quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Um Difusor De Aromas Musicais Chamado Jan Garbarek

(Publicado originalmente aqui)

A funcionária do CCB sobe as escadas do Grande Auditório a correr, ao mesmo tempo que fala para o punho como nos filmes, qual agente dos Serviços Secretos encarregado de proteger o presidente americano. Prepara-se para ir rapidamente buscar mais um espectador ao topo da plateia e encaminhá-lo até ao seu lugar, numa altura em que a hora de início se aproxima perigosamente. No final de mais um trajecto, agita o panfleto relativo ao concerto em frente à face, tentado repelir o calor.

Já Jan Garbarek tem a campânula de um saxofone em frente à sua face, que tapa sensivelmente a metade inferior, na fotografia do outdoor do mesmo concerto. No canto inferior direito, num círculo vermelho, lê-se: «O CCB presta homenagem e dedica este concerto a José Duarte, por ocasião dos 50 anos do programa “Cinco Minutos de Jazz”».

É um dos nomes mais badalados do jazz escandinavo, com um percurso que já o juntou, entre outros, a Keith Jarrett, Gary Peacock e Charlie Haden. A Garbarek é associado um estilo de jazz ambiental, como se o saxofonista fosse uma espécie de difusor de aromas ou um pot-pourri. Há, inclusivamente, quem lhe atribua, nem sempre de forma elogiosa, um rótulo de new age, mormente aqueles mais ortodoxos que se identificam com uma corrente de jazz mais tradicional.

Se a inspiração no mundo da música popular escandinava é a nota dominante, a música de Garbarek não se cingiu apenas àquela sua região natal – está repleta de outras fontes – neste sentido, talvez o termo pot-pourri, na acepção musical, ganhe alguma aderência –, espelhadas nas inúmeras colaborações com músicos de outras latitudes, com especial destaque para a música indiana. E isso nota-se na composição do seu quarteto: Rainer Brüninghaus, pianista que o acompanha há muitos anos, o “nosso” baixista brasileiro Yuri Daniel e o indiano Trilok Gurtu na bateria e percussão.

Há uma certa solenidade latente nos gestos e nas posturas, da qual me lembrava da única outra vez que vi o músico norueguês há uns bons anos. Por exemplo, na forma como os músicos tomam os respectivos lugares e fazem uma vénia de agradecimento ao público de uma forma quase sincronizada, mais ou menos como as moças da natação nos Jogos Olímpicos. Uma espécie de vénia em uníssono, para usar a imagem musical equivalente e, desta forma, recorrer à sinestesia.

Mas essa quase formalidade e distanciamento não duraram muito, foram rapidamente desfeitos. Talvez para isso tivesse contribuído o ritmo, que parece ter ganho força à medida que o espectáculo foi progredindo: de um tema inicial, lá está, bastante ambiental, quase introspectivo, com notas longas e prolongadas, o set estava, pouco depois, repleto de elementos rítmicos e uma dinâmica que contagiou o público – será este fenómeno o equivalente musical das alterações climáticas?

Para isso também ajudou bastante a atitude quase paternalista de Garbarek que, qual chefe benevolente, inúmeras vezes ao longo do concerto deu todo o espaço possível para os seus músicos brilharem. Foram vários os solos sem qualquer acompanhamento, que arrancaram ovações ruidosas da plateia, e que ocuparam uma parte muito substancial das cerca de duas horas e pouco de concerto. Em particular, o baterista/percussionista, na última exibição, utilizou uma série de instrumentos, incluindo a sua voz e estalidos com a língua, assim como um balde com água: um milagre o microfone ter sobrevivido aos salpicos provocados pelas pancadas mais fortes. E isto sem deixar de fora um fabuloso solo de piano, que arrancou com sonoridades clássicas, passando pelo blues e ragtime, e outro de baixo, muito físico, com o Yuri Daniel, e o som crispy do seu baixo, a encher-nos de slaps, slides, legatos.

Nem por uma vez alguém dirige uma palavra que seja ao público. Não há lugar a apresentar os membros do quarteto. Nem sequer a um simples “obrigado”. Mas a comunicação não fica atrás de outros concertos em que as palavras abundam. Basta verificar as várias reacções efusivas do público, assim como a forma como se envolveu nas músicas, nos solos, batendo palmas mediante solicitação ou na ausência da mesma.

A camisa estilo lumberjack de Jan Garbarek leva-me até às paisagens nórdicas, com tudo o que têm de deslumbrante, assim como de selvagem e inóspito. Imagino-o sem o saxofone por um momento, a cortar lenha com um machado, um fjorde no horizonte a abrir um abismo daqueles de cortar a respiração, que dispensa quaisquer palavras. Talvez por isso o saxofonista norueguês seja pouco dado a utilizá-las. É que pensando bem, não são precisas para rigorosamente nada.

Sem comentários:

Enviar um comentário