, a inversão da tendência até pode parecer uma utopia, mas um programa destes não é irrealizável. E não se invoque a escassez de verbas atribuídas à saúde para se ficar sentado a ver passar o filme, porque é sabido que o desperdício é enorme com a prática e a administração actual.

Evitando-se a duplicação de actos médicos, um pedido mais racional de exames e uma prescrição adequada de medicamentos, pondo de lado a obsessão e a futilidade terapêutica, muito se pouparia. Na formação dos clínicos também se deve incutir o princípio de que o exagero no pedido de exames auxiliares de diagnóstico e na prescrição de fármacos é um índice de má qualidade da medicina. Noutra vertente, tem de se respeitar a autonomia e dignidade dos doentes, levando-os a aceitar os limites da medicina.

Nesta lógica que se advoga, o hospital do futuro poderia inscrever na sua missão: «Aqui prestam-se cuidados de saúde de elevado nível qualitativo, de forma humanizada, com o tempo de internamento estritamente necessário e fazendo uma utilização racional dos medicamentos e dos exames de diagnóstico e de terapêutica. Também se procura que todos os actos assistenciais sejam feitos com o menor custo possível, porque os recursos são finitos».

No horizonte perfilam-se muitas dúvidas quanto ao futuro da medicina. Há quem diga que há cada vez mais licenciados nesta disciplina, mas menos médicos. Paralelamente, a revolução digital avança e vai trazer-nos a inteligência artificial. Por este andar, não tardará que os computadores façam o diagnóstico e a prescrição dos medicamentos. Será a oportunidade para os engenheiros da medicina entrarem em cena.

Teme-se que, nesta senda, seja enterrada a visão hipocrática da medicina, que é holística e não se foca apenas na doença, mas também na interface social. Nesta perspectiva, a medicina como ciência, técnica e arte na relação do médico com o doente deixará de fazer sentido. Antevendo este panorama, será licito acabar esta reflexão com a seguinte interrogação: se seguirmos por este caminho o doente será melhor tratado no futuro?


Álvaro Carvalho
Especialista em medicina interna. Ex-gestor hospitalar

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