terça-feira, 7 de novembro de 2017

O que mais me vem à memória é o teu sorriso.

Grande, vasto. Largo. Orelha a orelha. Os olhos pequeninos, franzidos com rugas, marotos. Vejo-te com a boina na cabeça, a andar no quintal, a tirá-la da cabeça quando nos vês e vens falar.
Ça va?
As bochechas subidas a acompanhar o movimento da boca. Assim era quando te via, normalmente passado algum tempo, e te cumprimentava. Quando falávamos sobre qualquer coisa. Quando nos metíamos contigo. Como quando te picavam para tocar o realejo e tu não te inibias nada e tiravas o objecto do bolso das calças
Bah voilà
levavas à boca com as duas mãos e sopravas. Um bem-disposto.
Relembro-me daquele verão, vejo-te a entrar em casa pelo corredor, cacete debaixo do braço, boina na cabeça. Viravas à direita para a cozinha, onde a mesa redonda ficava à justa, era só esticar os braços para tirar as coisas da gaveta, pegar em algo da bancada, para onde a gata cinzenta, bola de pêlo
Bibiche
saltava e lambia o queijo de triângulo suavemente, quando não eram os pedacinhos pequeninos de bife cru cortados com uma faca
Come melhor do que nós, o raio da gata
e ficava ali com o focinho na tijela pequena. Acabávamos o almoço e começavas o teu ritual seguinte: sentavas-te no canto esquerdo do sofá, bem encostado e rapidamente adormecias. Ouvi-te ressonar vezes sem conta, naqueles poucos minutos de sono pós-prandiais. E, de repente, acordavas quase sobressaltado, saias do sofá com um pulo, como se tivesses molas nos pés
Ça y est
e regressavas à tua vida, depois de voltar a pôr a boina cabeça. Andavas pelo quintal a tratar das coisas enquanto me lembro de ter visto o anúncio da Sega
Sega, c’est plus fort que toi
tantas vezes na televisão. Por vezes entravas rapidamente pela sala adentro quando ela não estava por perto para te censurar e, a olhar por cima do ombro, abrias a porta de baixo do armário na sala, retiravas uma garrafa lá de dentro, e despejavas um pouco num copo pequeno. Olhavas para mim de seguida, cara de maroto, dedo indicador esticado à frente da boca e do nariz, e fazias
Shiu
antes de beber rapidamente o conteúdo do copo. Não querias que ela soubesse das tuas incursões pelo armário das bebidas e eu cumpri o teu pedido, como se fosse uma espécie de segredo de Estado, uma omertà selada entre nós. Pelo contrário, os cigarros
Gauloises, aqueles maços azuis clarinhos com o capacete alado, fazia-me lembrar os livros do Astérix
tinhas permissão (ou desplante) para fumar, embora levasses sempre sermão quando eras visto com um na mão. E, como sempre, rias-te, o sorriso aberto e largo, os olhos pequeninos escondidos atrás das bochechas. Da mesma forma como quando te metias connosco em miúdos. Estás em cima de um escadote ou de um banco, na cozinha, virado para a janela do fundo, a que dava para o caramanchão antes do portão da garagem, a arranjar qualquer coisa lá em cima, quando nós entrámos. Pela cozinha, como sempre se entrava naquela casa. Cumprimentamos-te e tu para te meteres connosco, mostras-nos os músculos do braço e, com gestos exagerados e teatrais, sopras com força para o teu polegar ao mesmo tempo que contrais o músculo do teu antebraço, que faz um alto redondo perto do cotovelo, como se fosse um balão que tivesses acabado de encher com o ar que entrou pelo polegar, subiu o braço e se alojou naquele sítio. Apertei-te o alto no braço e quis mostrar-te que já era suficientemente crescido para não acreditar nesse número.
Bah dis donc!
E tu, como sempre, riste-te. Olhos franzidos, o sorriso.
Há muitos anos, numa daquelas noites de verão da casa que costumava ficar cheia naquela altura do ano, sentámo-nos na sala no piso de cima. Naquele espaço entre os quartos todos onde praticamente dividíamos todo o tempo passado naquela casa, juntamente com a cozinha ampla. Não me lembro como começou mas acabámos a jogar à sardinha, sentados nas cadeiras de lona. Cadeiras que tinham braços e, quando o jogo assim exigia, e tínhamos de retirar rapidamente os nossos próprios braços para não levarmos uma palmada, os meus cotovelos bateram violentamente nos braços de plástico da cadeira. Riste-te da primeira vez que me viste esfregar o cotovelo de dor. Das vezes subsequentes riste-te ainda mais. A certa altura, lembro-me de te ver encolhido a um canto, agarrado à barriga. Rimo-nos todos, para dizer verdade, a certa altura eu ria-me de te ver a bandeiras despregadas.

E é assim que quero continuar a lembrar-me de ti.

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