quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O discurso contra a violência na televisão é algo que já vimos e ouvimos inúmeras vezes.

Pessoalmente, ouvi-o muitas vezes vindo da minha avó. Que a violência nos meios de comunicação é prejudicial e estimula a violência na vida real, especialmente no caso das crianças. Estamos a dar sugestões sobre como se mata e rouba.

Por estas e por outras temos a célebre “bolinha” vermelha, que nos avisa (e aos pais das crianças) quando a emissão que aí vem é particularmente violenta e não indicada aos mais sensíveis – tecnicamente, o símbolo também alerta para cenas de sexo, mas isso não suscitava grande preocupação por parte da minha avó. Ao alerta circular vermelho soma-se o horário fora de horas deste tipo de filmes ou programas, que normalmente só são emitidos já a noite deixou de ser uma criança.

Mas, ainda assim, há tanta oferta de conteúdos que retrata situações de violência nos horários mais normais, a roçar a adolescência da noite. E, nesses casos, sem “bolinha”. Basta ver a grelha de programação. Do “CSI” que procura criminosos olhando para borrifos de sangue e células epiteliais, ao “Criminal Minds”, uma equipa de elite especializada em casos de assassinos em série. Também há outras mais leves como o “Castle”, um escritor que segue polícias de Nova Iorque nas suas investigações criminais para obter ideias literárias e que acaba por dar sempre uma mão a resolver os mistérios.

Algumas destas séries têm requintes de malvadez. Por exemplo, Dexter, que dá o nome a uma série, trabalha como investigador forense de locais de crime e é, simultaneamente, um assassino em série. Captura as vítimas, imobiliza-as num local próprio para a execução, preparado de forma meticulosa para iludir as técnicas de investigação forense – há que admitir que a combinação de actividades deste personagem é invulgarmente conveniente. E depois espera pacientemente (e com notória excitação) que a substância que administra às vítimas para as atordoar no momento da captura deixe de fazer efeito. Só então desfere o golpe mortal, quando tem certeza que estão acordadas. E bem acordadas, depois de se aperceberem do sarilho em que estão metidas. Não as mata no conforto da anestesia; para além do castigo da morte, Dexter quer impor-lhes o castigo da percepção da sua morte (brutal) eminente. Há contudo uma atenuante que nos ajuda a criar uma certa empatia por este personagem: acontece que os seus alvos são outros assassinos – algo que nos ajuda a catalogá-lo como uma espécie de herói e aceitar o facto de que mata pessoas cruelmente a torto e a direito.

Como não gostar de uma série deste género? Macabra, é certo, mas particularmente original. Ao fascínio típico pelo crime que a maior parte de nós tem, sobretudo quando mete pessoas mortas – basta pensar nos género policial e na Agatha Christie – soma-se ainda uma certa dose de grotesco. É então que o cocktail se torna explosivo. Ainda outro exemplo: o Seven. Um filme perturbador e, a espaços, bastante grotesco. Mas, também, um filme fascinante, de culto.

Limite? A maior parte de nós assiste a este tipo de programação e não é violenta. Não andamos aos tiros e às facadas em pessoas só porque vemos imagens de violência na televisão, mesmo que seja em canais de alta definição. E depois, como estabelecer critérios para o que deve e não deve ser transmitido? Mesmo os mais acérrimos defensores de uma qualquer imposição de limites normalmente não consegue atacar filmes que pertencem à categoria de “sérios”, sobretudo se retratarem episódios sangrentos da História da Humanidade (aprender com os erros é importante, memória colectiva, etc.). Esta linha de argumentação suporta um filme como o Schindler’s List; já a violência gratuita do Kill Bill de Tarantino cai por terra. Mas não é à prova de bala. O problema é que também é possível argumentar o reverso da medalha, que a violência de Tarantino não é credível, que ninguém leva aquilo a sério de tão hollywoodesco que é – logo, não faz sequer sentido censurar o que, no fundo, não passa de uma gozação. De repente ocorre-me o Christ’s Passion que, confesso, é um filme que não agrada ao meu estômago (ocorre-me também que, no limite, poderíamos afirmar que um crucifixo é uma alusão a um acto de violência extrema).

Contradições? Há dias vi um episódio do “The Bridge” em que o chefe de cartel mexicano Fausto Galván, ao visitar o túmulo do filho, mostra a cabeça do assassino, aos pés da estrutura que suporta a urna, num frasco de vidro. Explica ao detective Marco Ruiz – que também procura vingança para o seu filho assassinado – como forçou a vítima a assistir à sua própria decapitação. Vi este episódio perto da altura em que circularam as notícias das mortes dos homens decapitados por membros do Estado Islâmico. A decapitação ou as imagens das cabeças decapitadas não foram, penso eu, veiculadas pelos meios de comunicação. Houve até alguma discussão deontológica entre os jornalistas sobre essa questão, em relação aos limites da sua profissão e se, no fundo, não estariam a propagandear ainda mais a causa terrorista mostrando essas imagens. E isto é ainda mais interessante tendo em conta que não me parece ter havido grande pudor em mostrar a cena da cabeça decapitada dentro de um frasco com um liquido. Ou, aliás, o episódio desta mesma série onde um miúdo é manietado dentro de um recipiente fechado de plástico que lentamente se vai enchendo de água até o planeado afogamento ser inevitável. Ou ainda, aliás, onde o autor da morte do miúdo é atacado na prisão e lhe tiram um olho com uma colher. A mesma série que, aliás, tenho seguido regularmente desde o ano passado. E a mesma série que, aliás, julgo, não tem “bolinha” vermelha e, tenho a certeza, não é transmitida fora de horas.

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