(Publicado originalmente aqui)
Magrinho, franzino, com uma popa de gel, calças de harém e t-shirt uns quantos números acima: assim irrompe energicamente (para não dizer freneticamente) pelo palco do Teatro Capitólio Jacob Collier. O jovem prodígio da música, de 24 primaveras de idade, começou a dar nas vistas há cerca de uma meia dúzia de anos atrás, a propósito das interpretações originais que fez de algumas músicas conhecidas e que carregou no youtube. Os vídeos foram propalados e o resto, adaptando um termo da gíria contemporânea, é pura viralização (conceito meu).
O sucesso viria a expandir-se, senão a cimentar-se, com o lançamento, em 2016, do seu álbum de estreia, “In my room”, que tem uma particularidade bastante interessante: todas as tarefas – interpretação, escrita de arranjos, gravação e produção – associadas ao seu álbum foram levadas a cabo, na íntegra, pelo próprio. No ano seguinte, viria a receber dois Grammies por dois dos temas do álbum: uma versão do tema dos Flinstones e o clássico de Stevie Wonder “You and I”.
Apoiado por uma equipa do MIT que o ajudou a desenvolver hardware e software que permitissem executar, ao vivo, os temas que tinha gravado na sua sala musical familiar, Jessie fez uma digressão com um círculo de instrumentos em palco e com uma panóplia de looping stations, que lhe permitiam fazer uma série de playbacks simultâneos. Isso e um harmonizer, um instrumento que foi desenhado exclusivamente para o moço e cuja função dificilmente conseguirei pôr por palavras (embora, ainda assim, tente): digamos que dá corpo à voz original, adicionando-lhe camadas e alturas diferentes, por forma a parecer que está a cantar várias notas em simultâneo.
Não foi este formato de one-man show com que o multi-instrumentista se apresentou no Teatro Capitólio em Lisboa, mas sim em quarteto, que o acompanhará na promoção do seu novo álbum intitulado “Djesse”. É aqui que tenho que me desculpar, fazer um mea culpa, mas o facto de ter estado de pé invalidou grande parte das minhas notas deste concerto. Por isso – e também porque os aplausos e assobios não ajudaram a perceber o que foi dito – apenas arrisco o nome do baixista, Rob Mullarkey. Já os nomes do baterista e da cantora/pianista/guitarrista/seguramente-mais-instrumentos-que-me-estão-a-escapar são gatafunhos seguidos de vários pontos de interrogação. E isso é particularmente enxovalhante no caso desta última, uma vez que se trata de uma jovem portuguesa, e que devia ser conhecida de metade da audiência, que estava a torcer e a apoiá-la de forma bastante notória e audível.
Apesar da referida formação em quarteto, não significa que o jovem se dedique a tocar um único instrumento no decurso do concerto. Longe disso. Muito longe disso. Na maior parte dos casos, vai alternando de instrumento, ao mesmo tempo que canta, e intervalando com rápidas deslocações até ao limiar do palco, lá bem perto do público. Um dos poucos temas em que apenas toca um instrumento é a versão espectacular do tal “You and I” de Stevie Wonder, na qual Jacob fica sozinho em palco ao piano (ou teclado) e consegue gerar uma interacção intensa com o público e arrancar a maior ovação da noite. Impressionante é também o controlo e domínio do baixo eléctrico. E, claro, da voz: dos sons mais graves – para mim, os seus registos mais impressionantes – até ao falsete, Jessie tem ao seu dispor uma tessitura longa, que não parece exigir grande esforço para se fazer ouvir.
A música abarca de tudo um pouco: inclui elementos do jazz, funk, música folk, gospel e soul, mas também de música electrónica e clássica. Tudo com groove; muito groove. O grau de elaboração dos arranjos, das harmonizações, da componente rítmica, da improvisação, da riqueza dos instrumentos utilizados e a qualidade de execução não parecem ser compatíveis com a tenra idade de Collier. Há um nível de maturidade musical muito elevado em praticamente todos os níveis e detalhes. Não obstante, a música e a interpretação têm uma certa aura de inocência ou ingenuidade, que diria mais compatível com a idade, embora envoltas numa espécie de falsa simplicidade que camufla toda a engrenagem elaborada subjacente.
A sabedoria popular estrangeira costuma dizer “Jack of all trades, master of none”. Mas, neste caso, este Jacob de todos os ofícios parece ter um claro e sério grau de mestria sobre todos eles. Ficamos à espera do regresso para breve de Collier a Portugal, desta vez ao Cool Jazz Fest, a 16 de Julho. Pode ser que, por essa altura, aumente a parada e faça um número adicional, que envolva tocar uns sete instrumentos diferentes ao mesmo tempo, a fazer o pino, com uma camisa de forças vestida, enquanto faz equilibrismo num arame a 20 metros do chão. Prepara-te, Houdini.
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