terça-feira, 21 de novembro de 2017

O sermão que Father John Misty pregou no Coliseu

(Publicado originalmente aqui)

O Coliseu de Lisboa está sem as cadeiras na plateia, magotes de pessoas de pé e algumas sentadas, ao fundo, na geral, assistem a Weyes Blood, uma californiana nascida no final dos anos oitenta. Cabelo liso, escuro, longo, vou aqui usar uma comparação que não é da minha autoria e cuja utilização solicitei: parece uma Mafalda Veiga americana com os seus pássaros do sul. Como sempre nestas coisas, o público pode até mais do que tolerar e ter mesmo uma genuína empatia por quem tem a ingrata tarefa de fazer tempo até surgir o cabeça de cartaz, mas é por demais redundante dizer que o que quer ver é mesmo o cabeça de cartaz. E, embora bata palmas e exulte, goste daquilo que ouve, quer que o primeiro concerto acabe e dê lugar ao segundo.

Para os maiores fãs, esta pode ser uma longa espera. Quase tão longa como o percurso que levou Josh Tillman até ao alter ego (?) Father John Misty. Um percurso que incluiu anos dedicados à música, noutras bandas – e, por vezes, sentado à bateria, – assim como em próprio nome, sob a égide do qual, aliás, gravou oito álbuns, repletos de uma música folk maioritariamente sombria, e que passaram relativamente despercebidos. E, escusado será de dizer, sem nunca atingir minimamente o patamar alcançado enquanto Father John Misty.

Num longo artigo da New Yorker do verão deste ano, é descrito, logo no início, aquele percurso, que contou com bastantes atribulações pessoais, incluindo depressões e drogas. E drogas para lidar com depressões – segundo o próprio, o LSD tem nele um efeito terapêutico que é normalmente associado à cannabis. Mas foi uma experiência com cogumelos alucinogénios que, em 2010, o levou a deixar a cidade onde então vivia, Seattle, em direcção a Los Angeles, com um plano em mente: escrever um romance.

Nessa senda, deu conta que, naquilo que agora escrevia com um intuito diferente, estava uma voz diferente, uma voz que era mais sua do que aquilo que até então tinha escrito na sua música. Voltou a pegar na guitarra e a escrever novamente músicas e também nesta circunstância havia algo de diferente e novo. E assim nasceu um novo eu, mais verdadeiro do que anterior, cujo nascimento Josh Tillman baptizou de Father John Misty. Tillman descreve o desconforto com que se sente na pele de cantor e compositor e das personagens que assume em palco e tem uma frase que gostei particularmente que, traduzida para português, é qualquer coisa como “quis ser autenticamente falso e não falsamente autêntico.”

Um primeiro álbum em 2012 chamado “Fear Fun”, um segundo em 2015 chamado “I love you, honeybear” e, esta primavera, “Pure Comedy”, tema aliás com que dá início ao set, depois das luzes da sala se apagarem e imagens de bonecos, com expressões sinistras e macabras, aparecerem projectadas no fundo do palco.

Caminha lentamente, de um lado ao outro do palco. Faz gestos incisivos com as mãos, algo teatrais. Aliás, toda a postura parece uma representação, como se Josh Tillman se tivesse mascarado e assumido a personagem de Father John Misty. Faz uma espécie de dança, com um ligeiro meneio, o braço esticado com a mão a tecer uma ligeira curvatura e que desce ao longo do corpo, num misto de sevilhana com dança erótica. O público reage efusivamente, partilha e comunga como se se tratasse de uma experiência religiosa. E então percebo: o público já não é público, deixou de o ser. O público é o rebanho que ouve a palavra do seu pastor, um conjunto de acólitos que bebe a palavra sagrada do pregador. Que procura a salvação.

O concerto desenrola-se com uma precisão milimétrica, as músicas seguem-se umas atrás das outras, com pouco espaço para qualquer desvio ao line up, para qualquer pequena manifestação de espontaneidade. Mesmo quando, impelido por um momento de maior intensidade musical, Father John Misty se coloca de joelhos a cantar e, mais ainda, se deixa tombar para trás até as costas tocarem o palco, parece um movimento que segue uma lógica e um fio-condutor inescapáveis, como se não pudesse existir qualquer outra manifestação noutro momento que não aquela.

Estamos no miolo do concerto, no tema “True Affection”, introduzido por um som digital acompanhado de imagens de um coração na tela gigante, quando surge a primeira brecha: ouve-se um “thank you very much” dito na passada, que rapidamente é deixado para trás pelo tema seguinte. E, um pouco mais à frente, quando no início de “Bored in the USA” a luz do holofote que lhe é apontado o incomoda, dá uns passos ao lado para evitar ser encadeado. E o rebanho reage. E, ainda nessa música, arranca e puxa pela voz e o rebanho volta a reagir efusivamente. “Let’s hear it for the band”, pede – e é devidamente correspondido – logo no tema seguinte, “I’m writing a novel”. E tudo parece ganhar uma nova intensidade, uma nova força quando canta “Hollywood forever cemitery” e “I love you, honeybear” para terminar o set, com beijinhos soprados para o rebanho.

Finalmente no encore se sente que a encenação caiu por terra e que é agora Josh quem está à nossa frente. “Thank you very much, this is incredible”. Lá à frente, junto às grades, alguém tem um cartaz que ele lê “Please give me the setlist or let me touch your beard”. Josh opta pela segunda opção, desce do palco e dá a barba a tocar, ao mesmo tempo que explica que tem a pele um pouco seca. Há mais alguém que pede um abraço que também é correspondido. Regressa ao palco e dá-nos um elogio “you are the best crowd in the world”. E é precisamente neste momento que deixamos definitivamente de ser um rebanho e nos transformamos novamente num público.

“Real love baby”, “So I’m growing old on magic mountain”, “Holy shit” e o conjunto de encores termina com um intenso “The ideal husband”, num sermão que praticamente totaliza duas horas. Não somos só nós que voltámos a ser público: parece ser Josh Tillman quem está agora em cima do palco e não o mesmo Josh Tillman que, por momentos, foi Father John Misty. Ou um terceiro John Tillman que, enquanto Father John Misty fez de Josh Tillman.

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