(Publicado originalmente aqui)
Ao entrar as portas do Teatro Maria de Matos, depois de ter conseguido navegar as restrições ao trânsito na avenida de Roma causadas por um desfile de pessoas vestidas a rigor para o Halloween, tentei recordar-me da última vez que ali tinha estado. Um sítio onde fui algumas vezes com os meus avós, assim como aos cinemas King, poucos metros mais abaixo, à esquerda na esquina. E, se é certo que não consegui aceder ao local remoto da minha memória onde essa recordação possa estar (hipnose?), é também certo que não esperaria regressar a este local para ver um concerto. E ainda para mais este tipo de concerto: o septeto do trompetista nova-iorquino Peter Evans, que esteve em Lisboa esta 3a feira dia 31, depois de ter passado pelo Conservatório de Música de Coimbra e pela Casa da Música, no Porto.
Evans é um trompetista que já experimentou com inúmeras formações diferentes, a solo, em duo, em trio, quinteto. Seguindo uma lógica incremental, o quinteto foi alargado para incluir um violinista e um percussionista. Eis os seis que subiram ao palco do Maria de Matos com o frontman para apresentar o mais recente projecto denominado Action/Metempsychosis: Mazz Swift (violino), Ron Stabinsky (piano e sintetizador), Sam Pluta (electrónica), Tom Blancarte (baixo), Levy Lorenzo (percussão e electrónica) e Jim Black (bateria e sampler).
O espectáculo inicia de rompante, de forma inesperada, com a voz da violinista Mazz Swift, um instrumento que não vem listado na comunicação oficial mas que se revela de importância logo na primeira nota. É uma voz forte, penetrante, que canta, ri, geme e, pelo meio, respira, suspira. Ganha um cúmplice na corda solta do violino que se lhe associa por algum tempo, até os restantes progressivamente se juntarem. Trompete e voz formam uma quase união em notas lentas e prolongadas até a música prosseguir noutra direcção, ao longo de um set único de cerca de uma hora e vinte minutos.
A liberdade dos membros deste septeto é bastante grande. Nos momentos em que se sente no seu expoente máximo, é como se cada um estivesse a dar o seu próprio concerto ou recital a solo. Mas tal não significa que cada um esteja a tocar para seu lado; pelo contrário, há uma fluidez e uma simbiose nas melodias que se intersectam e se cruzam que confere uma unidade e torna aquilo que parece um exercício individual em algo fortemente colectivo.
A riqueza dos instrumentistas em palco permite também explorar diferentes combinações da lógica anterior mas em pequenas formações – duos, trios – formadas dentro do conjunto. Por exemplo, quando ao solo de electrónica se associa a bateria e a percussão que, por sua vez, levam a uma “conversa” entre Jim Black e Levy Lorenzo – que enverga uma t-shirt na qual se lê, em letras amarelas, “agora pense num groove bom” – e que, também, por sua vez, levam a outra combinação de sons e timbres. Outras vezes, estas várias divagações laterais simultâneas – como grupos de pessoas que conversam bilateralmente à mesa de uma sala de reuniões repleta – desaguam num riff conjunto, numa linha melódica forte e incisiva que todos executam, manifestando ou relembrando a sua unidade.
Como qualquer liberdade, esta que é conferida pela formação maior vem associada a uma responsabilidade: a de saber ouvir os demais, com ouvidos de ouvir, e de saber reagir, responder e interagir adequadamente, com o objetivo comum de criar música. Talvez a isto queira Evans aludir com a metempsicose que faz parte do título deste projecto: a forma como a música passa de intérprete para intérprete, como a alma que vai encarnando em diferentes pessoas, ao longo de um percurso. E talvez, se ainda maior especulação me é permitida, seja uma forma de salvação da alma, em cujo caso a expressão trocadilhística “for Evans sake” poderia fazer algum sentido. Estou, no entanto, em plenas condições de afirmar, sem qualquer especulação, que a minha alma de espectador saiu mais consolada do Maria de Matos. Que tenha sido no Halloween é um pormenor que só o torna mais curioso.
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