(Publicado originalmente aqui)
O receio de que o dia de chuva possa condicionar o trânsito foi felizmente infundado. Rapidamente passo os túneis do Campo Grande, subo a Avenida Padre Cruz e desço a Calçada de Carriche. Talvez por ser 2 de Novembro: muita gente colou ao feriado do dia anterior dias de férias até ao fim-de-semana seguinte. Daí até aos quilómetros iniciais do asfalto duvidoso e trajecto sinuoso da A8 é um instante e, volvida uma hora, estou a sair da auto-estrada nas Caldas da Rainha. A aplicação do telemóvel vai falando comigo, indicando-me que direcção devo seguir, dando-me as instruções precisas até ter o Centro Cultural e de Congressos, que surge à minha esquerda.
Lá dentro, no impressionante auditório, já está na hora de início de mais um concerto do Caldas Nice Jazz e ainda o roadie coloca garrafas de água em palco. Uma senhora entra na fila à frente da do meu lugar e diz aos amigos que os músicos se atrasaram no “checksound” – uma forma recorrentemente utilizada para designar o “soundcheck” – e que estavam a acabar de jantar. São mais alguns minutos até as luzes se apagarem e o trio entrar em cena.
O primeiro tema é de Chico Buarque, “Trocando por miúdos”. O contrabaixista, Yasushi Nakamura, inicia o seu solo com frases pentatónicas, cheias a rebentar de groove e intenção. Pausadas, comedidas, com a calma de quem sabe esperar e respirar. Um dos vários momentos ao longo da noite em que Nakamura esteve em destaque, teve várias intervenções de grande nível no decurso do concerto.
Agora Goldberg estala os dedos para dar o tempo para o segundo, mais rápido. “Tokyo Dream” que, como nos explicará mais à frente, ocorreu-lhe num sonho numa noite em Tokyo. Foi a única vez que compôs um tema a sonhar e, por essa razão, nem sequer sente que a autoria seja sua. Uma estrutura e um cheiro bluesistico. Leon Parker, na bateria, de óculos escuros e cabelo rapado, emite uns sons agudos e umas exclamações enquanto toca, à la Keith Jarrett, seja quando aumenta a intensidade de um momento em que tem mais espaço para dar asas à sua arte, seja em resposta a algo que os outros dois músicos fazem que lhe agrada.
Goldberg tem uma ligação interessante à nossa língua. Fala-a de forma um pouco titubeante e quebrada, brasileiro gringo, como o define. De vez em quando regressa ao inglês nativo, alegadamente para não excluir os outros dois companheiros de palco – Leon Parker a certa altura parece afastar-se como quem desiste e se vai embora. Apresenta a banda pela primeira vez ao final do segundo tema e explica-nos que este é o último concerto da digressão. Agradece a hospitalidade com que foram recebidos, que chegou a incluir uma ida às termas que lhes deixou um odor sulfuroso. Aprecia o facto de não precisar de nos explicar a letra do tema de Chico Buarque. E, como se não bastasse tudo isto, termina anunciando o tema seguinte, que nos explica ser dedicado ao activista angolano Luaty Beirão, que teve o prazer de conhecer recentemente. O público responde com uma ovação sentida ao tema que leva no título o nome próprio “Luaty”.
Mais à frente vamos ouvir outro tema que remete para o Brasil. A introdução tem a linha de baixo do “Hit the Road Jack”, tónica menor, seguida de sétima, sexta, quinta, e liga com a “Manhã de Carnaval”, banda sonora do filme “Orfeu Negro” da autoria de Jobim. E vamos ouvir também, entre outros, uma versão do “All of me” que é também um habitué do set list dos concertos de Goldberg.
Um momento diferente, quase caricato, fechou o set: Leon Parker levanta-se do banco da bateria, afasta-se enquanto abre os botões da camisa (calma, tinha uma t-shirt por debaixo), e coloca-se à frente de um microfone. E, com recurso à sua voz e a estalidos com os dentes e a língua, duas mãos a bater no peito – uma com o punho fechado, outra com o punho aberto – estilo Tarzan, acompanha os companheiros (passo a redundância). Depois disto, que naturalmente arrancou uma reacção bastante efusiva do público, só mesmo um encore com a já clássica versão do “Isn’t She Lovely” de Stevie Wonder fez os músicos regressar para encerrar a noite.
Há uns bons anos tive o prazer de ver Aaron Goldberg mas não como frontman. Desta vez, tive o privilégio de o ver brilhar nesse papel, apoiado numa excelente secção rítmica. É provável que tenha atingido uma fase da sua carreira em que não precise de se afirmar – há quem diga que o temos de fazer constantemente – mas, caso restassem algumas dúvidas, ficaram cabalmente esclarecidas: Goldberg está claramente numa classe aparte, juntamente com a elite dos pianistas de jazz actuais.
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