(Publicado originalmente aqui)
Quis o destino que este concerto do trio de Brad Mehldau – que, ainda por cima, tem como mais recente álbum Seymour reads the constitution! –, tivesse lugar em dia de eleições legislativas. Duas horas após o fecho das urnas, e várias após este que vos escreve ter cumprido o seu dever cívico, os três músicos fizeram a sua entrada no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
Poder-se-ia considerar este trio como uma espécie de geringonça: Mehldau tem as rédeas do piano na mão mas necessita do apoio musical do baixo de Grenadier e da bateria de Jeff Ballard para governar harmónica e melodicamente e conseguir aprovar as suas propostas musicais. Até que ponto as negociações foram complicadas, intensas, até que ponto houve cedências de parte a parte, nada disso é conhecido. Sabemos, isso sim, que, de vez em quando, Mehldau prefere governar a solo, com ou sem maioria. Aliás, os restantes membros da coligação musical também têm os seus projectos alternativos, não existe qualquer tipo de exclusividade nesta relação. Mas, quando juntos no mesmo palco, surgem como uma frente unida, com um programa bem-definido, cuja implementação é seguida à risca.
A campanha parece ter resultado em cheio: o povo, galvanizado, compareceu em força, encheu a sala de espectáculos, que está praticamente lotada. O nível de abstenção é extremamente reduzido. Lá à frente, no palco, depois da tradicional vénia de mãos cerradas, Mehldau assume um posicionamento mais à esquerda, Grenadier ocupa o centro e Ballard o lado direito. Apesar desta disposição, Mehldau toca com a cabeça virada à direita, aproveitando para, de quando em quando, dar uma discreta piscadela de olho e tentar ocupar um pouco do espaço dos restantes membros.
Findo o terceiro tema e sensivelmente a meio do setlist, Mehldau dirige-se ao público pela primeira vez. Agradece, também na língua de Camões, diz-se “happy to be here” e apresenta os parceiros de palco. Depois dá-nos algumas palavras sobre o que acabámos de ouvir: o primeiro tema é um original, ainda sem nome e, por isso, com o original título “No title”; “Good old days” foi o segundo; o terceiro foi “Twiggy”, do álbum Ode que, segundo nos explica, designa alguém. Mais do que isso: “she’s here tonight and she knows who she is. But more on that later”.
Com este véu de mistério, vira-se novamente para o teclado e ataca as teclas. A retórica não é o seu forte, Mehldau é claramente um tecnocrata do piano, um daqueles personagens que só vêem pautas à frente e que estão concentrados em fazer apenas o que lhes competem. Passa pelo “I should care”, uma magnifíca versão que desagua numa deambulação solitária ao piano, e termina o set com “Highway rider”, tema que deu nome ao álbum lançado em 2010.
No segundo encore da noite, Mehldau entra sozinho em palco. Explica-nos que se encontra na mesma cidade que a sua esposa, Fleurine, e desvenda-nos o mistério que deixou no ar: é ela a tal “twiggy”, que dá o titulo à música, e irá coligar-se a ele para o próximo tema. Claramente Mehldau não tem medo dos críticos que tecem acusações de nepotismo – o pianista não tem qualquer dúvida sobre a competência da sua parceira musical e certamente garante que a sua escolha não está minimamente relacionada com os laços conjugais e/ou familiares. A holandesa entra, qual “flausine”, de vestido longo e viola ao pescoço, ajeita o microfone e fala ao público no seu português transatlântico com toque flamengo. Diz-nos que estará em Lisboa a tocar naquele mesmo Grande Auditório a 24 de Outubro e que o tema se chama “Sonhando”.
Sejam quais forem as cores e preferências de cada um, parece-me inegável afirmar que este trio se trata de uma geringonça bem oleada, entrosada, que funciona com poucas fricções. Não se notam quaisquer divergências programáticas entre os membros: os temas que executam parecem ser escolhas com as quais todos se revêem e das quais não precisam de se distanciar para evitar qualquer prejuízo junto das respectivas bases. Sondagens e impressões recolhidas à boca do Grande Auditório indicam que tem grande probabilidade de se manter por mais alguns ciclos eleitorais. Pela minha parte, faço já aqui a minha declaração de voto.
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