domingo, 28 de abril de 2019

Banalidade

«Naturalmente, havia algo mais a dizer sobre o assunto. Algo que, durante o contra-interrogatório, Eichmann se escusou a dizer ao juiz presidente; que, como jovem ambicioso que era, se tinha fartado do seu emprego de caixeiro-viajante antes ainda de a companhia petrolífera Vacuum se ter fartado dele. De uma vida banal, sem significado nem importância, o vento tinha-o empurrado para a História, tal como ele a entedia, isto é, para um Movimento que nunca se detinha e onde um homem como ele - já um falhado aos olhos da sua classe social, da sua família, e portanto também aos seus próprios olhos - podia começar do zero e construir ainda uma carreira. E ainda que nem sempre tivesse gostado daquilo que fazia (por exemplo, enviar pessoas para a morte em comboios a abarrotar, em lugar de as obrigar a emigrar); ainda que tivesse adivinhado, bastante cedo, que tudo aquilo ia acabar mal, com a derrota da Alemanha; ainda que os seus projectos tão acarinhados não tivessem dado em nada (a evacuação dos judeus europeus para Madagáscar, a criação de um território judaico na região de Nisko, na Polónia, a tentativa de cercar o seu escritório de Berlim com defesas especialmente concebidas para repelir tanques russos); ainda que, para sua grande «tristeza e desgosto», nunca tivesse alcançado um posto superior ao de Obersturmbannführer (patente equivalente à de tenente-coronel); e ainda que, por fim, excepção feita ao ano que passou em Viena, a sua vida tivesse sido, toda ela, um somatório de frustrações, ainda assim Eichmann nunca se esqueceu de qual seria a alternativa a tudo isso. Tanto na Argentina, onde levava uma vida difícil de refugiado, como no tribunal de Jerusalém, quando a morte era já quase certa, Eichmann continuava, porventura, a preferir - se alguém lho tivesse perguntado - ser enforcado como Obersturmbannführer a. D. (na reserva) a viver a vida tranquila e normal de um caixeiro-viajante da companhia petrolífera Vacuum.»

Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt

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