terça-feira, 3 de abril de 2012

Apanho o U sieben no centro da cidade. Rasga uma diagonal no sentido nordeste. Primeiro debaixo da terra – onde faz verdadeiramente jus ao nome de metro. Depois lentamente emerge onde a cidade já não é bem cidade, segue ao longo da estrada, separa os dois sentidos. Saio perto do fim da linha, atravesso, cruzo, caminho.

Há um mês que não fazia este percurso. Spring break, mais coisa menos coisa. Sigo para o corredor onde estão os cubículos insonorizados. De repente, reparo que me esqueci do papel com a indicação da sala em casa. Não sei onde me devo dirigir. Resolvo ficar à espera, há de estar ali alguém, há de passar ali alguém.

Não me engano. A senhora que só vi no primeiro dia de aulas do semestre anterior. Leva outro tipo perdido ao local correcto e, ao passar por mim, pergunta-me se sei para onde devo ir, ao que respondo que não. Gleich bei Ihnen. E volta passado poucos segundos, digo-lhe que tenho aula com o Rudi e ela pergunta-me pelo raio da folha – ich habe es zu Hause vergessen. Vai à procura e antes de ir atira-me o meu apelido em forma de pergunta só para confirmar. Ja genau, fico espantado por saber mas depois ocorre-me que devo o nome mais estranho que ali anda para ela. Volta informada passado pouco tempo e deposita-me com o Rudi.

Na bateria está um puto – diferente do do semestre anterior. Boné na cabeça, cabelo estiloso, óculos retro, calções a cair pelo rabo abaixo. Pergunto-me que raio terá acontecido ao Simon enquanto tiro a guitarra do saco. Eles vão falando, o Rudi pergunta-lhe o que é que ele costuma tocar. As respostas começam a não me agradar, não está habituado a jazz, o Rudi senta-se à bateria para lhe demonstrar que tipo de ritmo terá que fazer. E, de repente, entra um tipo alto, meio careca, camisa aos quadrados, terrivelmente alemão. Onde está a Claudia, a avó italiana que costumava pianar connosco? É aqui que percebo que as turmas foram mudadas. Eu que estava perfeitamente convicto que tudo ia permanecer igual.

O Rudi fala imenso e a mim só me apetece tocar. Estou cansado e esta hora e meia é a minha ideia de perfeito relaxamento apenas se não tiver que seguir uma conversa em alemão sobre técnicas corporais aplicadas a músicos. Sinto-me ficar rezingão, de trombas e tento, esforço-me para que não se note. Finalmente vamos tocar qualquer coisa, depois de duas, três ameaças falhadas. Satin Doll. O pianista chuta para mim a melodia, o baterista entra demasiado depressa, asfixia o balanço da música. A segunda tentativa sai melhor, a estrutura correcta mas nada de especial.

E depois o Blue Bossa, tábua de salvação enquanto não acordamos qual o repertório que vamos tocar. A melodia vai dos meus dedos para os do pianista, sou o primeiro a improvisar. Começo com uma frase longa grave. A cada sol que dou a tarola vibra que é um disparate, o som irrita-me. Subo para um registo mais agudo e deixo-me ir. A certa altura reparo que não estou a pensar muito, não estou a pensar quase nada, estou a sentir. Sinto quando tenho que ir buscar esta e aquela nota, quando tenho que criar dinâmica, quando estou a receber dinâmica da secção rítmica. Fecho os olhos e aprecio como se fosse a alma do recém–falecido que observa o cadáver que acabou de abandonar. A certa altura volto a mim, percebo que se calhar estou a esticar a corda. Abrando, faço uma frase conclusiva, passo a bola a outro.

O melhor solo surge sempre na primeira aula depois de uma certa pausa. Teoria: o cérebro aproveita o intervalo no treino constante e regular para arrumar as ideias e quando é chamado novamente a executar depois da pausa, produz algo diferente – preferencialmente melhor. É claro que o efeito surpresa dura pouco. A segunda aula é a do pior solo porque é nela que a expectativa sai frustrada. A surpresa só é surpresa uma vez. A partir daí é normal e rotina. O processo de evolução contínuo é penoso e demorado, os incrementos não são visíveis a quem está demasiado perto. Da mesma forma que apreciamos o quanto o miúdo cresceu quando não o vemos há séculos, não quando somos pais e nos habituamos aos centímetros extra a cada dia.

No final, enquanto espera que acabe de arrumar as tralhas, o Rudi felicita-me. Não lhe digo que acho que é capaz de ser o melhor que alguma vez fiz. Até me sair outro melhor. Enquanto caminho para o metro penso que deveria gravar as sessões. Depois penso melhor. À terceira vez que ouvisse só iria descobrir erros. Prefiro atribuir a responsabilidade de guardar o melhor solo que alguma vez fiz à falibilidade da minha memória.

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