Enquanto vais à água eles levam tudo. Eles não fazem mal mas tudo o que houver de bom eles levam.
Faço a pé o curto caminho da guesthouse até à praia de Tamarindos que, adivinhe-se, à excepção de um pescador que se cruza comigo pelo caminho, ao ir-se embora, não tem mais ninguém. O sofrimento de não ir à água não é muito grande, o tempo chuvoso e o mar não são convidativos. Isso e os mosquitos que, após atravessar as rochas ao fundo, que permitem aceder à praia seguinte, incomodam irritantemente, como é seu apanágio. Quando olho, vejo um enxame de moscas pousado no preto da mochila.
Ao final da tarde, enquanto espero pela barracuda grelhada e a banana frita com arroz do jantar, Mateus, o filho do casal, aborda-me, embora seja parco de palavras. Quer mostrar-me a bicicleta, a bola. A mãe, preocupada que o miúdo possa estar a incomodar o hóspede, liga-lhe o televisor. Na TVS está a dar telenovela brasileira.
De manhã, ao pequeno-almoço, a propósito da omelete com micocó, a planta local para cuja existência e propriedades afrodisíacas já tinha sido alertado na Roça Agostinho Neto, reitera a convicção de que “é bom para o homem”.
À noite, depois de jantar, bebes um chá de micocó e estás pronto para a cama.
terça-feira, 31 de dezembro de 2019
segunda-feira, 30 de dezembro de 2019
Uns minutos antes das 9h, a hora combinada, bate-me à porta do quarto a avisar que a boleia para o aeroporto já chegou.
Arrumo rapidamente as últimas coisas, desço o lance apertado de escadas. Dez minutos depois estamos à porta do pequeno terminal, que dá para a pequena pista, aberta no meio da densa floresta.
Enquanto uns funcionários tratam dos trâmites do check in, outros pedem para verificar a bagagem. Abro o saco e a mochila para que o funcionário possa passar a mão enluvada pelo interior. Completas estas medidas de segurança, regresso ao local do check in, onde me devolvem o passaporte e a minha impressão da reserva do voo, acompanhados de um bilhete que apenas tem o número do voo escrito à mão.
Ao lado, uma porta metálica abre para uma pequena divisória, dentro da qual outros dois funcionários tratam de percorrer os passageiros com aparelhos detectores de metais. Para demonstrar que não tenho nenhuma substância estranha na garrafa metálica, um deles pede-me que beba um pouco.
Cuidado com o degrau,
acrescenta quando transponho a porta para a sala de embarque. Algumas cadeiras à direita, na parede da esquerda, ao fundo, um televisor passa, em loop, um anúncio da fábrica de chocolates do Claudio Corallo. Calor, apesar da forte chuva que cai.
E é por causa dela que, pouco depois, funcionários com coletes entram na sala e, de forma quase solene, fazem o anúncio de que o voo está atrasado, que o avião não sairá de São Tomé antes do meio-dia, devido ao mau tempo. Somando uns 40 minutos de voo, o aparelho só deverá chegar pelas 12h40, mais o tempo de saída dos passageiros de São Tomé e embarque dos do Príncipe, calculamos que só um pouco depois das 13h deveremos arrancar, cerca de 3 horas depois da hora original.
Estou separado dos meus amigos de circunstância por duas cadeiras, ocupadas por duas portuguesas, que se levantam amiúde e falam muito e, por isso, não me deixam passar convenientemente pelas brasas. Queixam-se do calor e conseguem convencer as funcionárias a abrir mais janelas e a ligar as três ventoinhas do tecto. Uma delas repara que há uma rede wifi e pede a password a uma das funcionárias. Sigo-lhe as pisadas para avisar o fulano da empresa de aluguer de veículos, que está à minha espera no aeroporto de São Tomé, para me entregar o jeep. Enquanto digita a password no meu telefone, reparo que olha em frente: o código está escrito, a caneta, em letras e algarismos toscos, na parede amarela.
Alguns dos passageiros vão-se embora, os motoristas dos resorts de luxo levam-nos novamente para as instalações para que aguardem aí. A debandada é maior quando, pouco antes das 12h, recebemos um novo comunicado, uma vez mais com alguma pompa e circunstância: afinal, o voo já não vai sair de São Tomé senão pelas 14h, dado que persistem as condições adversas. Entretanto, no Príncipe, já havia parado de chover.
De repente, estamos só nós no pequeno terminal: eu, os meus companheiros de circunstância belgas e as 2 portuguesas. Os próprios funcionários desaparecem e não há nenhum sítio nas redondezas para onde possamos ir. A electricidade falha, ficamos sem ventoinhas e wifi. O belga, bem-disposto, brinca com a situação, que é inadmissível e que quer um reembolso. Acrescenta, em relação aos que regressaram aos resorts de luxo
They are tourists, we are travelers.
É a diferença, não trazemos a impaciência de quem vem para estes locais com a expectativa de que não vai haver nenhum impasse ou inconveniente.
Perto das 14h, os funcionários começam a regressar mas ainda não nos sabem dar nenhuma informação sobre o voo. Mas, aos poucos, os passageiros que foram esticar as pernas para os resorts – os tais turistas, na linguagem do belga – começam também a reaparecer. Trazem a boa nova de que o avião terá mesmo saído pelas 14h30.
A certa altura, há quem confunda o barulho de um carro com o das pás do bimotor. Falso alarme. Qual Fata Morgana, o Saab 340 faz-se à pista pelas 15h e picos, deixando umas 3 dezenas de pessoas extasiadas. O desembarque e reembarque são rápidos e, pelas 15h40, estamos sentados na máquina. A hospedeira embirra com a minha mochila porque estou sentado numa saída de emergência mas, como não a consegue encaixar nos compartimentos por cima dos lugares, acaba por a enfiar novamente debaixo do banco à minha frente.
Às 16h30 lá está o fulano à minha espera, com o meu nome num papel. Dá-me algumas indicações sobre o jeep e sobre o caminho até Neves. O sol põe-se pouco depois e os 40 kms em estrada esburacada, sem iluminação e com muita gente, levam-me hora e meia. Chego à roça onde vou passar a noite e estendo-me uma hora na cama até me chamarem para jantar.
Enquanto uns funcionários tratam dos trâmites do check in, outros pedem para verificar a bagagem. Abro o saco e a mochila para que o funcionário possa passar a mão enluvada pelo interior. Completas estas medidas de segurança, regresso ao local do check in, onde me devolvem o passaporte e a minha impressão da reserva do voo, acompanhados de um bilhete que apenas tem o número do voo escrito à mão.
Ao lado, uma porta metálica abre para uma pequena divisória, dentro da qual outros dois funcionários tratam de percorrer os passageiros com aparelhos detectores de metais. Para demonstrar que não tenho nenhuma substância estranha na garrafa metálica, um deles pede-me que beba um pouco.
Cuidado com o degrau,
acrescenta quando transponho a porta para a sala de embarque. Algumas cadeiras à direita, na parede da esquerda, ao fundo, um televisor passa, em loop, um anúncio da fábrica de chocolates do Claudio Corallo. Calor, apesar da forte chuva que cai.
E é por causa dela que, pouco depois, funcionários com coletes entram na sala e, de forma quase solene, fazem o anúncio de que o voo está atrasado, que o avião não sairá de São Tomé antes do meio-dia, devido ao mau tempo. Somando uns 40 minutos de voo, o aparelho só deverá chegar pelas 12h40, mais o tempo de saída dos passageiros de São Tomé e embarque dos do Príncipe, calculamos que só um pouco depois das 13h deveremos arrancar, cerca de 3 horas depois da hora original.
Estou separado dos meus amigos de circunstância por duas cadeiras, ocupadas por duas portuguesas, que se levantam amiúde e falam muito e, por isso, não me deixam passar convenientemente pelas brasas. Queixam-se do calor e conseguem convencer as funcionárias a abrir mais janelas e a ligar as três ventoinhas do tecto. Uma delas repara que há uma rede wifi e pede a password a uma das funcionárias. Sigo-lhe as pisadas para avisar o fulano da empresa de aluguer de veículos, que está à minha espera no aeroporto de São Tomé, para me entregar o jeep. Enquanto digita a password no meu telefone, reparo que olha em frente: o código está escrito, a caneta, em letras e algarismos toscos, na parede amarela.
Alguns dos passageiros vão-se embora, os motoristas dos resorts de luxo levam-nos novamente para as instalações para que aguardem aí. A debandada é maior quando, pouco antes das 12h, recebemos um novo comunicado, uma vez mais com alguma pompa e circunstância: afinal, o voo já não vai sair de São Tomé senão pelas 14h, dado que persistem as condições adversas. Entretanto, no Príncipe, já havia parado de chover.
De repente, estamos só nós no pequeno terminal: eu, os meus companheiros de circunstância belgas e as 2 portuguesas. Os próprios funcionários desaparecem e não há nenhum sítio nas redondezas para onde possamos ir. A electricidade falha, ficamos sem ventoinhas e wifi. O belga, bem-disposto, brinca com a situação, que é inadmissível e que quer um reembolso. Acrescenta, em relação aos que regressaram aos resorts de luxo
They are tourists, we are travelers.
É a diferença, não trazemos a impaciência de quem vem para estes locais com a expectativa de que não vai haver nenhum impasse ou inconveniente.
Perto das 14h, os funcionários começam a regressar mas ainda não nos sabem dar nenhuma informação sobre o voo. Mas, aos poucos, os passageiros que foram esticar as pernas para os resorts – os tais turistas, na linguagem do belga – começam também a reaparecer. Trazem a boa nova de que o avião terá mesmo saído pelas 14h30.
A certa altura, há quem confunda o barulho de um carro com o das pás do bimotor. Falso alarme. Qual Fata Morgana, o Saab 340 faz-se à pista pelas 15h e picos, deixando umas 3 dezenas de pessoas extasiadas. O desembarque e reembarque são rápidos e, pelas 15h40, estamos sentados na máquina. A hospedeira embirra com a minha mochila porque estou sentado numa saída de emergência mas, como não a consegue encaixar nos compartimentos por cima dos lugares, acaba por a enfiar novamente debaixo do banco à minha frente.
Às 16h30 lá está o fulano à minha espera, com o meu nome num papel. Dá-me algumas indicações sobre o jeep e sobre o caminho até Neves. O sol põe-se pouco depois e os 40 kms em estrada esburacada, sem iluminação e com muita gente, levam-me hora e meia. Chego à roça onde vou passar a noite e estendo-me uma hora na cama até me chamarem para jantar.
domingo, 29 de dezembro de 2019
Digo cobras e lagartos do caminho que, virando à direita à chegada à Roça Belo Monte, leva até às praias do nordeste da ilha.
A única indicação que tenho é a evitar descer até à praia Banana de carro, o dono da residencial alertou-me para uma secção que, à subida, é difícil de negociar. Por isso, no dia anterior, desci, a pé, a essa praia de difícil regresso. Segundo ele, de resto não há problema. Mas agora que tento chegar à praia Macaco, começo seriamente a duvidar dessa recomendação, enquanto tento manobrar o jeep pelo meio da terra, pedras e da lama.
Já relativamente perto, de acordo com as contas do GPS, a estrada bifurca e, nessa bifurcação, numa pequena construção abandonada, redonda, de tijolo e cimento, estão dois locais, que me desejam bom dia. Um deles aproxima-se de mim e pergunta-me onde quero ir. Aponta-me o caminho à minha esquerda que é, literalmente, um caminho de pedras. Espontaneamente solto um
Por aqui?
e ele conforta-me (ou tenta confortar) dizendo-me que está quase, estou perto. De facto, tem alguma razão: o caminho parece pior do que efectivamente é, basta descer devagar em primeira e, pouco depois, a praia surge.
Há algumas construções abandonadas ao longo do areal – que venho a saber a depois faziam parte de um projecto de resort turístico que acabou por não chegar a bom porto – e que dão um ar um pouco fantasmagórico ao local. O facto de não haver rigorosamente vivalma na praia também, devo dizer, contribuiu para essa sensação. Um pequeno pedaço de paraíso, de água azul e límpida, coqueiros e palmeiras a projectar sombra em parte da areia fina.
Passados alguns mergulhos e caminhadas na areia, surge um local, que me cumprimenta e volta a desaparecer, caminhando no areal. Pouco tempo depois, ouço um barulho por detrás de mim. Olho e vejo-o trepar um coqueiro com uma agilidade desconcertante. Uma vez no topo da árvore, manda uns quantos cocos para a areia e volta a descer com a mesma facilidade com que subiu. Bate fortemente com um dos cocos contra uma amurada da construção abandonada, retira-lhe a casca, abre uma pequena incisão com uma faca e, sem pronunciar uma palavra, oferece-me.
Já relativamente perto, de acordo com as contas do GPS, a estrada bifurca e, nessa bifurcação, numa pequena construção abandonada, redonda, de tijolo e cimento, estão dois locais, que me desejam bom dia. Um deles aproxima-se de mim e pergunta-me onde quero ir. Aponta-me o caminho à minha esquerda que é, literalmente, um caminho de pedras. Espontaneamente solto um
Por aqui?
e ele conforta-me (ou tenta confortar) dizendo-me que está quase, estou perto. De facto, tem alguma razão: o caminho parece pior do que efectivamente é, basta descer devagar em primeira e, pouco depois, a praia surge.
Há algumas construções abandonadas ao longo do areal – que venho a saber a depois faziam parte de um projecto de resort turístico que acabou por não chegar a bom porto – e que dão um ar um pouco fantasmagórico ao local. O facto de não haver rigorosamente vivalma na praia também, devo dizer, contribuiu para essa sensação. Um pequeno pedaço de paraíso, de água azul e límpida, coqueiros e palmeiras a projectar sombra em parte da areia fina.
Passados alguns mergulhos e caminhadas na areia, surge um local, que me cumprimenta e volta a desaparecer, caminhando no areal. Pouco tempo depois, ouço um barulho por detrás de mim. Olho e vejo-o trepar um coqueiro com uma agilidade desconcertante. Uma vez no topo da árvore, manda uns quantos cocos para a areia e volta a descer com a mesma facilidade com que subiu. Bate fortemente com um dos cocos contra uma amurada da construção abandonada, retira-lhe a casca, abre uma pequena incisão com uma faca e, sem pronunciar uma palavra, oferece-me.
sábado, 28 de dezembro de 2019
A residencial está localizada de frente para a igreja, onde está a haver uma celebração.
Do lado esquerdo da fachada da igreja, estão várias mesas de madeira compridas. As pessoas estão sentadas à conversa e a comer. Uma percentagem grande das raparigas tem vestidos brancos. O dono da residencial – nascido na roça Sundy, viveu 27 anos em Lisboa até regressar à ilha após a morte do pai, para tomar conta do negócio – explica-me que foram realizadas cerimónias religiosas (primeiras-comunhões, crismas) e as pessoas agora juntam-se para a festa. Tomo nota de um conjunto de dicas que me dá de sítios para visitar.
Saio para ver os edifícios que Estrela me apresentou na boleia conjunta. Vou até à rua que termina a praia. Duas raparigas estão sentadas na amurada. Faz-me lembrar o Malecon de Havana, embora, honestamente, não tenha assim tanto de parecido. Regresso por outra das ruas perpendiculares à praia e, depois de esperar um pouco debaixo de um telheiro para que uma carga de água passe, dirijo-me até à igreja.
É com algum espanto que reparo que a maioria das pessoas ainda ali está, apesar do dilúvio que acaba de cair. Mal tiro as primeiras fotos ao edifício e um grupo de miúdos vem ter comigo
Me pega
E eu certifico-me:
Querem que vos tire fotografias?
Fazem uma autêntica sessão fotográfica à minha frente – agora só eu, agora eu só com ele, agora só elas. Riem-se quando lhes mostro o resultado no visor da máquina. Recomeça a chuviscar e, a certa altura, tenho que lhes dizer que já chega.
Saio para ver os edifícios que Estrela me apresentou na boleia conjunta. Vou até à rua que termina a praia. Duas raparigas estão sentadas na amurada. Faz-me lembrar o Malecon de Havana, embora, honestamente, não tenha assim tanto de parecido. Regresso por outra das ruas perpendiculares à praia e, depois de esperar um pouco debaixo de um telheiro para que uma carga de água passe, dirijo-me até à igreja.
É com algum espanto que reparo que a maioria das pessoas ainda ali está, apesar do dilúvio que acaba de cair. Mal tiro as primeiras fotos ao edifício e um grupo de miúdos vem ter comigo
Me pega
E eu certifico-me:
Querem que vos tire fotografias?
Fazem uma autêntica sessão fotográfica à minha frente – agora só eu, agora eu só com ele, agora só elas. Riem-se quando lhes mostro o resultado no visor da máquina. Recomeça a chuviscar e, a certa altura, tenho que lhes dizer que já chega.
sexta-feira, 27 de dezembro de 2019
Bem-vindo à capital mais pequena do mundo,
diz-me quando, a seguir a mais uma curva, a estrada vai desembocar à entrada de uma pequena baía e se lê, numa placa de trânsito, Santo António. Indica-me, à direita, a esquadra da polícia e a prisão. Brincamos com o facto de a própria ilha, de si, ser uma prisão, quem vai conseguir escapar daqui. Esta é a praça principal e, ali ao fundo, é o Palácio do Governo Regional. Aquele é o edifício da Assembleia Regional. Não estejas já a dizer tudo ao Sr. Daniel senão ele fica sem nada para fazer.
interrompe ele com um sorriso. Mas ela continua:
E este é o único sítio onde há internet à borla – acredita que é importante saber (no dia seguinte, à noite, lembrei-me da advertência quando vi uns quantos jovens encostados às paredes, de telemóvel na mão). E ali é a minha casa, informa-me pouco depois (muito pouco depois). Despedimo-nos, ela com um até logo que nunca veio a concretizar-se.
Vínhamos no mesmo voo, no bimotor Saab da São Tomé Airways, com indicações em cirílico por baixo das escritas em português e tripulação ucraniana, que assegura a ligação de 40 minutos, entre São Tomé e o Príncipe, a poucas dezenas de passageiros. À chegada, estaria alguém da residencial para me levar do pequeno aeroporto para a povoação.
Sr. Daniel?
Perguntam-me assim que cruzo a porta, de saco às costas. Seguimos até ao estacionamento e ela acompanha-nos. Dentro do jeep, é ele quem nos apresenta, após algumas perguntas de circunstância sobre o voo e sobre a minha proveniência em Portugal. Diz-me que partilho o carro com uma personalidade importante. Ela afasta essa caracterização. Explica-me porque chove mais, demasiado, no Príncipe do que em São Tomé (onde há zonas de savana) e a erosão que está a causar nos terrenos e nas praias. O seu nome incomum – Estrela Matilde – ajuda-me a que seja capaz de o recordar mais tarde e a procurar na internet da residencial. Aqui fica uma reportagem da TVI sobre esta alentejana que assentou arraiais naquele sítio remoto.
interrompe ele com um sorriso. Mas ela continua:
E este é o único sítio onde há internet à borla – acredita que é importante saber (no dia seguinte, à noite, lembrei-me da advertência quando vi uns quantos jovens encostados às paredes, de telemóvel na mão). E ali é a minha casa, informa-me pouco depois (muito pouco depois). Despedimo-nos, ela com um até logo que nunca veio a concretizar-se.
Vínhamos no mesmo voo, no bimotor Saab da São Tomé Airways, com indicações em cirílico por baixo das escritas em português e tripulação ucraniana, que assegura a ligação de 40 minutos, entre São Tomé e o Príncipe, a poucas dezenas de passageiros. À chegada, estaria alguém da residencial para me levar do pequeno aeroporto para a povoação.
Sr. Daniel?
Perguntam-me assim que cruzo a porta, de saco às costas. Seguimos até ao estacionamento e ela acompanha-nos. Dentro do jeep, é ele quem nos apresenta, após algumas perguntas de circunstância sobre o voo e sobre a minha proveniência em Portugal. Diz-me que partilho o carro com uma personalidade importante. Ela afasta essa caracterização. Explica-me porque chove mais, demasiado, no Príncipe do que em São Tomé (onde há zonas de savana) e a erosão que está a causar nos terrenos e nas praias. O seu nome incomum – Estrela Matilde – ajuda-me a que seja capaz de o recordar mais tarde e a procurar na internet da residencial. Aqui fica uma reportagem da TVI sobre esta alentejana que assentou arraiais naquele sítio remoto.
quinta-feira, 26 de dezembro de 2019
Mau fígado
Enquanto não for determinado que outro órgão, para além do fígado, sofra da mesma maleita, declaro a expressão "cirrose hepática" um valente pleonasmo.
terça-feira, 24 de dezembro de 2019
Tribalismo
«(...), the claim that humans have an innate imperative to identify with a nation-state (...) is bad evolutionary psychology. Like the supposed innate imperative to belong to a religion, it confuses a vulnerability with a need. People undoubtedly feel solidarity with their tribe, but whatever intuition of "tribe" we are born with cannot be a nation-state, which is historical artefact of the 1648 Treaties of Westphalia. (Nor could it be race, since our evolutionary ancestors seldom met a person of another race.) In reality, the cognitive category of a tribe, in-group, or coalition is abstract and multidimensional. People see themselves as belonging to many overlapping tribes: their clan, hometown, native country, adopted country, religion, ethnic group, alma mater, fraternity or sorority, political party, employer, service organisation, sports team, even brand of camera equipment. (If you want to see tribalism at its fiercest, check out a "Nikon vs. Canon" Internet discussion group.)»
Enlightenment now, Steven Pinker
Enlightenment now, Steven Pinker
segunda-feira, 23 de dezembro de 2019
sábado, 21 de dezembro de 2019
Repentinamente
De um momento para o outro, o orçamento de Estado para a orçamento do Estado. Confesso que ainda não me habituei.
quinta-feira, 19 de dezembro de 2019
quarta-feira, 11 de dezembro de 2019
Estávamos a ver os Jogos Olímpicos, não me lembro há quanto tempo.
Ele sentado na cadeira à minha direita, eu no sofá. Estavam a decorrer as provas de atletismo e a transmissão ia acompanhando as diferentes modalidades agendadas para o dia. Uma delas era o lançamento de peso ou de martelo, não me lembro exactamente qual, mas era seguramente uma das modalidades de força. E, um aspecto sobre o qual não tenho a mínima dúvida, tratava-se da vertente feminina.
A certa altura, a câmara foca uma das senhoras possantes, de cabelo curto, que se preparava para mais um ensaio. Sentado ao meu lado, soltou um riso contido e, com um sorriso na cara, olhou para mim e perguntou-me se sabia como se chama a uma mulher daquelas na terra dele. Respondi que não sabia e preparei-me para o que aí vinha.
Macha
disse-me, e não resisti a rir-me deste (chamemos-lhe) feminino de macho, que não destoa terrivelmente numa terra onde também há cadelos, raparigos, tomatas e ervo (na era do correcto automático, é um desafio escrever estes termos). Mas há ainda uma particularidade relevante nesta palavra "macha": tal como em muitos outros sítios do país, o "ch" é pronunciado como se fosse precedido de um "t", ou seja, é como, por exemplo, o "tch" de "tchouriça". Ou seja, "macha", na prática, diz-se "matcha".
E esta é a razão pela qual sempre que ouço falar no chá tradicional dos japoneses me vem à cabeça uma senhora de equipamento de desporto e um dorsal e, sobretudo, com poucos traços alusivos à sua condição feminina.
A certa altura, a câmara foca uma das senhoras possantes, de cabelo curto, que se preparava para mais um ensaio. Sentado ao meu lado, soltou um riso contido e, com um sorriso na cara, olhou para mim e perguntou-me se sabia como se chama a uma mulher daquelas na terra dele. Respondi que não sabia e preparei-me para o que aí vinha.
Macha
disse-me, e não resisti a rir-me deste (chamemos-lhe) feminino de macho, que não destoa terrivelmente numa terra onde também há cadelos, raparigos, tomatas e ervo (na era do correcto automático, é um desafio escrever estes termos). Mas há ainda uma particularidade relevante nesta palavra "macha": tal como em muitos outros sítios do país, o "ch" é pronunciado como se fosse precedido de um "t", ou seja, é como, por exemplo, o "tch" de "tchouriça". Ou seja, "macha", na prática, diz-se "matcha".
E esta é a razão pela qual sempre que ouço falar no chá tradicional dos japoneses me vem à cabeça uma senhora de equipamento de desporto e um dorsal e, sobretudo, com poucos traços alusivos à sua condição feminina.
terça-feira, 10 de dezembro de 2019
Energia
«Energy channeled by knowledge is the elixir with which we stave off entropy, and advances in energy capture are advances in human destiny. The invention of farming around ten thousand years ago multiplied the availability of calories from cultivated plants and domesticated animals, freed a portion of the population from the demands of hunting and gathering, and eventually gave them the luxury of writing, thinking, and accumulating their ideas. Around 500 BCE, in what philosopher Karl Jaspers called Axial Age, several widely separated cultures pivoted from systems of ritual sacrifice that merely warded off misfortune to systems of philosophical and religious belief that promoted selflessness and promised spiritual transcendence. Taoism and Confucianism in China, Hinduism, Buddhism, and Jainism in India, Zoroastrianism in Persia, Second Temple Judaism in Judea, and classical Greek philosophy and drama emerged within a few centuries of one another. (Confucius, Buddha, Pythagoras, Aeschylus, and the last of the Hebrew prophets walked the earth at the same time.) Recently an interdisciplinary team of scholars identified the common cause. It was not an aura of spirituality that descended on the planet but something more prosaic: energy capture.»
Enlightenment now, Steven Pinker
Enlightenment now, Steven Pinker
terça-feira, 12 de novembro de 2019
segunda-feira, 11 de novembro de 2019
Golden Arches
«Perhaps the most hubristic passage in Thomas Friedman's The Lexus ant the Olive Tree is his assertion that globalization 'increases the incentives for not making war and increases the costs of going to war in more ways than in the previous era in modern history'. To reinforce his point, Friedman propounds ´The Golden Arches Theory of Conflict Prevention', according to which no two countries, both of which have at least one McDonald's franchise, have gone to war. Friedman's book was published on 17 May 1999, less than two months after the United States had gone to war with the Republic of Yugoslavia - apparently oblivious to the well-advertised presence of McDonald's in Belgrade.»
The cash nexus, Niall Ferguson
The cash nexus, Niall Ferguson
quinta-feira, 7 de novembro de 2019
Já foi há alguns meses (um ano) que ouvi a melodia:
num programa do Colbert, foi tocada pela banda residente como separador ou como música de entrada de um convidado, não me lembro ao certo. De imediato reconheci, sabia perfeitamente que já tinha ouvido e tocado aquelas notas, mas não conseguia precisar que tema era. E, apesar de perfeitamente capaz de me recordar da melodia (ainda pensei que, passado algum tempo, me fosse esquecer), continuei na ignorância.
Há dias, a propósito deste post, fui novamente ouvir o álbum em questão, The real McCoy. E aí estava, logo na primeira faixa, a melodia em causa era a primeira parte do B do Passion Dance, com o qual me tinha cruzado há uns 10 anos e nunca mais tinha ouvido.
(com os devidos bemóis)
Mi Sol Lá Lá
Mi Sol Si Lá
Mi Sol Lá Lá
Mi Sol Si Lá
Há dias, a propósito deste post, fui novamente ouvir o álbum em questão, The real McCoy. E aí estava, logo na primeira faixa, a melodia em causa era a primeira parte do B do Passion Dance, com o qual me tinha cruzado há uns 10 anos e nunca mais tinha ouvido.
(com os devidos bemóis)
Mi Sol Lá Lá
Mi Sol Si Lá
Mi Sol Lá Lá
Mi Sol Si Lá
quarta-feira, 6 de novembro de 2019
domingo, 3 de novembro de 2019
Discriminatório
As letras dos frascos de shampoo e gel de banho dos hotéis são sempre pequeninas, apenas para pessoas que vêem bem.
sábado, 2 de novembro de 2019
Não faz sentido que as vozes dos aparelhos dos aparelhos de GPS sejam femininas:
É um estereótipo relativamente consensual que as senhoras têm um sentido de orientação menos apurado que o dos senhores.
quinta-feira, 31 de outubro de 2019
The real McCoy
De repente, a meio da conversa, oiço-a dizer "the real McCoy", não me lembro a propósito de quê. Aliás, é possível que tenha esquecido tudo o resto apenas porque a expressão me interessou tanto, sugou toda a minha atenção e fez-me desconsiderar todo o resto do que disse. Pergunto-lhe, de imediato, se é uma expressão comum e ela diz-me que sim. Significa algo como "the real thing". Explico-lhe o meu súbito interesse: é o nome de um álbum do pianista McCoy Tyner. Ela, que não conhecia o Tyner, gosta do jogo de palavras que o título do álbum encerra. Eu, que conhecia o álbum mas não a expressão, fico a gostar ainda mais do título.
quarta-feira, 30 de outubro de 2019
Tragédia
«But who is set up for the impossible that is going to happen? Who is set up for tragedy and the incomprehensibility of suffering? Nobody. The tragedy of the man not set up for tragedy - that is every man's tragedy.»
American Pastoral, Philip Roth
American Pastoral, Philip Roth
quarta-feira, 9 de outubro de 2019
Padrão de Oz
«In The Wizard of Oz, Dorothy, the Scarecrow, the Tin Man and the Lion have to follow a winding and hazardous 'yellow brick road' in order to reach their destination. Few devotees of the classic Judy Garland movie are aware that the original 1900 book by Frank Baum was a satire on America's entry into the gold standard.»
The cash nexus, Niall Ferguson
The cash nexus, Niall Ferguson
terça-feira, 8 de outubro de 2019
segunda-feira, 7 de outubro de 2019
Geringonça de Brad Mehldau atinge a maioria absoluta
(Publicado originalmente aqui)
Quis o destino que este concerto do trio de Brad Mehldau – que, ainda por cima, tem como mais recente álbum Seymour reads the constitution! –, tivesse lugar em dia de eleições legislativas. Duas horas após o fecho das urnas, e várias após este que vos escreve ter cumprido o seu dever cívico, os três músicos fizeram a sua entrada no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
Poder-se-ia considerar este trio como uma espécie de geringonça: Mehldau tem as rédeas do piano na mão mas necessita do apoio musical do baixo de Grenadier e da bateria de Jeff Ballard para governar harmónica e melodicamente e conseguir aprovar as suas propostas musicais. Até que ponto as negociações foram complicadas, intensas, até que ponto houve cedências de parte a parte, nada disso é conhecido. Sabemos, isso sim, que, de vez em quando, Mehldau prefere governar a solo, com ou sem maioria. Aliás, os restantes membros da coligação musical também têm os seus projectos alternativos, não existe qualquer tipo de exclusividade nesta relação. Mas, quando juntos no mesmo palco, surgem como uma frente unida, com um programa bem-definido, cuja implementação é seguida à risca.
A campanha parece ter resultado em cheio: o povo, galvanizado, compareceu em força, encheu a sala de espectáculos, que está praticamente lotada. O nível de abstenção é extremamente reduzido. Lá à frente, no palco, depois da tradicional vénia de mãos cerradas, Mehldau assume um posicionamento mais à esquerda, Grenadier ocupa o centro e Ballard o lado direito. Apesar desta disposição, Mehldau toca com a cabeça virada à direita, aproveitando para, de quando em quando, dar uma discreta piscadela de olho e tentar ocupar um pouco do espaço dos restantes membros.
Findo o terceiro tema e sensivelmente a meio do setlist, Mehldau dirige-se ao público pela primeira vez. Agradece, também na língua de Camões, diz-se “happy to be here” e apresenta os parceiros de palco. Depois dá-nos algumas palavras sobre o que acabámos de ouvir: o primeiro tema é um original, ainda sem nome e, por isso, com o original título “No title”; “Good old days” foi o segundo; o terceiro foi “Twiggy”, do álbum Ode que, segundo nos explica, designa alguém. Mais do que isso: “she’s here tonight and she knows who she is. But more on that later”.
Com este véu de mistério, vira-se novamente para o teclado e ataca as teclas. A retórica não é o seu forte, Mehldau é claramente um tecnocrata do piano, um daqueles personagens que só vêem pautas à frente e que estão concentrados em fazer apenas o que lhes competem. Passa pelo “I should care”, uma magnifíca versão que desagua numa deambulação solitária ao piano, e termina o set com “Highway rider”, tema que deu nome ao álbum lançado em 2010.
No segundo encore da noite, Mehldau entra sozinho em palco. Explica-nos que se encontra na mesma cidade que a sua esposa, Fleurine, e desvenda-nos o mistério que deixou no ar: é ela a tal “twiggy”, que dá o titulo à música, e irá coligar-se a ele para o próximo tema. Claramente Mehldau não tem medo dos críticos que tecem acusações de nepotismo – o pianista não tem qualquer dúvida sobre a competência da sua parceira musical e certamente garante que a sua escolha não está minimamente relacionada com os laços conjugais e/ou familiares. A holandesa entra, qual “flausine”, de vestido longo e viola ao pescoço, ajeita o microfone e fala ao público no seu português transatlântico com toque flamengo. Diz-nos que estará em Lisboa a tocar naquele mesmo Grande Auditório a 24 de Outubro e que o tema se chama “Sonhando”.
Sejam quais forem as cores e preferências de cada um, parece-me inegável afirmar que este trio se trata de uma geringonça bem oleada, entrosada, que funciona com poucas fricções. Não se notam quaisquer divergências programáticas entre os membros: os temas que executam parecem ser escolhas com as quais todos se revêem e das quais não precisam de se distanciar para evitar qualquer prejuízo junto das respectivas bases. Sondagens e impressões recolhidas à boca do Grande Auditório indicam que tem grande probabilidade de se manter por mais alguns ciclos eleitorais. Pela minha parte, faço já aqui a minha declaração de voto.
Quis o destino que este concerto do trio de Brad Mehldau – que, ainda por cima, tem como mais recente álbum Seymour reads the constitution! –, tivesse lugar em dia de eleições legislativas. Duas horas após o fecho das urnas, e várias após este que vos escreve ter cumprido o seu dever cívico, os três músicos fizeram a sua entrada no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
Poder-se-ia considerar este trio como uma espécie de geringonça: Mehldau tem as rédeas do piano na mão mas necessita do apoio musical do baixo de Grenadier e da bateria de Jeff Ballard para governar harmónica e melodicamente e conseguir aprovar as suas propostas musicais. Até que ponto as negociações foram complicadas, intensas, até que ponto houve cedências de parte a parte, nada disso é conhecido. Sabemos, isso sim, que, de vez em quando, Mehldau prefere governar a solo, com ou sem maioria. Aliás, os restantes membros da coligação musical também têm os seus projectos alternativos, não existe qualquer tipo de exclusividade nesta relação. Mas, quando juntos no mesmo palco, surgem como uma frente unida, com um programa bem-definido, cuja implementação é seguida à risca.
A campanha parece ter resultado em cheio: o povo, galvanizado, compareceu em força, encheu a sala de espectáculos, que está praticamente lotada. O nível de abstenção é extremamente reduzido. Lá à frente, no palco, depois da tradicional vénia de mãos cerradas, Mehldau assume um posicionamento mais à esquerda, Grenadier ocupa o centro e Ballard o lado direito. Apesar desta disposição, Mehldau toca com a cabeça virada à direita, aproveitando para, de quando em quando, dar uma discreta piscadela de olho e tentar ocupar um pouco do espaço dos restantes membros.
Findo o terceiro tema e sensivelmente a meio do setlist, Mehldau dirige-se ao público pela primeira vez. Agradece, também na língua de Camões, diz-se “happy to be here” e apresenta os parceiros de palco. Depois dá-nos algumas palavras sobre o que acabámos de ouvir: o primeiro tema é um original, ainda sem nome e, por isso, com o original título “No title”; “Good old days” foi o segundo; o terceiro foi “Twiggy”, do álbum Ode que, segundo nos explica, designa alguém. Mais do que isso: “she’s here tonight and she knows who she is. But more on that later”.
Com este véu de mistério, vira-se novamente para o teclado e ataca as teclas. A retórica não é o seu forte, Mehldau é claramente um tecnocrata do piano, um daqueles personagens que só vêem pautas à frente e que estão concentrados em fazer apenas o que lhes competem. Passa pelo “I should care”, uma magnifíca versão que desagua numa deambulação solitária ao piano, e termina o set com “Highway rider”, tema que deu nome ao álbum lançado em 2010.
No segundo encore da noite, Mehldau entra sozinho em palco. Explica-nos que se encontra na mesma cidade que a sua esposa, Fleurine, e desvenda-nos o mistério que deixou no ar: é ela a tal “twiggy”, que dá o titulo à música, e irá coligar-se a ele para o próximo tema. Claramente Mehldau não tem medo dos críticos que tecem acusações de nepotismo – o pianista não tem qualquer dúvida sobre a competência da sua parceira musical e certamente garante que a sua escolha não está minimamente relacionada com os laços conjugais e/ou familiares. A holandesa entra, qual “flausine”, de vestido longo e viola ao pescoço, ajeita o microfone e fala ao público no seu português transatlântico com toque flamengo. Diz-nos que estará em Lisboa a tocar naquele mesmo Grande Auditório a 24 de Outubro e que o tema se chama “Sonhando”.
Sejam quais forem as cores e preferências de cada um, parece-me inegável afirmar que este trio se trata de uma geringonça bem oleada, entrosada, que funciona com poucas fricções. Não se notam quaisquer divergências programáticas entre os membros: os temas que executam parecem ser escolhas com as quais todos se revêem e das quais não precisam de se distanciar para evitar qualquer prejuízo junto das respectivas bases. Sondagens e impressões recolhidas à boca do Grande Auditório indicam que tem grande probabilidade de se manter por mais alguns ciclos eleitorais. Pela minha parte, faço já aqui a minha declaração de voto.
domingo, 6 de outubro de 2019
O Gente Que Não Sabe Estar coloca um dilema de prisioneiro aos convidados.
Nenhum dos convidados tem grande vontade para ali estar, sujeito ao desconforto das perguntas incisivas e de ser alvo de gozação e chacota. A questão é que existe sempre o incentivo para ir: se um dado político for e o rival não for, aquele que vai faz boa figura e o que não vai faz má figura. O que não vai passa por alguém que não se sente à vontade num ambiente que não lhe é favorável, com pouco fair play e, até, com pouca coragem para enfrentar o escárnio do Ricardo Araújo Pereira e do resto da equipa. Esta hipótese é aquela que gera o resultado mais favorável para um dos elementos - aquele que vai ao programa - mas também o menos favorável - para aquele que não vai.
Ora, por causa disso, para evitar ser apanhado na curva e fazer má figura por não ir quando o outro vai, só resta mesma uma hipótese: dizer sempre que sim à produção do programa. Ou seja, todos lá vão, é este o equilíbrio de Nash. Neste caso, ninguém verdadeiramente se destaca e, por isso, acabam os vários rivais por fazer algo que, no fundo, não querem.
Antecipando este desenlace, o ideal seria que combinassem todos, à partida, não ir ao programa. Desta forma, ninguém teria que passar por aquele mau bocado e, ao mesmo tempo, nenhum deles pareceria estar a fazer birrinha por não ir quando o outro vai. O problema é que o incentivo para desviar deste equilíbrio é suficientemente forte que qualquer compromisso prévio não seria suficientemente credível. Não resta outra hipótese senão assistir à gozação é aos inúmeros sorrisos amarelos.
Ora, por causa disso, para evitar ser apanhado na curva e fazer má figura por não ir quando o outro vai, só resta mesma uma hipótese: dizer sempre que sim à produção do programa. Ou seja, todos lá vão, é este o equilíbrio de Nash. Neste caso, ninguém verdadeiramente se destaca e, por isso, acabam os vários rivais por fazer algo que, no fundo, não querem.
Antecipando este desenlace, o ideal seria que combinassem todos, à partida, não ir ao programa. Desta forma, ninguém teria que passar por aquele mau bocado e, ao mesmo tempo, nenhum deles pareceria estar a fazer birrinha por não ir quando o outro vai. O problema é que o incentivo para desviar deste equilíbrio é suficientemente forte que qualquer compromisso prévio não seria suficientemente credível. Não resta outra hipótese senão assistir à gozação é aos inúmeros sorrisos amarelos.
quinta-feira, 3 de outubro de 2019
Ubiquidade
Já tinha assistido àqueles que verificam o telefone entre exercícios, enquanto alongam. Por vezes nas posições mais estranhas e incómodas. Mas há sempre espaço para a novidade: assim que entrou na sauna, ainda não tinha tido tempo para fechar a porta atrás de si, ouviu-se o som do telemóvel a chamar a atenção para a recepção de uma mensagem. Foi então que reparei que tinha o aparelho na mão direita. Subiu o segundo nível do banco, sentou-se lá em cima, de lado, com as costas contra a madeira quente e as pernas esticadas ao longo das tábuas do banco. E assim ficou, entretido a responder às mensagens. E com o som do aparelho ligado: ouvíamos o barulhinho irritante de cada vez que teclava.
quarta-feira, 2 de outubro de 2019
Estômago
Difícil não ter algum respeito por Santana Lopes na actual posição: é preciso estômago para, com o percurso dele, se sentar no meio dos candidatos dos partidos sem representação na assembleia, no debate de 2a feira.
terça-feira, 1 de outubro de 2019
segunda-feira, 30 de setembro de 2019
Botão
De cada vez que se levanta para receber o convidado da segunda parte do programa, o RAP abotoa, rápida e atrapalhadamente, o blazer enquanto a vítima surge, cumprimenta, e volta a desabotoar, rápida atrapalhadamente, o mesmo blazer, a tempo de se sentar na cadeira. No total, o blazer permanece abotoado uns poucos segundos.
domingo, 29 de setembro de 2019
He tells it like it is
Uma das virtudes do presidente americano, de acordo com os apoiantes, é a frontalidade, de dizer as coisas tal como elas são ("He tells it like it is"), sem rodeios, doa a quem doer. Tendo em conta a elevada média diária de mentiras (por vezes gritantes) - e, quando confrontado com algumas, as constantes alegações de factos alternativos e acusações de fake news - é possível que a mentira e a desinformação sejam as coisas tal como elas são.
domingo, 22 de setembro de 2019
sábado, 21 de setembro de 2019
Despotismo
«"Democracy is the spawn of despotism," Frazier said, continuing to look out the window. "And like father, like son. Democracy is power and rule. It's not the will of the people, remember; it's the will of the majority." He turned and, in a husky voice which broke in flight like a tumbler pigeon on the word "out," he added, "My heart goes out to the everlasting minority." He seemed ready to cry, but I could not tell whether it was in sympathy for the oppressed or in rage at his failure to convince Castle.
"In a democracy," he went on, "there is no check against despotism, because the principle of democracy is supposed to be itself a check. But i guarantees only that the majority will not be despotically ruled."»
Walden Two, B. F. Skinner
"In a democracy," he went on, "there is no check against despotism, because the principle of democracy is supposed to be itself a check. But i guarantees only that the majority will not be despotically ruled."»
Walden Two, B. F. Skinner
terça-feira, 17 de setembro de 2019
Lawn mower
«"Well, this is our lawn. But we consume it. Indirectly, of course - through our sheep. And the advantage is that it doesn't consume us. Have you ever pushed a lawn mower? The stupidest machine ever invented - for one of the stupidest of purposes. But I digress. We solved our problem with a portable electric fence which could be used to move our flock of sheep about the lawn like a gigantic mowing machine, but leaving most of it free at any time.»
Walden two, B. F. Skinner
Walden two, B. F. Skinner
quarta-feira, 4 de setembro de 2019
Ferramenta de trabalho
No areal da Caparica, intercalada entre os vendedores de pregão abrasileirado - Olha bola de Berlim! 2 euros 2 bolas, promoção de verão! Com creme, sem creme, de chocolate, nutella, alfarroba para a mamãe não ficar gorda - ouve-se uma vendedora, de lenga-lenga bem menos elaborada, mas que recorre a um megafone.
segunda-feira, 2 de setembro de 2019
Selecção adversa
As pessoas que gostam de partilhar música com terceiros - seja na rua ou nos transportes públicos, usando o telemóvel ou uma pequena coluna portátil, seja com o volume máximo do carro parado no semáforo de vidros abertos - são, normalmente, aquelas que têm o gosto musical mais duvidoso. Partilhar é tido como um sinal de consciência colectiva e solidariedade (sharing is love). No entanto, tida per se e sem considerações adicionais, esta máxima intemporal pode, como este exemplo ilustra, pecar pela falta de especificação.
sábado, 31 de agosto de 2019
Significado
«Thus it can be seen that mental health is based on a certain degree of tension, the tension between what one has already achieved and what one still ought to accomplish, or the gap between what one is and what one should become. Such a tension is inherent in the human being and therefore is indispensable to mental well-being. We should not, then, be hesitant about challenging man with a potential meaning for him to fulfill. It is only thus that we evoke his will to meaning from its state of latency. I consider it a dangerous misconception of mental hygiene to assume that what man needs in the first place is equilibrium or, as it is called in biology, "homeostasis," i.e., a tensionless state. What man actually needs is not a tensionless state but rather the striving and struggling for a worthwhile goal, a freely chosen task. What he needs is not the discharge of tension at any cost but the call of a potential meaning waiting to be fulfilled by him.»
Man's search for meaning, Victor Frankl
Man's search for meaning, Victor Frankl
segunda-feira, 19 de agosto de 2019
domingo, 18 de agosto de 2019
sábado, 17 de agosto de 2019
Costuma estar à boca do metro do Saldanha.
Sentado numa cadeira sem costas, um apoio para o pé esquerdo, toca uma guitarra acústica amplificada, virado para o patamar onde desembocam as escadas. À frente, no chão, está o saco da guitarra, que é utilizado para recolher as moedas que alguns transeuntes vão deixando. De manhã, para apanhar a hora de ponta. E em qualquer altura do ano. No inverno, por vezes usa luvas com os dedos cortados, faz-me confusão como consegue tocar com o frio.
O repertório é variado, já lhe ouvi tocar um pouco de tudo. Vai desde os temas clássicos para guitarra espanhola (uma vez pareceu-me ouvir o concerto de Aranjuez), até ao (incontornável?) Romance, banda sonora do filme Jeux Interdits, passando por uma versão do Yesterday dos Beatles.
Os músicos de rua costumam escolher locais onde as pessoas possam parar para os ver e ouvir. Mesmo os que tocam no interior do túnel do metro, por vezes, acabam envoltos num semicírculo de melómanos. Mas nunca à boca do metro Saldanha: ninguém ali pára para o ouvir tocar. Passam por ele como eu, que ouço um pouco enquanto me aproximo e, depois, me afasto. Mesmo a pequena fracção que abranda ligeiramente para lhe deixar uma moeda - e, às vezes, até mesmo para dizer bom dia - no saco da guitarra não chega a parar.
O repertório é variado, já lhe ouvi tocar um pouco de tudo. Vai desde os temas clássicos para guitarra espanhola (uma vez pareceu-me ouvir o concerto de Aranjuez), até ao (incontornável?) Romance, banda sonora do filme Jeux Interdits, passando por uma versão do Yesterday dos Beatles.
Os músicos de rua costumam escolher locais onde as pessoas possam parar para os ver e ouvir. Mesmo os que tocam no interior do túnel do metro, por vezes, acabam envoltos num semicírculo de melómanos. Mas nunca à boca do metro Saldanha: ninguém ali pára para o ouvir tocar. Passam por ele como eu, que ouço um pouco enquanto me aproximo e, depois, me afasto. Mesmo a pequena fracção que abranda ligeiramente para lhe deixar uma moeda - e, às vezes, até mesmo para dizer bom dia - no saco da guitarra não chega a parar.
quarta-feira, 14 de agosto de 2019
terça-feira, 13 de agosto de 2019
Serra comum
«Perdi as pernas... Foram-me cortadas... Salvavam-me aí mesmo, na floresta... Fui operada nas condições mais primitivas. Puseram-me na mesa para me operar, e não havia iodo sequer, serraram-me as pernas com uma serra comum, as duas pernas... Puseram-me na mesa, faltava iodo. Foram buscá-lo a outro destacamento, a seis quilómetros, deixando-me sobre a mesa. Sem anestesia. Sem... Em vez de anestesia, uma garrafa de aguardente caseira. Não havia nada, a não ser uma serra comum... De carpinteiro...
(...)
Mais tarde, em Ivanovo e em Tachkent, fizeram quatro reamputações, a gangrena reapareceu quatro vezes. De cada vez, cortavam mais um bocado, e acabou por resultar numa amputação muito alta.»
A guerra não tem rosto de mulher, Svetlana Alexievich
(...)
Mais tarde, em Ivanovo e em Tachkent, fizeram quatro reamputações, a gangrena reapareceu quatro vezes. De cada vez, cortavam mais um bocado, e acabou por resultar numa amputação muito alta.»
A guerra não tem rosto de mulher, Svetlana Alexievich
segunda-feira, 12 de agosto de 2019
domingo, 11 de agosto de 2019
Descia a Almirante Reis uns quantos passos à minha frente.
Do outro lado da avenida em relação à Igreja dos Anjos. Magro, as calças de ganga velhas ficavam-lhe largas nas pernas e no rabo. Tinha o cabelo escuro e ralo, puxado para trás. Levava um saco de plástico na mão esquerda. De repente, parou e agachou-se perto de uma poça de água, formada no pequena depressão na calçada do passeio. Água da chuva que tinha caído de manhã, escura e suja. Enfiou o braço esquerdo pelas alças do saco para libertar aquela mão e enfiou as duas dentro da poça. Esfregou-as, uma contra a outra. Depois de molhadas, passou-as pela cara. Levantou-se, sacudiu as duas mãos e continuou a descer a avenida.
segunda-feira, 5 de agosto de 2019
A chama purificadora dos Burning Ghosts e os fantasmas que se ouvem a arder
(Publicado originalmente aqui)
Ao meu lado está um grupo de três senhoras de terceira idade, uma observação que poderá, à primeira vista, parecer um trava-línguas mas que, no fundo, apenas pretende retratar a força gravitacional do jazz: aquelas três senhoras, que a um par de olhos mais estereotipados pareceriam (exclusivamente) pertencer ao público-alvo dos concertos do Grande Auditório e não a este anfiteatro ao ar livre, olham para o panfleto com o programa completo do Jazz em Agosto para decidir a que outros concertos assistir. Lá à frente, um casal jovem passa em frente ao palco à procura de um lugar: ela veste um casaco preto com a inscrição “we not me”, em letras garrafais brancas nas mangas, e só me apetece corrigir para “we not I”.
A intensidade das luzes diminui, a voz-off feminina, dá-nos as boas-vindas, pede-nos para desligar o telemóvel e alerta-nos para a interdição de registos áudio e vídeo. Primeiro em português e depois em inglês. E os Burning Ghosts surgem das escadas lá ao fundo, atrás do palco, entre o verde da relva e das folhas das árvores que dançam ao sabor do vento irrequieto da noite. Não perdem tempo, vão directos ao assunto, ainda o público não acabou a salva de palmas inicial, repleta de excitação, e já o baterista martela furiosamente nos instrumentos à sua frente, enquanto os restantes se instalam. Pouco depois, guitarra, baixo e trompete juntam-se, tocam uma linha melódica frenética em uníssono.
Findo o primeiro tema, Daniel Rosenboom, o trompetista, agradece ao público e à Fundação Calouste Gulbenkian pelo convite para estar presente no Jazz em Agosto e apresenta os restantes membros da banda: Jake Vossler na guitarra, Richard Giddens no contrabaixo e Aaron McLendon na bateria. De seguida, faz uma breve alusão (um aviso?) ao “theme of resistance” subjacente à música deste quarteto, que pretende ser simultaneamente um veículo de protesto e de unidade, em particular no actual momento da “American political arena” – esta vertente de carga política é, aliás, frisada na badana de cartão que acompanha o CD que comprei à saída: “a politically motivated quartet at the forefront of the jazz-metal underground”. A intervenção oral termina com anúncio de que o próximo tema se chama “Drowning on the high ground” e é dedicado ao contrabaixista Charlie Haden, falecido em 2014, e que é uma referência dos quatro.
“Revolution” é um dos temas mais marcantes da noite. Junta na perfeição dos elementos-chave deste quarteto: por um lado, o recurso à música como forma de expressão e, no limite, arma política (ou mesmo guerriha), resistência e contestação, uma característica que, de imediato, remete para bandas como os Rage Against the Machine; por outro lado, a fusão dos elementos de jazz com o heavy metal. Por esta altura, Vossler já pegou e colocou às costas a Flying V que figurava proeminentemente no suporte ainda os músicos não tinha subido ao palco, impacientemente à espera do seu momento para intervir. A guitarra parece afinada num registo mais grave (barítono, talvez), tem um som cru e saturado, envolvente e cheio. A própria linguagem corporal de Vossler remete para o metal: a páginas tantas, coloca o pé em cima do monitor enquanto rasga power chords na guitarra com formato em V, pelo meio ouvem-se os harmónicos que soltam quando abafa ligeiramente as cordas com a mão que palheta. Termina o tema virado para o amplificador, gerando um feedback controlado, tal como Giddens no contrabaixo.
É assim que os Burning Ghosts exorcizam os seus demónios, numa espécie de sessão psicanalítica, na qual os fantasmas que os mantêm acordados à noite são evidenciados, expostos, colocados a nu e confrontados. Partilhados com outros que têm, senão os mesmos fantasmas, outros bastante parecidos e que não poupam a ferida aos dedos que impiedosamente perscrutam o sítio onde dói. Em conjunto, submetem esses mesmos fantasmas às chamas purificadoras da música, até que sejam totalmente devorados e carbonizados.
O set termina após uma hora de música. Temos ainda direito a dois encores: primeiro “Free fall” e, depois, “Harbinger”. No final, as minhas três vizinhas de vetusta idade levantam-se, de um salto, e oferecem uma incisiva salva de palmas aos quatro.
Ao meu lado está um grupo de três senhoras de terceira idade, uma observação que poderá, à primeira vista, parecer um trava-línguas mas que, no fundo, apenas pretende retratar a força gravitacional do jazz: aquelas três senhoras, que a um par de olhos mais estereotipados pareceriam (exclusivamente) pertencer ao público-alvo dos concertos do Grande Auditório e não a este anfiteatro ao ar livre, olham para o panfleto com o programa completo do Jazz em Agosto para decidir a que outros concertos assistir. Lá à frente, um casal jovem passa em frente ao palco à procura de um lugar: ela veste um casaco preto com a inscrição “we not me”, em letras garrafais brancas nas mangas, e só me apetece corrigir para “we not I”.
A intensidade das luzes diminui, a voz-off feminina, dá-nos as boas-vindas, pede-nos para desligar o telemóvel e alerta-nos para a interdição de registos áudio e vídeo. Primeiro em português e depois em inglês. E os Burning Ghosts surgem das escadas lá ao fundo, atrás do palco, entre o verde da relva e das folhas das árvores que dançam ao sabor do vento irrequieto da noite. Não perdem tempo, vão directos ao assunto, ainda o público não acabou a salva de palmas inicial, repleta de excitação, e já o baterista martela furiosamente nos instrumentos à sua frente, enquanto os restantes se instalam. Pouco depois, guitarra, baixo e trompete juntam-se, tocam uma linha melódica frenética em uníssono.
Findo o primeiro tema, Daniel Rosenboom, o trompetista, agradece ao público e à Fundação Calouste Gulbenkian pelo convite para estar presente no Jazz em Agosto e apresenta os restantes membros da banda: Jake Vossler na guitarra, Richard Giddens no contrabaixo e Aaron McLendon na bateria. De seguida, faz uma breve alusão (um aviso?) ao “theme of resistance” subjacente à música deste quarteto, que pretende ser simultaneamente um veículo de protesto e de unidade, em particular no actual momento da “American political arena” – esta vertente de carga política é, aliás, frisada na badana de cartão que acompanha o CD que comprei à saída: “a politically motivated quartet at the forefront of the jazz-metal underground”. A intervenção oral termina com anúncio de que o próximo tema se chama “Drowning on the high ground” e é dedicado ao contrabaixista Charlie Haden, falecido em 2014, e que é uma referência dos quatro.
“Revolution” é um dos temas mais marcantes da noite. Junta na perfeição dos elementos-chave deste quarteto: por um lado, o recurso à música como forma de expressão e, no limite, arma política (ou mesmo guerriha), resistência e contestação, uma característica que, de imediato, remete para bandas como os Rage Against the Machine; por outro lado, a fusão dos elementos de jazz com o heavy metal. Por esta altura, Vossler já pegou e colocou às costas a Flying V que figurava proeminentemente no suporte ainda os músicos não tinha subido ao palco, impacientemente à espera do seu momento para intervir. A guitarra parece afinada num registo mais grave (barítono, talvez), tem um som cru e saturado, envolvente e cheio. A própria linguagem corporal de Vossler remete para o metal: a páginas tantas, coloca o pé em cima do monitor enquanto rasga power chords na guitarra com formato em V, pelo meio ouvem-se os harmónicos que soltam quando abafa ligeiramente as cordas com a mão que palheta. Termina o tema virado para o amplificador, gerando um feedback controlado, tal como Giddens no contrabaixo.
É assim que os Burning Ghosts exorcizam os seus demónios, numa espécie de sessão psicanalítica, na qual os fantasmas que os mantêm acordados à noite são evidenciados, expostos, colocados a nu e confrontados. Partilhados com outros que têm, senão os mesmos fantasmas, outros bastante parecidos e que não poupam a ferida aos dedos que impiedosamente perscrutam o sítio onde dói. Em conjunto, submetem esses mesmos fantasmas às chamas purificadoras da música, até que sejam totalmente devorados e carbonizados.
O set termina após uma hora de música. Temos ainda direito a dois encores: primeiro “Free fall” e, depois, “Harbinger”. No final, as minhas três vizinhas de vetusta idade levantam-se, de um salto, e oferecem uma incisiva salva de palmas aos quatro.
sexta-feira, 26 de julho de 2019
Sir
«The permanent Deputy-Governor must be a director and a man of fair position. He must not have to say «Sir» to the Governor. There is no fair argument between an inferior who has to exhibit respect and a superior who has to receive respect. The superior can always, and does mostly, refute te bad argument of his inferior; but the inferior rarely ventures to try to refute the bad arguments of his superior. And he still more rarely states his case effectually; he pauses, hesitates, does not use the best word or the most apt illustration, perhaps he uses a faulty illustration or a wrong word, and so fails because the superior immediately exposes him. Important business can only be sufficiently discussed by persons who can say very much what they like very much as they like to another. The thought of the speaker should come out as it was in his mind, and not be hidden in respectful expressions or enfeebled by affected doubt.»
Lombard Street, Walter Bagehot
Lombard Street, Walter Bagehot
quinta-feira, 25 de julho de 2019
Prestige
«A permanent Governor of the Bank of England would be one of the greatest men in England. He would be a little "monarch" in the City; he would be far greater than the "Lord Mayor". He would be the personal embodiment of the Bank of England; he would be constantly clothed with an almost indefinite prestige. Everybody in business would bow down before him and try to stand well with him, for he might in a panic be able to ave almost anyone he liked, and to ruin almost anyone he liked. A day might come when his favour might mean prosperity, and his distrust might mean ruin. A position with so much real power and so much apparent dignity would be intensely coveted. Practical men would be apt to say that it was better than the Prime Ministership, for it would last much longer, and would have a greater jurisdiction over that which practical men would most value - over money.»
Lombard Street, Walter Bagehot
Lombard Street, Walter Bagehot
quarta-feira, 24 de julho de 2019
O nome diz tudo
Chamada de atenção às pessoas que, no balneário, se secam, de uma ponta à outra, com o secador de cabelo: chama-se secador de cabelo porque serve para secar o cabelo.
sábado, 20 de julho de 2019
Opacidade
«At the end of 1996, Greenspan began to think about proposing. At a birthday dinner for Mitchell with a dozen of close friends at Galileo, one of Washington's best Italian restaurants, Greenspan gave a glowing toast to her. A number of guests felt it was as near to a proposal of marriage as possible, with the expected next sentence to be a request that she marry him. But it never came.
He later confided to one person that he actually proposed to Mitchell twice before she accepted, but either she had not understood what he was saying or it had failed to register. His verbal obscurity and caution were so ingrained that Mitchell didn't even know that he had asked her to marry him. She found it difficult to understand the depth of his emotional commitment to her.
On Christmas Day, Greenspan finally asked, flat out, "Do you want a big wedding or a small wedding?" It as a message no one could miss.
Mitchell was taken by surprise but accepted at once.»
Maestro, Bob Woodward
He later confided to one person that he actually proposed to Mitchell twice before she accepted, but either she had not understood what he was saying or it had failed to register. His verbal obscurity and caution were so ingrained that Mitchell didn't even know that he had asked her to marry him. She found it difficult to understand the depth of his emotional commitment to her.
On Christmas Day, Greenspan finally asked, flat out, "Do you want a big wedding or a small wedding?" It as a message no one could miss.
Mitchell was taken by surprise but accepted at once.»
Maestro, Bob Woodward
sexta-feira, 19 de julho de 2019
quinta-feira, 18 de julho de 2019
Exuberância
«He began work on his speech while taking his ritual early morning soak in the bathtub. His tub was deep and narrow, with armrests so he could comfortably read and write. He decided to voice his concerns about the stock market in a long historical discussion of the notion of prices. He would carefully pose those concerns in the form of a question. How do we know, he wrote, when - and the phrase just popped into his head - "irrational exuberance" has unduly escalated the value of stocks?»
Maestro, Bob Woodward
Maestro, Bob Woodward
quarta-feira, 17 de julho de 2019
Cascais abana a cauda ao som de Snarky Puppy
(Publicado originalmente aqui)
O dicionário da universidade de Cambridge não tem uma entrada para o termo “snarky”. Felizmente, o dicionário urbano vem prontamente em auxílio, oferecendo uma definição da palavra como uma forma de discurso com um tom emocional, que possui sarcasmo envolto em atrevimento e descaramento, com um toque de irreverência. Trata-se de uma definição que se depreende imediatamente: quem nunca esteve em presença daquele tipo de cão espertinho, armado em carapau de corrida, que nos olha de soslaio enquanto ladra?
Para além de contribuir decisivamente para o título ao estilo do Correio da Manhã, a definição deste primeiro parágrafo acaba por ajudar a catalogar, com surpreendente facilidade, a música. Nasce de uma mistura de elementos de jazz, funk, world music e pop-rock, e tem um carácter e uma personalidade muito próprios, com boa disposição e, lá está, irreverência.
Mas já lá vamos porque, antes deste cão sarcástico/atrevido/irreverente, temos de dar conta do que lhe antecedeu, no Hipódromo Manueal Possolo em Cascais, nesta noite ventosa e pouca típica do mês de Julho. Já no início deste ano tivemos oportunidade de ver o jovem britânico Jacob Collier no Teatro Capitólio: aqui está o relato desse concerto.
Pois bem, o moço regressou a terras lusas e, desta feita, esteve a abrir o concerto desta noite, para gáudio das hordas de adolescentes, que gritaram, de forma adolescentemente histérica, a cada cinco segundos da sua prestação. O formato foi muito parecido ao que vimos – da setlist, aos saltos e até às calças de harém (exactamente iguais) – pelo que, sem desprimor para o jovem (ele que me perdoe), vamos avançar sem mais delonga para os cabeça de cartaz.
Voltemos aos senhores do cão que ladra de forma atrevida. Não se trata propriamente de uma banda mas sim de um colectivo de músicos, liderado pelo baixista Michael League. Com cerca de 15 anos de existência, este colectivo normalmente faz-se representar, ao vivo, com quase tantos músicos quantas as velas no bolo de aniversário. Isto embora os últimos álbuns de estúdio (Culcha Vulcha e Immigrance) tenham sido feitos com dezanove músicos. Ao longo dos anos foram vários os nomes sonantes que passaram temporariamente por esta formação, tais como Stanley Clarke, Roy Hargrove, e até mesmo Snoop Dog e Justin Timberlake. E, claro, mais recentemente, o nosso moço imberbe de seu nome Jacob Collier.
O set arranca com “Even us”, um tema mais calmo e introspectivo, que parece servir para tentar enganar o público ou, pelo menos, os mais incautos. A ordem natural das coisas é rapidamente restituída logo a seguir, quando começamos a ouvir o ritmo e a dinâmica de “Semente” e entramos no registo que nos leva até “Bad kids to the back” e a um rico solo do saxofonista.
Michael League dirige-se ao público sensivelmente a meio do espectáculo. Para além da apresentação dos oito elementos que o acompanham, e de uma palavra a Jacob Collier, conta-nos a razão pela qual não esqueceu a primeira vez que estiveram em Portugal: o baterista Larnell Lewis teve uma reacção alérgica, em pleno concerto, ao marisco que comeu ao jantar. “He almost died but still sounded great”. Com amigos destes…
Passamos por “Thing of gold” e, chegados à ponta final do set, League pede a intervenção do público. Divide a audiência em duas metades: a primeira terá a tarefa de bater palmas em tercinas (“the three side”) e a segunda em colcheias (“the four side”). A sobreposição destas duas figuras rítmicas tem muito groove mas não é fácil de executar, nota-se alguma luta das várias mãos dos dois lados da barricada rítmica durante o treino. Treino esse que serve para, a indicação de League, o público participar em “Xavi” – tema dedicado ao povo marroquino – executando a coreografia delicada e ajudando a encerrar o concerto.
Como é normal nestas coisas, o concerto raramente termina quando deve terminar. O primeiro encore é o clássico Shofukan, amplamente aguardado. E digo isto de forma ainda mais veemente porque, atrás de mim, um grupo de jovens espanhóis entoou (com surpreendente precisão) o tema várias vezes enquanto aguardávamos pelo início do espectáculo. Nesta fase, são já vários os espectadores que abandonam as cadeiras e dançam (abanam a cauda?) ao som e ao ritmo.
Escusado será de dizer que, chegados ao momento em que há uma melodia cantada (das poucas em temas deste colectivo), o público canta entusiasticamente:
Ah ah ááááááh áh ah aaaaah
Ah ah ããããããh ãh âh âââââh
Os snarkies puxam pelas gargantas afinadas do relvado, como se fosse preciso qualquer tipo de incentivo. O resultado é uma cantoria que dura não só até à última nota do tema, como também depois da saída de palco. Naquele hiato de tempo em que ainda não se sabe ainda cabalmente se vamos ter mais música, a linha melódica de Shofukan continua a ouvir-se a plenos pulmões.
E, de repente, assim que se vislumbra o regresso dos puppies, a melodia é, de imediato, substituída por uma ovação, gritos e assobios. Gritos e assobios esses que se acentuam e voltam a atingir um certo nível de histeria, no momento em que League anuncia que Collier se vai juntar e o moço entra a correr freneticamente pelo lado direito do palco. O tema é “What about me?” e o fantástico solo em despique de Collier, ao teclado, com o baterista, num longo crescendo, quase me levam a mim (confesso) à histeria. Antes isso que choque anafilático.
Tal como os outros músicos que, ocasionalmente, se juntam ao um núcleo duro estável dos Snarky Puppy, Collier pega, como se costuma dizer, de estaca. Inserido naquele colectivo, Collier cresce, parece ganhar uma maturidade que lhe acrescenta uns quantos anos no seu cartão de cidadão musical. Não que se trate de um espartilho, algo que corte as asas ao petiz e o impeça de voar os altos voos que muitos lhe vaticinam. É, ao invés, parecido a uma bicicleta com rodinhas pequeninas ou aquelas barreiras metálicas que se colocam nas pistas de bowling para evitar que as bolas vão parar às calhas. Há uma certa ingenuidade que desaparece, um copo de leite com chocolate que se transforma num tinto encorpado. Atrevo-me a dizer que aquilo que mais gostei dele nesta noite não foi a actuação com a sua banda, mas sim esta colaboração num único tema.
No final, os mais resistentes ficaram, sem sucesso, a ganir e a latir por mais. Numa palavra: eléctrico. Ou não fosse este um evento patrocinado pela EDP.
O dicionário da universidade de Cambridge não tem uma entrada para o termo “snarky”. Felizmente, o dicionário urbano vem prontamente em auxílio, oferecendo uma definição da palavra como uma forma de discurso com um tom emocional, que possui sarcasmo envolto em atrevimento e descaramento, com um toque de irreverência. Trata-se de uma definição que se depreende imediatamente: quem nunca esteve em presença daquele tipo de cão espertinho, armado em carapau de corrida, que nos olha de soslaio enquanto ladra?
Para além de contribuir decisivamente para o título ao estilo do Correio da Manhã, a definição deste primeiro parágrafo acaba por ajudar a catalogar, com surpreendente facilidade, a música. Nasce de uma mistura de elementos de jazz, funk, world music e pop-rock, e tem um carácter e uma personalidade muito próprios, com boa disposição e, lá está, irreverência.
Mas já lá vamos porque, antes deste cão sarcástico/atrevido/irreverente, temos de dar conta do que lhe antecedeu, no Hipódromo Manueal Possolo em Cascais, nesta noite ventosa e pouca típica do mês de Julho. Já no início deste ano tivemos oportunidade de ver o jovem britânico Jacob Collier no Teatro Capitólio: aqui está o relato desse concerto.
Pois bem, o moço regressou a terras lusas e, desta feita, esteve a abrir o concerto desta noite, para gáudio das hordas de adolescentes, que gritaram, de forma adolescentemente histérica, a cada cinco segundos da sua prestação. O formato foi muito parecido ao que vimos – da setlist, aos saltos e até às calças de harém (exactamente iguais) – pelo que, sem desprimor para o jovem (ele que me perdoe), vamos avançar sem mais delonga para os cabeça de cartaz.
Voltemos aos senhores do cão que ladra de forma atrevida. Não se trata propriamente de uma banda mas sim de um colectivo de músicos, liderado pelo baixista Michael League. Com cerca de 15 anos de existência, este colectivo normalmente faz-se representar, ao vivo, com quase tantos músicos quantas as velas no bolo de aniversário. Isto embora os últimos álbuns de estúdio (Culcha Vulcha e Immigrance) tenham sido feitos com dezanove músicos. Ao longo dos anos foram vários os nomes sonantes que passaram temporariamente por esta formação, tais como Stanley Clarke, Roy Hargrove, e até mesmo Snoop Dog e Justin Timberlake. E, claro, mais recentemente, o nosso moço imberbe de seu nome Jacob Collier.
O set arranca com “Even us”, um tema mais calmo e introspectivo, que parece servir para tentar enganar o público ou, pelo menos, os mais incautos. A ordem natural das coisas é rapidamente restituída logo a seguir, quando começamos a ouvir o ritmo e a dinâmica de “Semente” e entramos no registo que nos leva até “Bad kids to the back” e a um rico solo do saxofonista.
Michael League dirige-se ao público sensivelmente a meio do espectáculo. Para além da apresentação dos oito elementos que o acompanham, e de uma palavra a Jacob Collier, conta-nos a razão pela qual não esqueceu a primeira vez que estiveram em Portugal: o baterista Larnell Lewis teve uma reacção alérgica, em pleno concerto, ao marisco que comeu ao jantar. “He almost died but still sounded great”. Com amigos destes…
Passamos por “Thing of gold” e, chegados à ponta final do set, League pede a intervenção do público. Divide a audiência em duas metades: a primeira terá a tarefa de bater palmas em tercinas (“the three side”) e a segunda em colcheias (“the four side”). A sobreposição destas duas figuras rítmicas tem muito groove mas não é fácil de executar, nota-se alguma luta das várias mãos dos dois lados da barricada rítmica durante o treino. Treino esse que serve para, a indicação de League, o público participar em “Xavi” – tema dedicado ao povo marroquino – executando a coreografia delicada e ajudando a encerrar o concerto.
Como é normal nestas coisas, o concerto raramente termina quando deve terminar. O primeiro encore é o clássico Shofukan, amplamente aguardado. E digo isto de forma ainda mais veemente porque, atrás de mim, um grupo de jovens espanhóis entoou (com surpreendente precisão) o tema várias vezes enquanto aguardávamos pelo início do espectáculo. Nesta fase, são já vários os espectadores que abandonam as cadeiras e dançam (abanam a cauda?) ao som e ao ritmo.
Escusado será de dizer que, chegados ao momento em que há uma melodia cantada (das poucas em temas deste colectivo), o público canta entusiasticamente:
Ah ah ááááááh áh ah aaaaah
Ah ah ããããããh ãh âh âââââh
Os snarkies puxam pelas gargantas afinadas do relvado, como se fosse preciso qualquer tipo de incentivo. O resultado é uma cantoria que dura não só até à última nota do tema, como também depois da saída de palco. Naquele hiato de tempo em que ainda não se sabe ainda cabalmente se vamos ter mais música, a linha melódica de Shofukan continua a ouvir-se a plenos pulmões.
E, de repente, assim que se vislumbra o regresso dos puppies, a melodia é, de imediato, substituída por uma ovação, gritos e assobios. Gritos e assobios esses que se acentuam e voltam a atingir um certo nível de histeria, no momento em que League anuncia que Collier se vai juntar e o moço entra a correr freneticamente pelo lado direito do palco. O tema é “What about me?” e o fantástico solo em despique de Collier, ao teclado, com o baterista, num longo crescendo, quase me levam a mim (confesso) à histeria. Antes isso que choque anafilático.
Tal como os outros músicos que, ocasionalmente, se juntam ao um núcleo duro estável dos Snarky Puppy, Collier pega, como se costuma dizer, de estaca. Inserido naquele colectivo, Collier cresce, parece ganhar uma maturidade que lhe acrescenta uns quantos anos no seu cartão de cidadão musical. Não que se trate de um espartilho, algo que corte as asas ao petiz e o impeça de voar os altos voos que muitos lhe vaticinam. É, ao invés, parecido a uma bicicleta com rodinhas pequeninas ou aquelas barreiras metálicas que se colocam nas pistas de bowling para evitar que as bolas vão parar às calhas. Há uma certa ingenuidade que desaparece, um copo de leite com chocolate que se transforma num tinto encorpado. Atrevo-me a dizer que aquilo que mais gostei dele nesta noite não foi a actuação com a sua banda, mas sim esta colaboração num único tema.
No final, os mais resistentes ficaram, sem sucesso, a ganir e a latir por mais. Numa palavra: eléctrico. Ou não fosse este um evento patrocinado pela EDP.
sábado, 13 de julho de 2019
sábado, 6 de julho de 2019
domingo, 30 de junho de 2019
sábado, 29 de junho de 2019
Geometria euclidiana
«Mas é preciso notar aqui uma coisa: se Deus existe e se realmente criou a Terra, criou-a, como é sabido, de acordo com as leis da geometria euclidiana e criou o intelecto humano dotado apenas com a noção de espaço tridimensional. Entretanto, apareceram e aparecem agora matemáticos e filósofos, dos mais notáveis, que têm dúvidas sobre se todo o universo, ou, em termos ainda mais gerais, se toda a existência foi criada apenas de acordo com a geometria euclidiana, havendo até quem se atreva a sonhar que duas linhas paralelas, impossíveis de se encontrarem na Terra, segundo Euclides, poderiam muito bem encontrar-se algures no infinito. Então, meu querido, decidi que, se não sou capaz de perceber sequer isto, ainda menos serei capaz de perceber alguma coisa sobre Deus. Confesso resignadamente não ter quaisquer capacidades para resolver estes problemas, tenho uma mente euclidiana, terrena; como posso resolver as coisas do outro mundo?»
Os irmãos Karamázov, Fiódor Dostoiévski
Os irmãos Karamázov, Fiódor Dostoiévski
segunda-feira, 17 de junho de 2019
Crescer vai dar tempo pra aprender
«(...) os anos de estudo são os únicos felizes, os únicos em que o futuro parece aberto, em que tudo parece possível, a vida de adulto que se lhes segue, a vida profissional, não é senão um lento e progressivo decaimento, é sem dúvida por esse motivo que as amizades de juventude, as que fazemos no período em que estudámos e que no fundo são as únicas amizades verdadeiras, nunca sobrevivem à entrada na vida adulta, evitamos rever os amigos de juventude, para não sermos confrontados com os testemunhos das nossas esperanças frustradas, com a evidência do nosso próprio esmagamento.»
Serotonina, Michel Houellebecq
Serotonina, Michel Houellebecq
domingo, 16 de junho de 2019
Words are very unnecessary
«Não é bom que os amantes falem a mesma língua, não é bom que possam realmente compreender-se um ao outro, que possam trocar palavras, porque a palavra tem como vocação criar, não amor, mas divisão é ódio, a palavra separa assim que é formulada, enquanto uma informe tagarelice amorosa, semilinguística, falar com a namorada ou o namorado como se fala com o cão lá de casa, cria as condições para um amor incondicional e duradouro.»
Serotonina, Michel Houellebecq
Serotonina, Michel Houellebecq
sábado, 15 de junho de 2019
Panteísmo
A intenção do PAN de acabar com as beatas nas ruas revela uma enorme intolerância e é um atentado à liberdade religiosa.
sexta-feira, 14 de junho de 2019
quinta-feira, 13 de junho de 2019
Beine
A expressão "fiambre da perna extra" que se lê nas embalagens suscita a seguinte questão: será a isto que se refere a expressão "a quinta pata"?
quarta-feira, 12 de junho de 2019
terça-feira, 11 de junho de 2019
Quem diz é quem é
O Black Mirror faz uma crítica à aditividade das redes sociais. O que não deixa de ser interessante: se há coisa aditiva é o próprio Black Mirror.
domingo, 9 de junho de 2019
sábado, 8 de junho de 2019
segunda-feira, 3 de junho de 2019
Excedente de existências
Uma semana após as eleições europeias, volto a tirar da minha caixa de correio um panfleto de propaganda do PS, igual ao que já havia recebido antes, com uns soundbytes sobre a importância de votar PS nas eleições europeias.
domingo, 2 de junho de 2019
sexta-feira, 31 de maio de 2019
Gentrificação estelar
No meio das poucas estrelas que se vislumbram no céu poluído da cidade, o braço amarelo de uma grua imiscui-se. Como se o universo estivesse em construção ou a ser remodelado.
segunda-feira, 27 de maio de 2019
sábado, 25 de maio de 2019
quinta-feira, 23 de maio de 2019
Torcer pelo mau da fita
«One of the perplexities of fiction - and the quality that makes the novel the quintessentially liberal art form - is that we experience sympathy so readily for characters we wouldn't like in real life. Becky Sharp may be a soulless social climber, Tom Ripley may be a sociopath, the Jackal may want to assassinate the French president, Mickey Sabbath may be a disgustingly self-involved old goat, and Raskolnikov may want to get away with murder, but I find myself rooting for each of them.»
The end of the end of the world, Jonathan Franzen
The end of the end of the world, Jonathan Franzen
quarta-feira, 22 de maio de 2019
terça-feira, 21 de maio de 2019
segunda-feira, 20 de maio de 2019
Língua franca
O recurso constantes a analogias com futebol ou jogadores para explicar conceitos teóricos ou práticos é irritante. Como se a bola fosse a única linguagem que nos é verdadeiramente comum.
domingo, 19 de maio de 2019
sábado, 18 de maio de 2019
the buttons are there to be pushed
«Trump and his alt-right supporters take pleasure in pushing the buttons of the politically correct, but it only works because the buttons are there to be pushed - students and activists claiming the right to not hear things that upset them, and to shout down ideas that offend them. Intolerance particularly flourishes online, where measures speech is punished by not getting clicked on, invisible Facebook and google algorithms steer you toward content you agree with, and nonconforming voices stay silent for fear of being flamed or trolled or unfriended. The result is a silo in which, whatever side you're on, you feel absolutely right to hate what you hate. And here is another way in which the essay differs from superficially similar kinds of subjective speech. The essay's roots are in literature, and literature at its best - the work of Alice Munro, for example - invites you to ask whether you might be somewhat wrong, maybe even entirely wrong, and to imagine why someone else might hate you.»
The end of the end of the earth, Jonathan Franzen
The end of the end of the earth, Jonathan Franzen
sexta-feira, 17 de maio de 2019
Pessoas que apanham o elevador para se deslocar apenas um piso.
Sobretudo se o fizerem para ir fumar um cigarro e depois voltem a apanhar o mesmo elevador para regressar.
quinta-feira, 16 de maio de 2019
Perdi para o teu medo
Não foi uma derrota peremptória, categórica, daquelas que não dão qualquer margem para dúvida. Exactamente o contrário: durante algum tempo, parecia
pareceu-me na altura
que estava a controlar a situação, que poderia vencer. Pensei que poderia ter uma hipótese razoável. A sério. E não senti que pudesse estar a ser demasiado optimista, não tive a sensação de que pudesse ser a minha confiança a trair-me, a deixar-me ficar mal. Peito feito, deslumbrado com a meta ao alcance dos olhos. Subestimar o adversário. Nem sequer agora sinto que isso tenha acontecido.
Talvez nunca tenha tido verdadeiramente uma hipótese.
parece-me agora
Talvez estivesse destinado a ser o corredor de fundo que é ultrapassado, lenta mas decisivamente, nos últimos metros. A equipa que sofre um golo nos descontos. Morrer na praia. Talvez tenha subestimado o adversário
Como poderia estar à altura do teu medo?
Eu próprio devia ter ficado assustado com esse adversário, devia ter tido medo do teu medo. E nessa circunstância, talvez pudesse ter tido uma hipótese
parece-me
Talvez nessas condições pudesse ter estado à altura. Ou pelo menos, pudesse ter percebido mais cedo que nunca iria ganhar.
pareceu-me na altura
que estava a controlar a situação, que poderia vencer. Pensei que poderia ter uma hipótese razoável. A sério. E não senti que pudesse estar a ser demasiado optimista, não tive a sensação de que pudesse ser a minha confiança a trair-me, a deixar-me ficar mal. Peito feito, deslumbrado com a meta ao alcance dos olhos. Subestimar o adversário. Nem sequer agora sinto que isso tenha acontecido.
Talvez nunca tenha tido verdadeiramente uma hipótese.
parece-me agora
Talvez estivesse destinado a ser o corredor de fundo que é ultrapassado, lenta mas decisivamente, nos últimos metros. A equipa que sofre um golo nos descontos. Morrer na praia. Talvez tenha subestimado o adversário
Como poderia estar à altura do teu medo?
Eu próprio devia ter ficado assustado com esse adversário, devia ter tido medo do teu medo. E nessa circunstância, talvez pudesse ter tido uma hipótese
parece-me
Talvez nessas condições pudesse ter estado à altura. Ou pelo menos, pudesse ter percebido mais cedo que nunca iria ganhar.
quarta-feira, 15 de maio de 2019
terça-feira, 14 de maio de 2019
quinta-feira, 9 de maio de 2019
segunda-feira, 29 de abril de 2019
domingo, 28 de abril de 2019
Banalidade
«Naturalmente, havia algo mais a dizer sobre o assunto. Algo que, durante o contra-interrogatório, Eichmann se escusou a dizer ao juiz presidente; que, como jovem ambicioso que era, se tinha fartado do seu emprego de caixeiro-viajante antes ainda de a companhia petrolífera Vacuum se ter fartado dele. De uma vida banal, sem significado nem importância, o vento tinha-o empurrado para a História, tal como ele a entedia, isto é, para um Movimento que nunca se detinha e onde um homem como ele - já um falhado aos olhos da sua classe social, da sua família, e portanto também aos seus próprios olhos - podia começar do zero e construir ainda uma carreira. E ainda que nem sempre tivesse gostado daquilo que fazia (por exemplo, enviar pessoas para a morte em comboios a abarrotar, em lugar de as obrigar a emigrar); ainda que tivesse adivinhado, bastante cedo, que tudo aquilo ia acabar mal, com a derrota da Alemanha; ainda que os seus projectos tão acarinhados não tivessem dado em nada (a evacuação dos judeus europeus para Madagáscar, a criação de um território judaico na região de Nisko, na Polónia, a tentativa de cercar o seu escritório de Berlim com defesas especialmente concebidas para repelir tanques russos); ainda que, para sua grande «tristeza e desgosto», nunca tivesse alcançado um posto superior ao de Obersturmbannführer (patente equivalente à de tenente-coronel); e ainda que, por fim, excepção feita ao ano que passou em Viena, a sua vida tivesse sido, toda ela, um somatório de frustrações, ainda assim Eichmann nunca se esqueceu de qual seria a alternativa a tudo isso. Tanto na Argentina, onde levava uma vida difícil de refugiado, como no tribunal de Jerusalém, quando a morte era já quase certa, Eichmann continuava, porventura, a preferir - se alguém lho tivesse perguntado - ser enforcado como Obersturmbannführer a. D. (na reserva) a viver a vida tranquila e normal de um caixeiro-viajante da companhia petrolífera Vacuum.»
Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt
Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt
segunda-feira, 22 de abril de 2019
Uma fasquia tão elevada que nem o Bubka conseguiria transpor
domingo, 21 de abril de 2019
sexta-feira, 19 de abril de 2019
Responsabilidade #2
«Any competent manager of a destructive bureaucratic system can arrange his personnel so that only the most callous and obtuse are directly involved in violence. The greater part of the personnel can consist of men and women who, by virtue of their distance from the casual acts of brutality, will fell little strain in their performance of supportive functions. They will feel doubly absolved from responsibility. First, legitimate authority has given full warrant for their actions. Second, they have not themselves committed brutal physical acts.»
Obedience to authority, Stanley Milgram
Obedience to authority, Stanley Milgram
segunda-feira, 15 de abril de 2019
Responsabilidade
«This may illustrate a dangerously typical situation in complex society: it is psychologically easy to ignore responsibility when one is only an intermediate link in a chain of evil action but is far from the final consequences of the action. Even Eichmann was sickened when he toured the concentration camps, but t participate in mass murder he had only to sit at a desk and shuffle papers. At the same time the man in the camp whoa actually dropped Cyclon-B into the gas chambers was able to justify his behaviour on the grounds that he was only following orders from above, Thus there is a fragmentation of the total human act; no one man decides to carry out the evil act and is confronted with the consequences. The person who assumes full responsibility for the act has evaporated. Perhaps this is the most common characteristic of socially organised evil in modern society.»
Obedience to authority, Stanley Milgram
Obedience to authority, Stanley Milgram
domingo, 14 de abril de 2019
Grazie a te
Ouve-se falar italiano na fila que se vai formando antes da abertura das portas do cinema. Ou então, um português aprendido, com um sotaque adocicado. Quando o filme termina e o actor convidado é submetido a uma sessão de perguntas, na sua maioria são colocadas por concidadãos: o público português é o mais tímido da Europa, avança o apresentador - também ele um italiano luso-falante com aquele toque de açúcar mascavado - como possível explicação para o parco envolvimento dos locais.
Imagino a situação inversa, i.e., um festival de cinema (ou música, p.e.) português e eu na condição de expatriado. Questiono-me se seria presença assídua, da mesma forma que fui (e ainda me falta ver alguns filmes) nesta festa do cinema italiano e chego à conclusão que altamente duvidoso. Porque conheço mal o cinema do meu país? Porque me desperta menos curiosidade do que algo mais distante (sou provinciano?)? Sou um mau exemplo e compatriotas meus fariam a língua de Camões ouvir-se nas filas e encheriam as salas? Tudo plausível. Embora continue a achar que fariam menos perguntas no final.
Imagino a situação inversa, i.e., um festival de cinema (ou música, p.e.) português e eu na condição de expatriado. Questiono-me se seria presença assídua, da mesma forma que fui (e ainda me falta ver alguns filmes) nesta festa do cinema italiano e chego à conclusão que altamente duvidoso. Porque conheço mal o cinema do meu país? Porque me desperta menos curiosidade do que algo mais distante (sou provinciano?)? Sou um mau exemplo e compatriotas meus fariam a língua de Camões ouvir-se nas filas e encheriam as salas? Tudo plausível. Embora continue a achar que fariam menos perguntas no final.
sábado, 13 de abril de 2019
sexta-feira, 12 de abril de 2019
O professor faz check-ups regulares?
sábado, 6 de abril de 2019
quinta-feira, 4 de abril de 2019
O pente e a escova
Embora use uma escova e não um pente, nunca digo escovar o cabelo, mas sim pentear. Mais: digo despenteado e não descovado, uma condição capilar na qual me encontro frequentemente. Já agora, também digo lavar e não escovar os dentes, embora use, para o efeito, uma escova. E de dentes.
terça-feira, 2 de abril de 2019
segunda-feira, 1 de abril de 2019
domingo, 31 de março de 2019
quarta-feira, 27 de março de 2019
segunda-feira, 25 de março de 2019
domingo, 24 de março de 2019
Mais dois em vez de apenas um
A construção europeia já tem a sua dose de consultas populares repetidas até que o resultado seja (finalmente) o que (democraticamente) interessa, bons exemplos para não repetir o referendo do Brexit. Já para não dizer que, na lógica democrática, aceitar o resultado de 2016 parece ser a solução mais óbvia. Democracia, em princípio, é mais ou menos isto, aceitar a decisão da maioria. Apesar das recentes manifestações expressivas como a desta fim-de-semana, repletas de manifestantes que, entre outras coisas, argumentam que estão agora melhor informados para votar do que estavam há 3 anos. A minha proposta: um referendo intermédio para determinar se os votantes estão interessados num segundo referendo ao Brexit.
sábado, 23 de março de 2019
terça-feira, 19 de março de 2019
segunda-feira, 18 de março de 2019
Não, não é uma opinião
domingo, 17 de março de 2019
O quarteto de Brandford Marsalis é de se lhe tirar o blazer
(Publicado originalmente aqui)
1986. O ano começa com a entrada de Portugal, juntamente com a Espanha, na Comunidade Económica Europeia. Mário Soares ganha a segunda volta das eleições presidenciais. Um muro (ainda) divide Berlim ao meio e Ronald Reagan ocupa a Casa Branca. A União Soviética lança a estação especial Mir e, poucos dias depois, no Congresso do Partido Comunista, o Secretário-Geral Mikhail Gorbatchev profere as palavras Glasnost e Perestroika, termos que irão definir o seu mandato. Nasce o primeiro vírus de computador e o reactor 4 da central nuclear de Chernobyl explode. No cinema, “África minha” ganha o Óscar de melhor filme e vemos Tom Cruise pronunciar a célebre máxima “I feel the need… the need for speed” em Top Gun. Na rádio, Dionne Warwick relembra-nos que “That’s what friends are for”. Disputa-se o Campeonato do Mundo do México.
É difícil, senão praticamente impossível, condensar a importância dos acontecimentos ocorridos num dado ano num simples parágrafo – há necessariamente eventos e situações relevantes excluídos. Para os propósitos desta crónica, há uma ocorrência de monta que não foi referida: foi neste já distante ano de 1986 que o quarteto de Brandford Marsalis, o veterano saxofonista americano, foi constituído.
“Boa noite. Obrigado”, diz Brandford Marsalis, ao microfone, para gáudio do público, com um sotaque meio abrasileirado, assim que sobe ao palco do Grande Auditório do Centro Cultural de Belém. De seguida, apresenta os membros da formação. Eric Revin, no contrabaixo, e Joey Calderazzo, no piano, são companheiros das últimas duas décadas (bodas de prata?); Justin Faulkner, na bateria, é a mais recente aquisição da formação, se é que ainda nos podemos referir a esta aquisição como recente, já que Faulkner se juntou aos restantes três em 2009. Serve esta última frase para, não só elencar os membros do quarteto, mas também dar conta da estabilidade da relação entre os mesmos, uma característica a que se irá aludir mais à frente (já lá vamos).
O programa da noite desta noite é muito simples: no panfleto que é entregue aos espectadores quando entram na sala, o setlist vem discriminado – ainda que com a advertência de que está sujeito a alterações – e coincide, quase totalmente, com o novo álbum do quarteto, “The secret between the shadow and the soul”.
O arranque fica a cargo do contrabaixo de Eric Revis, que toca o riff de “Dance of the evil toys”, da autoria do próprio, enquanto os restantes membros soltam algumas gargalhadas até chegar a altura de eles próprios se juntarem. O tema é mais do que enérgico, frenético talvez seja um adjectivo que melhor se ajuste. Faulkner, que já havia tirado o blazer antes de se sentar à bateria, descarrega golpes frenéticos sobre os pratos e timbalões, quase como se estivesse a desempenhar uma rotina de ginásio. Após um solo de uma intensidade brilhante, Marsalis aproveita o hiato da sua participação no tema, enquanto Calderazzo executa o seu solo, para se dirigir ao fundo do palco – onde normalmente se coloca a observar os demais, quando não tem intervenção – e aproveita para tirar o seu blazer. Findo o solo de piano, é a vez de Calderazzo se contorcer um pouco enquanto luta para tirar (adivinharam) o blazer e, logo após o sucesso da operação, deposita o mesmo atabalhoadamente sobre o tampo do piano. Nesta fase, em que tanto a banda como o público estavam devidamente aquecidos, pareceria sensato reduzir um pouco a intensidade. Talvez por isso a escolha do segundo tema da noite tenha recaído sobre Cianna, da autoria de Joey Calderazzo.
Mais do que a capacidade técnica de cada um dos monstros em palco, sobre a qual apenas poderia chover no molhado, prefiro destacar a sua cumplicidade. Tal como os cônjuges que completam as frases e pensamentos uns dos outros, as décadas de colaboração destes quatro são evidentes na fluidez e facilidade como interagem e se complementam. Até mesmo nas exclamações e exortações em relação às performances alheias, assim como nos risos e gargalhadas contagiantes que, aqui e ali, se ouviram.
Quando reflecte sobre a abordagem de alguns colegas de profissão em relação ao número de colaborações, Marsalis põe em evidência um trade-off interessante: se, por um lado, participar em vários projectos diferentes pode trazer ganhos adicionais oriundos da exposição a diferentes músicos e formações, por outro lado, inflige o custo de tocar com pessoas com as quais, necessariamente, existe uma relação menos sólida e menor à-vontade. Para Marsalis, este custo é superior àquele benefício o que, no limite, significa que, para verdadeiramente explorar algo de novo, é necessária a rede de segurança que a cumplicidade oferece e que lhe permite tocar no limite, constantemente, sem receio. Algo que sente não faria caso não conhecesse da forma que conhece as pessoas que o acompanham.
No miolo do concerto, o único tema que não faz parte do álbum, uma versão divertida e bem-disposta do clássico “On the sunny side of the street”, repleta de kicks e acentuações. Imediatamente antes, houve lugar a um pequeno momento de um misto de indignação e comicidade. Calderazzo toca sozinho (haverá melhor definição de solo?) a interpretar “Life filtering from the water flowers”. Os restantes companheiros fitam-no de mãos apoiadas a descansar sobre os respetivos instrumentos, quando um toque de telemóvel estridente se faz ouvir pelo auditório. O pianista interrompe a sua intervenção, algumas vozes exprimem o seu agastamento. Eric Revis dirige os olhos para a plateia e meneia a cabeça ao som do irritante toque, em jeito de gozo. Até que o ruído incomodativo finalmente termina e o pianista retoma onde havia parado.
Findo o sétimo tema do set, tivemos direito à versão de “The windup”, de Keith Jarrett. Os quatro músicos ainda haviam de regressar ao palco uma vez mais, mas apenas para uma curta despedida, com uma vénia, sem aceder aos pedidos de mais música. Talvez para que fosse ainda mais claro que não iriam voltar a pegar nos instrumentos, já envergavam novamente os blazers com que haviam iniciado a noite.
1986. O ano começa com a entrada de Portugal, juntamente com a Espanha, na Comunidade Económica Europeia. Mário Soares ganha a segunda volta das eleições presidenciais. Um muro (ainda) divide Berlim ao meio e Ronald Reagan ocupa a Casa Branca. A União Soviética lança a estação especial Mir e, poucos dias depois, no Congresso do Partido Comunista, o Secretário-Geral Mikhail Gorbatchev profere as palavras Glasnost e Perestroika, termos que irão definir o seu mandato. Nasce o primeiro vírus de computador e o reactor 4 da central nuclear de Chernobyl explode. No cinema, “África minha” ganha o Óscar de melhor filme e vemos Tom Cruise pronunciar a célebre máxima “I feel the need… the need for speed” em Top Gun. Na rádio, Dionne Warwick relembra-nos que “That’s what friends are for”. Disputa-se o Campeonato do Mundo do México.
É difícil, senão praticamente impossível, condensar a importância dos acontecimentos ocorridos num dado ano num simples parágrafo – há necessariamente eventos e situações relevantes excluídos. Para os propósitos desta crónica, há uma ocorrência de monta que não foi referida: foi neste já distante ano de 1986 que o quarteto de Brandford Marsalis, o veterano saxofonista americano, foi constituído.
“Boa noite. Obrigado”, diz Brandford Marsalis, ao microfone, para gáudio do público, com um sotaque meio abrasileirado, assim que sobe ao palco do Grande Auditório do Centro Cultural de Belém. De seguida, apresenta os membros da formação. Eric Revin, no contrabaixo, e Joey Calderazzo, no piano, são companheiros das últimas duas décadas (bodas de prata?); Justin Faulkner, na bateria, é a mais recente aquisição da formação, se é que ainda nos podemos referir a esta aquisição como recente, já que Faulkner se juntou aos restantes três em 2009. Serve esta última frase para, não só elencar os membros do quarteto, mas também dar conta da estabilidade da relação entre os mesmos, uma característica a que se irá aludir mais à frente (já lá vamos).
O programa da noite desta noite é muito simples: no panfleto que é entregue aos espectadores quando entram na sala, o setlist vem discriminado – ainda que com a advertência de que está sujeito a alterações – e coincide, quase totalmente, com o novo álbum do quarteto, “The secret between the shadow and the soul”.
O arranque fica a cargo do contrabaixo de Eric Revis, que toca o riff de “Dance of the evil toys”, da autoria do próprio, enquanto os restantes membros soltam algumas gargalhadas até chegar a altura de eles próprios se juntarem. O tema é mais do que enérgico, frenético talvez seja um adjectivo que melhor se ajuste. Faulkner, que já havia tirado o blazer antes de se sentar à bateria, descarrega golpes frenéticos sobre os pratos e timbalões, quase como se estivesse a desempenhar uma rotina de ginásio. Após um solo de uma intensidade brilhante, Marsalis aproveita o hiato da sua participação no tema, enquanto Calderazzo executa o seu solo, para se dirigir ao fundo do palco – onde normalmente se coloca a observar os demais, quando não tem intervenção – e aproveita para tirar o seu blazer. Findo o solo de piano, é a vez de Calderazzo se contorcer um pouco enquanto luta para tirar (adivinharam) o blazer e, logo após o sucesso da operação, deposita o mesmo atabalhoadamente sobre o tampo do piano. Nesta fase, em que tanto a banda como o público estavam devidamente aquecidos, pareceria sensato reduzir um pouco a intensidade. Talvez por isso a escolha do segundo tema da noite tenha recaído sobre Cianna, da autoria de Joey Calderazzo.
Mais do que a capacidade técnica de cada um dos monstros em palco, sobre a qual apenas poderia chover no molhado, prefiro destacar a sua cumplicidade. Tal como os cônjuges que completam as frases e pensamentos uns dos outros, as décadas de colaboração destes quatro são evidentes na fluidez e facilidade como interagem e se complementam. Até mesmo nas exclamações e exortações em relação às performances alheias, assim como nos risos e gargalhadas contagiantes que, aqui e ali, se ouviram.
Quando reflecte sobre a abordagem de alguns colegas de profissão em relação ao número de colaborações, Marsalis põe em evidência um trade-off interessante: se, por um lado, participar em vários projectos diferentes pode trazer ganhos adicionais oriundos da exposição a diferentes músicos e formações, por outro lado, inflige o custo de tocar com pessoas com as quais, necessariamente, existe uma relação menos sólida e menor à-vontade. Para Marsalis, este custo é superior àquele benefício o que, no limite, significa que, para verdadeiramente explorar algo de novo, é necessária a rede de segurança que a cumplicidade oferece e que lhe permite tocar no limite, constantemente, sem receio. Algo que sente não faria caso não conhecesse da forma que conhece as pessoas que o acompanham.
No miolo do concerto, o único tema que não faz parte do álbum, uma versão divertida e bem-disposta do clássico “On the sunny side of the street”, repleta de kicks e acentuações. Imediatamente antes, houve lugar a um pequeno momento de um misto de indignação e comicidade. Calderazzo toca sozinho (haverá melhor definição de solo?) a interpretar “Life filtering from the water flowers”. Os restantes companheiros fitam-no de mãos apoiadas a descansar sobre os respetivos instrumentos, quando um toque de telemóvel estridente se faz ouvir pelo auditório. O pianista interrompe a sua intervenção, algumas vozes exprimem o seu agastamento. Eric Revis dirige os olhos para a plateia e meneia a cabeça ao som do irritante toque, em jeito de gozo. Até que o ruído incomodativo finalmente termina e o pianista retoma onde havia parado.
Findo o sétimo tema do set, tivemos direito à versão de “The windup”, de Keith Jarrett. Os quatro músicos ainda haviam de regressar ao palco uma vez mais, mas apenas para uma curta despedida, com uma vénia, sem aceder aos pedidos de mais música. Talvez para que fosse ainda mais claro que não iriam voltar a pegar nos instrumentos, já envergavam novamente os blazers com que haviam iniciado a noite.
sábado, 16 de março de 2019
Would any publisher dare to print Lolita now?
sexta-feira, 15 de março de 2019
quarta-feira, 13 de março de 2019
Zeitgeist
O antigo edifício do Tribunal do Trabalho alberga agora uma empresa de co-work.
segunda-feira, 11 de março de 2019
segunda-feira, 4 de março de 2019
domingo, 3 de março de 2019
sábado, 2 de março de 2019
Até onde é preciso ir?
Figuras da política britânica já tinham preenchido por várias vezes os ecrans gigantes por detrás do palco: referências seguramente mais próximas do universo dos Massive Attack. Mas, apesar do maior tempo de antena dedicado a conterrâneos, não foram os únicos contemplados. A certa altura a meio do concerto, chegamos a uma sequência que dificilmente terá sido um mero acaso. Primeiro um conjunto de imagens de Putin, nas mais variadas situações, desde as entradas triunfais pelas portas altas e solenes do Kremlin até às célebres cavalgadas em tronco nu. Mas só quando, imediatamente a seguir ao presidente russo, surgem imagens de Trump o público reage com fortes apupos e vaias efusivas.
sexta-feira, 1 de março de 2019
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019
terça-feira, 19 de fevereiro de 2019
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019
«O Papa é assim tão diferente quanto a esquerda o quer fazer crer?»
«O Papa é compreendido em todo o mundo. É muito laico na maneira de falar e também fala de política, de imigrantes , de homossexuais... Eu já lhe disse: "Os católicos de direita não gostam de si." E ele respondeu: "Eu sei." "Os católicos de esquerda também não gostam." E ele: "Eu sei." Quem o ama são os ateus e os agnósticos.»
Entrevista a Dominique Wolton, Revista Visão
Entrevista a Dominique Wolton, Revista Visão
domingo, 17 de fevereiro de 2019
Cheers, aquela app
A aplicação do telemóvel que regista os dados das corridas pergunta-me se quero que activar a função de "cheer". É óbvio que não quero: parece-me até patético considerar a hipótese de ter uma vozinha parvinha no meu telemóvel a dizer-me que fiz uma excelente distância num tempo muito bom, que me portei muito bem e fui um bom menino. Uma aprovação (literalmente) artificial que me faça sentir ainda melhor comigo próprio. Como pode uma mensagem deste género ter efectivamente efeito e levar a fazer um esforço maior? Mesmo que inteiramente personalizada e feita à minha medida. O que também me leva a questionar se receber um incentivo de um qualquer espectador - que não conheço de lado nenhum - de uma corrida me faria encarar os próximos passos dolorosos com outra determinação. Deve haver uma app com a resposta.
sábado, 16 de fevereiro de 2019
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019
Prescrição: Tempo para os nossos doentes
segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019
The medium and the massage
A propósito da mudança de instalações, os últimos dias de emissão da SIC fizeram lembrar aqueles programas manhosos da MTV, que consistiam em visitar a "crib" de uma celebridade qualquer que se dispunha a fazer visitas guiadas das divisões. Mesmo mal no caso da MTV, já conhecíamos a orientação juvenil-apatetada do canal. Pior quando o mesmo espectáculo é enquadrado em (supostos) programas de informação.
domingo, 10 de fevereiro de 2019
sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019
Bemol
A melhor tradução do movimento (lunático) flat earth é terra bemol. Está mesmo a pedir um bequadro para anular o acidente.
quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019
Nunca na vida
Certeza absoluta
Talvez
Já cá canta
Já cá mora
A sério?
Sempre achei
Não estou a ver
Isso é que era bom
Garantido
No limite
Não me cheira
Deixa-te de merdas
Feito
Tira o cavalinho da chuva
O mais certo
Sem dúvida
Nem pensar
Bonito serviço
Não falha
A não ser que
Já chega
Não me digas!
Por muito boa vontade que tenha
Escusas
Nunca se sabe
É difícil
É que é já a seguir
Está aí uma coisa esperta
Complicado
Não adianta
Está no papo
Talvez
Já cá canta
Já cá mora
A sério?
Sempre achei
Não estou a ver
Isso é que era bom
Garantido
No limite
Não me cheira
Deixa-te de merdas
Feito
Tira o cavalinho da chuva
O mais certo
Sem dúvida
Nem pensar
Bonito serviço
Não falha
A não ser que
Já chega
Não me digas!
Por muito boa vontade que tenha
Escusas
Nunca se sabe
É difícil
É que é já a seguir
Está aí uma coisa esperta
Complicado
Não adianta
Está no papo
terça-feira, 5 de fevereiro de 2019
Os cães ladram
Durante o monólogo inicial, que se transformou numa constante paródia a Trump, Colbert fala da caravana de pessoas, que partiu da América Central e foi engrossando à medida que palmilhou centenas e milhares de quilómetros em direcção à fronteira do México com os EUA. Aquela onde Trump quer colocar o muro, para o qual necessita de $5.7 mil milhões e não lhos dão. Logo a seguir a pronunciar a palavra Caravan, ouve-se Jon Batiste, o pianista líder da banda Stay Human que acompanha o programa, tocar - baixinho, de forma discreta ou, até mesmo, sorrateira - a melodia do clássico de Duke Ellington.
sábado, 2 de fevereiro de 2019
Uma cabine telefónica ao lado jardim.
Um pouco mais larga do que o habitual. Atravesso a rua e, quando me aproximo, apercebo-me que está cheia de coisas lá dentro: roupa, cobertores, sacos, bocados de cartão. Sinto o fedor intenso que vem das tralhas quando passo mesmo ao lado deste roupeiro de metal. Apesar de aberto em baixo, evita que as poucas posses de alguém fiquem ensopadas pelos fortes aguaceiros repentinos.
quinta-feira, 31 de janeiro de 2019
quarta-feira, 30 de janeiro de 2019
Jacob (Collier) of all trades, master of all
(Publicado originalmente aqui)
Magrinho, franzino, com uma popa de gel, calças de harém e t-shirt uns quantos números acima: assim irrompe energicamente (para não dizer freneticamente) pelo palco do Teatro Capitólio Jacob Collier. O jovem prodígio da música, de 24 primaveras de idade, começou a dar nas vistas há cerca de uma meia dúzia de anos atrás, a propósito das interpretações originais que fez de algumas músicas conhecidas e que carregou no youtube. Os vídeos foram propalados e o resto, adaptando um termo da gíria contemporânea, é pura viralização (conceito meu).
O sucesso viria a expandir-se, senão a cimentar-se, com o lançamento, em 2016, do seu álbum de estreia, “In my room”, que tem uma particularidade bastante interessante: todas as tarefas – interpretação, escrita de arranjos, gravação e produção – associadas ao seu álbum foram levadas a cabo, na íntegra, pelo próprio. No ano seguinte, viria a receber dois Grammies por dois dos temas do álbum: uma versão do tema dos Flinstones e o clássico de Stevie Wonder “You and I”.
Apoiado por uma equipa do MIT que o ajudou a desenvolver hardware e software que permitissem executar, ao vivo, os temas que tinha gravado na sua sala musical familiar, Jessie fez uma digressão com um círculo de instrumentos em palco e com uma panóplia de looping stations, que lhe permitiam fazer uma série de playbacks simultâneos. Isso e um harmonizer, um instrumento que foi desenhado exclusivamente para o moço e cuja função dificilmente conseguirei pôr por palavras (embora, ainda assim, tente): digamos que dá corpo à voz original, adicionando-lhe camadas e alturas diferentes, por forma a parecer que está a cantar várias notas em simultâneo.
Não foi este formato de one-man show com que o multi-instrumentista se apresentou no Teatro Capitólio em Lisboa, mas sim em quarteto, que o acompanhará na promoção do seu novo álbum intitulado “Djesse”. É aqui que tenho que me desculpar, fazer um mea culpa, mas o facto de ter estado de pé invalidou grande parte das minhas notas deste concerto. Por isso – e também porque os aplausos e assobios não ajudaram a perceber o que foi dito – apenas arrisco o nome do baixista, Rob Mullarkey. Já os nomes do baterista e da cantora/pianista/guitarrista/seguramente-mais-instrumentos-que-me-estão-a-escapar são gatafunhos seguidos de vários pontos de interrogação. E isso é particularmente enxovalhante no caso desta última, uma vez que se trata de uma jovem portuguesa, e que devia ser conhecida de metade da audiência, que estava a torcer e a apoiá-la de forma bastante notória e audível.
Apesar da referida formação em quarteto, não significa que o jovem se dedique a tocar um único instrumento no decurso do concerto. Longe disso. Muito longe disso. Na maior parte dos casos, vai alternando de instrumento, ao mesmo tempo que canta, e intervalando com rápidas deslocações até ao limiar do palco, lá bem perto do público. Um dos poucos temas em que apenas toca um instrumento é a versão espectacular do tal “You and I” de Stevie Wonder, na qual Jacob fica sozinho em palco ao piano (ou teclado) e consegue gerar uma interacção intensa com o público e arrancar a maior ovação da noite. Impressionante é também o controlo e domínio do baixo eléctrico. E, claro, da voz: dos sons mais graves – para mim, os seus registos mais impressionantes – até ao falsete, Jessie tem ao seu dispor uma tessitura longa, que não parece exigir grande esforço para se fazer ouvir.
A música abarca de tudo um pouco: inclui elementos do jazz, funk, música folk, gospel e soul, mas também de música electrónica e clássica. Tudo com groove; muito groove. O grau de elaboração dos arranjos, das harmonizações, da componente rítmica, da improvisação, da riqueza dos instrumentos utilizados e a qualidade de execução não parecem ser compatíveis com a tenra idade de Collier. Há um nível de maturidade musical muito elevado em praticamente todos os níveis e detalhes. Não obstante, a música e a interpretação têm uma certa aura de inocência ou ingenuidade, que diria mais compatível com a idade, embora envoltas numa espécie de falsa simplicidade que camufla toda a engrenagem elaborada subjacente.
A sabedoria popular estrangeira costuma dizer “Jack of all trades, master of none”. Mas, neste caso, este Jacob de todos os ofícios parece ter um claro e sério grau de mestria sobre todos eles. Ficamos à espera do regresso para breve de Collier a Portugal, desta vez ao Cool Jazz Fest, a 16 de Julho. Pode ser que, por essa altura, aumente a parada e faça um número adicional, que envolva tocar uns sete instrumentos diferentes ao mesmo tempo, a fazer o pino, com uma camisa de forças vestida, enquanto faz equilibrismo num arame a 20 metros do chão. Prepara-te, Houdini.
Magrinho, franzino, com uma popa de gel, calças de harém e t-shirt uns quantos números acima: assim irrompe energicamente (para não dizer freneticamente) pelo palco do Teatro Capitólio Jacob Collier. O jovem prodígio da música, de 24 primaveras de idade, começou a dar nas vistas há cerca de uma meia dúzia de anos atrás, a propósito das interpretações originais que fez de algumas músicas conhecidas e que carregou no youtube. Os vídeos foram propalados e o resto, adaptando um termo da gíria contemporânea, é pura viralização (conceito meu).
O sucesso viria a expandir-se, senão a cimentar-se, com o lançamento, em 2016, do seu álbum de estreia, “In my room”, que tem uma particularidade bastante interessante: todas as tarefas – interpretação, escrita de arranjos, gravação e produção – associadas ao seu álbum foram levadas a cabo, na íntegra, pelo próprio. No ano seguinte, viria a receber dois Grammies por dois dos temas do álbum: uma versão do tema dos Flinstones e o clássico de Stevie Wonder “You and I”.
Apoiado por uma equipa do MIT que o ajudou a desenvolver hardware e software que permitissem executar, ao vivo, os temas que tinha gravado na sua sala musical familiar, Jessie fez uma digressão com um círculo de instrumentos em palco e com uma panóplia de looping stations, que lhe permitiam fazer uma série de playbacks simultâneos. Isso e um harmonizer, um instrumento que foi desenhado exclusivamente para o moço e cuja função dificilmente conseguirei pôr por palavras (embora, ainda assim, tente): digamos que dá corpo à voz original, adicionando-lhe camadas e alturas diferentes, por forma a parecer que está a cantar várias notas em simultâneo.
Não foi este formato de one-man show com que o multi-instrumentista se apresentou no Teatro Capitólio em Lisboa, mas sim em quarteto, que o acompanhará na promoção do seu novo álbum intitulado “Djesse”. É aqui que tenho que me desculpar, fazer um mea culpa, mas o facto de ter estado de pé invalidou grande parte das minhas notas deste concerto. Por isso – e também porque os aplausos e assobios não ajudaram a perceber o que foi dito – apenas arrisco o nome do baixista, Rob Mullarkey. Já os nomes do baterista e da cantora/pianista/guitarrista/seguramente-mais-instrumentos-que-me-estão-a-escapar são gatafunhos seguidos de vários pontos de interrogação. E isso é particularmente enxovalhante no caso desta última, uma vez que se trata de uma jovem portuguesa, e que devia ser conhecida de metade da audiência, que estava a torcer e a apoiá-la de forma bastante notória e audível.
Apesar da referida formação em quarteto, não significa que o jovem se dedique a tocar um único instrumento no decurso do concerto. Longe disso. Muito longe disso. Na maior parte dos casos, vai alternando de instrumento, ao mesmo tempo que canta, e intervalando com rápidas deslocações até ao limiar do palco, lá bem perto do público. Um dos poucos temas em que apenas toca um instrumento é a versão espectacular do tal “You and I” de Stevie Wonder, na qual Jacob fica sozinho em palco ao piano (ou teclado) e consegue gerar uma interacção intensa com o público e arrancar a maior ovação da noite. Impressionante é também o controlo e domínio do baixo eléctrico. E, claro, da voz: dos sons mais graves – para mim, os seus registos mais impressionantes – até ao falsete, Jessie tem ao seu dispor uma tessitura longa, que não parece exigir grande esforço para se fazer ouvir.
A música abarca de tudo um pouco: inclui elementos do jazz, funk, música folk, gospel e soul, mas também de música electrónica e clássica. Tudo com groove; muito groove. O grau de elaboração dos arranjos, das harmonizações, da componente rítmica, da improvisação, da riqueza dos instrumentos utilizados e a qualidade de execução não parecem ser compatíveis com a tenra idade de Collier. Há um nível de maturidade musical muito elevado em praticamente todos os níveis e detalhes. Não obstante, a música e a interpretação têm uma certa aura de inocência ou ingenuidade, que diria mais compatível com a idade, embora envoltas numa espécie de falsa simplicidade que camufla toda a engrenagem elaborada subjacente.
A sabedoria popular estrangeira costuma dizer “Jack of all trades, master of none”. Mas, neste caso, este Jacob de todos os ofícios parece ter um claro e sério grau de mestria sobre todos eles. Ficamos à espera do regresso para breve de Collier a Portugal, desta vez ao Cool Jazz Fest, a 16 de Julho. Pode ser que, por essa altura, aumente a parada e faça um número adicional, que envolva tocar uns sete instrumentos diferentes ao mesmo tempo, a fazer o pino, com uma camisa de forças vestida, enquanto faz equilibrismo num arame a 20 metros do chão. Prepara-te, Houdini.
terça-feira, 29 de janeiro de 2019
A senhora tem uma no ventre e uma expressão de desconforto.
No topo esquerdo do anúncio, lê-se "muitos fritos este Natal?" e, no topo inferior direito, a promessa de que, ao tomar o produto publicitado, que o intestino ficará a funcionar como um relógio. O que é uma afirmação que suscita profunda reflexão: questiono-me se quereria o meu intestino a funcionar como um relógio. Da mesma forma que tenho sérias dúvidas se quereria que o meu relógio funcionasse como um intestino.
segunda-feira, 28 de janeiro de 2019
Não é uma imagem bonita
Sempre que, a propósito de toalhas, ouço falar em lavar turcos, imagino uns quantos Erdogans a ser enfiados numa banheira e esfregados com uma esponja.
domingo, 27 de janeiro de 2019
Lealdade grupal II
«De facto, as histórias falsas têm uma vantagem intrínseca relativamente à verdade no que toca a unir pessoas. Se queremos medir a lealdade grupal, pedir às pessoas que acreditem em absurdos é um teste muito melhor do que pedir-lhes que acreditem na verdade. Se um grande chefe diz: «O sol ergue-se a oriente e põe-se a ocidente», não é preciso ser-se leal ao chefe para aplaudir. Mas se o chefe diz: «O sol ergue-se a ocidente e põe-se a oriente», só quem lhe é realmente leal aplaudirá. Do mesmo modo, se todos os nossos vizinhos acreditam na mesma história fantasiosa, podemos contar com eles num momento de crise. Se apenas estiverem dispostos a acreditar em factos confirmados, o que prova isso?»
21 lições para o século XXI, Yuval Noah Harari
21 lições para o século XXI, Yuval Noah Harari
sábado, 26 de janeiro de 2019
sexta-feira, 25 de janeiro de 2019
Lealdade de grupo
«Dar às pessoas mais ou melhor informação dificilmente melhorará a situação. Os cientistas esperam desfazer equívocos através de um melhor ensino das ciências, e os comentadores esperam mudar a opinião pública relativamente a temas como políticas de saúde ou o aquecimento global apresentando ao público factos rigorosos e relatórios de especialistas. Essas esperanças baseiam-se numa incompreensão da forma de pensar dos seres humanos. A maioria dos nossos pontos de vista é moldada pelo pensamento de grupo e não pela individualidade racional, e agarramo-nos a estas perspectivas devido à lealdade de grupo. O mais provável é que bombardear as pessoas com factos e denunciar a sua ignorância individual saia pela culatra. A maioria dos seres humanos não gosta de factos em excesso, e certamente não aprecia sentir-se estúpida. Não presuma que conseguirá convencer apoiantes do Tea Party acerca da verdade do aquecimento global mostrando-lhes tabelas de dados estatísticos.»
21 lições para o século XXI, Yuval Noah Harari
21 lições para o século XXI, Yuval Noah Harari
quinta-feira, 24 de janeiro de 2019
O trolley do presidiário
O privilégio de ver gente a entrar no ginásio ou health club de trolley não é novo: o som das rodinhas no chão de pedra balneário a dentro faz lembrar os carrinhos para carregar as compras, normalmente associados a uma faixa etária mais alta. Agora ir para a prisão com um trolley pela mão é algo que só recentemente, a propósito de recentes prisioneiros em casos mediáticos, pude apreciar. Parece quase que estão a fazer check in só com bagagem de cabine, não despacham nada para o porão para poupar na tarifa. Ou vão em low cost. Mas é curioso e até inesperado: para as estadias relativamente prolongadas que se esperam num encarceramento, um trolley parece manifestamente insuficiente.
terça-feira, 22 de janeiro de 2019
segunda-feira, 21 de janeiro de 2019
Kudos
Quando um canhoto se refere a alguém como o seu "braço direito" estará a dizer que essa pessoa é um empecilho?
domingo, 20 de janeiro de 2019
quarta-feira, 16 de janeiro de 2019
terça-feira, 15 de janeiro de 2019
segunda-feira, 14 de janeiro de 2019
Murray
Nunca fui um grande adepto: do grupo dos big four, é aquele cujo estilo de jogo me interessa menos. Foi triste assistir à conferência de imprensa pré Open da Austrália, na qual fez o anúncio emotivo do final da carreira, por não resultar de uma vontade própria, nos seus próprios termos, mas sim de um obstáculo físico. Numa altura em que a longevidade dos atletas profissionais parece atingir novos limiares - e não é só no ténis, que está repleto de exemplos -, de repente, os 31 anos de Andy Murray parecem precoces, quando há não muito tempo (basta recuar uma geração de jogadores) seriam uma idade perfeitamente normal para arrumar as raquetes.
domingo, 13 de janeiro de 2019
quinta-feira, 10 de janeiro de 2019
quarta-feira, 9 de janeiro de 2019
Charger vs Mustang
Prelúdio:
1ª parte:
2ª parte:
1ª parte:
2ª parte:
segunda-feira, 7 de janeiro de 2019
domingo, 6 de janeiro de 2019
A sério...?
Eddie Redmayne, actor que interpretou Stephen Hawking no filme que retrata a sua vida, escreveu o seguinte no prefácio do livro "Breves respostas às grandes perguntas", que reune um conjunto de textos do acervo do cientista:
«Nervoso, lembrei-me de falar com ele acerca do facto de as nossas datas de aniversário terem apenas alguns dias de diferença, pelo que partilhávamos o mesmo signo do zodíaco. Ao fim de alguns minutos, Stephen respondeu: «Sou um astrónomo. Não um astrólogo.»»
«Nervoso, lembrei-me de falar com ele acerca do facto de as nossas datas de aniversário terem apenas alguns dias de diferença, pelo que partilhávamos o mesmo signo do zodíaco. Ao fim de alguns minutos, Stephen respondeu: «Sou um astrónomo. Não um astrólogo.»»
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