Leva-no ao longo de alguns quilómetros pelos arrabaldes até chegarmos ao local. Descalçamos os sapatos assim que entramos e só os voltaremos a ver passado um dia, no momento da nossa partida. O processo de check in é um pouco diferente do de um hotel tradicional. A senhora de sorriso rasgado mostra-nos as áreas, interior e exterior, de banhos termais, os onsen, e depois leva-nos ao nosso quarto. Assim que se entra, à esquerda, a casa-de-banho (sem duche) e, em frente, uma porta de correr que abre para um espaço minimalista: uma esteira sob a qual está uma mesa e umas almofadas para sentar, alguns quadros e figuras na parede. Serve-nos um pouco de chá usando a água de uma chaleira eléctrica e passa à parte de nos mostrar pedaços de papel plastificados com algumas indicações e instruções. Mostra-nos também onde estão os nossos trajes e as toalhas que devemos usar para ir aos banhos. Assim que sai, iniciamos o complicado processo de colocar os trajes e acertar com a forma correcta de atar os cinturões à cintura. É necessária alguma luta até nos sentirmos em condições para sair para o corredor e fazer caminho até ao balneário onde nos preparamos para o ritual do banho.
Depois do banho e de uma pequena sesta no chão de esteira do quarto, um pequeno toque na porta do quarto. A senhora e o seu sorriso rasgado vêm buscar-nos para jantar. Descemos um piso e entramos na sala de jantar, uma divisória grande onde se encontram uma série de pequenas subdivisões com as mesmas portas de correr do quarto. Somos encaminhados para a nossa onde, uma mesa também ela ao nível do chão nos aguarda, desta vez com a simpática característica de ter um desnível onde podemos colocar confortavelmente as pernas depois de nos sentarmos no chão que, nestas circunstâncias, passa a parecer um normal banco. A mesa está repleta de pequenos pratos e tijelas com comida que temos dificuldade em identificar. A senhora, sempre com o mesmo sorriso rasgado, dá-nos instruções em relação aos pratos, o que nos permite perceber, mais coisa menos coisa, com que molho ou acompanhamento vai cada um deles. E sai para regressar passado com pouco, com ainda mais pratos, que põe à nossa frente depois de retirar os vazios. Perdi a conta ao número de vezes deste vai e vem, sempre com mais pratos, sempre com o mesmo sorriso, sempre com as mesmas explicações na língua que não percebemos mas com os gestos que nos permitem ir acompanhando. A seguir ao jantar, quando regressamos ao quarto, a mesa foi retirado do centro que é agora ocupado por dois colchões, lençóis e cobertas. No pequeno-almoço da manhã seguinte, o mesmo processo do jantar, incluindo uma diversidade substancial de comida.
O hotel onde ficamos no dia seguinte tem cacifos à entrada para de imediato tirarmos os sapatos e aí os colocarmos, e calçarmos uns chinelos que nos são cedidos. Depois subimos até ao topo, ao último andar, onde ficam os cacifos apertados onde lutamos para enfiar a mala, as casas-de-banho e os chuveiros. Depois descemos um andar para a zona onde se dorme. O corredor é longo, pouco iluminado, com os números escritos no chão, setas a apontar para a entrada. Parecem favos de uma colmeia. Descubro o meu número, e entro na minha cápsula, uma das de baixo. Lá dentro um colchão suave, um edredon fino e uma almofada. Fecho a cortina da entrada, que protege da ténue luz e do (pouco) movimento dos outros hóspedes que passam à procura das respectivas camas. À pergunta óbvia que surge sempre respondo que não, não é claustrofóbico. Pelo menos para mim, que não sou de todo um fã de espaços apertados, não me incomodou minimamente. Aliás, posso até garantir que foi uma noite bem passada.
quinta-feira, 30 de novembro de 2017
quarta-feira, 29 de novembro de 2017
Lost in translation
Voltemos ao primeiro dia, aquele em que precisei de aproximadamente um dia para chegar a Narita e de umas seis horas, em três comboios diferentes, para chegar do aeroporto até à estação de Hiroshima. Estou desejoso para chegar ao hotel e falta-me apenas uma etapa: apanhar um eléctrico que me leve da estação até perto centro da cidade. Mas para o efeito preciso de levantar ienes. Olho e calcorreio em todas as direcções e não há meio de ver um ATM. De repente vejo um casinhoto logo à saída da estação com o símbolo de turismo.
Lá dentro, sou imediatamente recebido por um maravilhoso ar-condicionado que me resgata do calor pegajoso da rua. E depois sou atendido por uma senhora simpática mas que fala inglês mais ou menos como eu falo malaio. Felizmente consegue perceber um pouco melhor do que eu percebo malaio e, após algumas repetições, percebe a pergunta. A resposta surge sob a forma de uma indicação num papel plastificado com um mapa da zona, onde ela me aponta a localização da máquina. Explica-me três, quatro vezes e, mesmo assim, tenho sérias dúvidas de que tenha verdadeiramente percebido, dúvidas essas altamente fundadas dado que, de facto, continuo sem perceber onde fica o raio da máquina. Com cara de barata tonta, pergunto ao segurança da estação que não percebe o que digo. Em quase desespero entro num pequeno centro comercial para refrescar as ideias no ar-condicionado e, golpe de sorte, aí estão várias máquinas ao fundo do corredor. A primeira não funciona, a segunda tampouco, mas a terceira, diferente em aspecto das outras duas, cospe umas quantas maravilhosas notas com imagens do imperador e muitos zeros num dos cantos. Desde este ponto até ao quarto no hotel é trigo limpo farinha Amparo.
Uns dias depois, em Kyoto, numa visita guiada ao Palácio Imperial, conhecemos a pessoa com quem melhor nos intendemos em inglês. A guia, uma senhora de pala na cabeça e que sofre com o calor como nós, fala-nos entusiasticamente dos vários edifícios pelos quais vamos passando, coloca-se à disposição para eventuais questões, que a deixam visivelmente radiante por responder quando efectivamente surgem. Perto do final, antes de pedir à audiência para se sentar nuns bancos para uma última explicação, fala connosco à parte e fica surpreendida com a nossa proveniência. Imediatamente discutimos influências culturais mútuas como a origem portuguesa da tempura, os peixinhos da horta que ficaram com uma designação que tem a palavra “tempero” como génese. Voltamos à fala depois do final da charla, está curiosa por saber mais coisas, onde estivemos, o que ainda vamos ver. Acabamos a falar com ela ao longo de uma boa meia-hora, na cafetaria, mostrando-lhe fotos dos percursos e de pratos que comemos sem saber o que são. Despedimo-nos dela com indicações e sugestões de coisas para fazer a seguir.
Lá dentro, sou imediatamente recebido por um maravilhoso ar-condicionado que me resgata do calor pegajoso da rua. E depois sou atendido por uma senhora simpática mas que fala inglês mais ou menos como eu falo malaio. Felizmente consegue perceber um pouco melhor do que eu percebo malaio e, após algumas repetições, percebe a pergunta. A resposta surge sob a forma de uma indicação num papel plastificado com um mapa da zona, onde ela me aponta a localização da máquina. Explica-me três, quatro vezes e, mesmo assim, tenho sérias dúvidas de que tenha verdadeiramente percebido, dúvidas essas altamente fundadas dado que, de facto, continuo sem perceber onde fica o raio da máquina. Com cara de barata tonta, pergunto ao segurança da estação que não percebe o que digo. Em quase desespero entro num pequeno centro comercial para refrescar as ideias no ar-condicionado e, golpe de sorte, aí estão várias máquinas ao fundo do corredor. A primeira não funciona, a segunda tampouco, mas a terceira, diferente em aspecto das outras duas, cospe umas quantas maravilhosas notas com imagens do imperador e muitos zeros num dos cantos. Desde este ponto até ao quarto no hotel é trigo limpo farinha Amparo.
Uns dias depois, em Kyoto, numa visita guiada ao Palácio Imperial, conhecemos a pessoa com quem melhor nos intendemos em inglês. A guia, uma senhora de pala na cabeça e que sofre com o calor como nós, fala-nos entusiasticamente dos vários edifícios pelos quais vamos passando, coloca-se à disposição para eventuais questões, que a deixam visivelmente radiante por responder quando efectivamente surgem. Perto do final, antes de pedir à audiência para se sentar nuns bancos para uma última explicação, fala connosco à parte e fica surpreendida com a nossa proveniência. Imediatamente discutimos influências culturais mútuas como a origem portuguesa da tempura, os peixinhos da horta que ficaram com uma designação que tem a palavra “tempero” como génese. Voltamos à fala depois do final da charla, está curiosa por saber mais coisas, onde estivemos, o que ainda vamos ver. Acabamos a falar com ela ao longo de uma boa meia-hora, na cafetaria, mostrando-lhe fotos dos percursos e de pratos que comemos sem saber o que são. Despedimo-nos dela com indicações e sugestões de coisas para fazer a seguir.
terça-feira, 28 de novembro de 2017
As lojas de conveniência acabam por cumprir um papel de extrema importância.
Pelo menos para nós, meros e comuns não-autóctones. O calor semi-tropical – muitos japoneses andam constantemente com uma pequena toalha para limparem o suor da cara e do pescoço – convida à presença constante de uma garrafa de água, de preferência cheia. Mas a compra da dita garrafa vem sempre acompanhada da antecipação de um desconforto num futuro bastante próximo. Praticamente não existem caixotes de lixo nas ruas japonesas. Uma ausência que contrasta fortemente com a presença abundante de vending machines, em cada rua, cada esquina. E que, no entanto, não tem reflexo no aspecto das ruas, sempre limpas e asseadas: os japoneses são educados desde pequenos a levar o lixo para casa. Para nós, o resultado é um acumular de garrafas e outros detritos no saco da máquina fotográfica, prontamente despejados em seven-elevens e lojas do género que, misericordiosamente, têm recipientes para o efeito perto das máquinas de café.
Ao jantar demos aso, invariavelmente, ao pecado da gula. Num dos poucos dias em que me calhou a escolha do estabelecimento, parei num conjunto de fotos do Trip Advisor que me agradaram. Só depois me apercebi que se tratava do número 1 de sushi da cidade. Fomos rapidamente com receio de que a cozinha pudesse encerrar. À chegada, enquanto esperámos até sermos conduzidos aos nossos lugares ao balcão, escolhemos da ementa o que queríamos. Ao elencar a (extensa?) lista ao empregado/sushiman, recebemos um aviso de que poderia ser demasiado. Dissemos-lhe que não se preocupasse. E tínhamos razão, não sobrou nada.
De frente para o balcão onde as peças são preparadas, com uma estrutura de madeira a fazer lembrar as velhas carteiras das salas de aula, as peças são colocadas e deslizam suavemente até à extremidade curva, onde ficam retidas, como as canetas dos alunos. Numa parede, ao fundo, um olhar mais atento detecta uma barata. Mexe-se de vez em quando. Optamos por não dizer nada mas o casal ao nosso lado também repara e avisa o empregado/sushiman, que inicia uma operação de captura do bicho que o leva a correr desalmadamente por uma divisão adentro que fica fora do nosso alcance. Passando um momento, regressa com uma cara compungida e, atrapalhado, desfaz-se em desculpas. O tipo do casal, que por esta altura já tinha terminado a refeição, diz
Don’t worry, the food was really tasty
e rimo-nos. E tinha razão, a comida estava excelente. Comemos lindamente, um sushi maravilhoso, incluindo porções da deliciosa parte gorda do atum. No final, de estômago bem cheio e consolado, com o restaurante já praticamente vazio à excepção de uma mesa com italianos que trocaram algumas palavras de português brasileiro connosco, pedimos a conta que sabíamos seria elevada, dado o que tínhamos escolhido. E, com a mesma cara ainda um pouco desconfortável com a situação, o sushiman deu à volta ao bar e veio falar connosco, baixinho, e dizer-nos que nos cobraria apenas metade da refeição, sem incluir sequer as cervejas. Dizemos que não aceitamos, insistimos que queremos pagar, que a refeição estava óptima mas a vontade dele sobrepõe-se.
Ao jantar demos aso, invariavelmente, ao pecado da gula. Num dos poucos dias em que me calhou a escolha do estabelecimento, parei num conjunto de fotos do Trip Advisor que me agradaram. Só depois me apercebi que se tratava do número 1 de sushi da cidade. Fomos rapidamente com receio de que a cozinha pudesse encerrar. À chegada, enquanto esperámos até sermos conduzidos aos nossos lugares ao balcão, escolhemos da ementa o que queríamos. Ao elencar a (extensa?) lista ao empregado/sushiman, recebemos um aviso de que poderia ser demasiado. Dissemos-lhe que não se preocupasse. E tínhamos razão, não sobrou nada.
De frente para o balcão onde as peças são preparadas, com uma estrutura de madeira a fazer lembrar as velhas carteiras das salas de aula, as peças são colocadas e deslizam suavemente até à extremidade curva, onde ficam retidas, como as canetas dos alunos. Numa parede, ao fundo, um olhar mais atento detecta uma barata. Mexe-se de vez em quando. Optamos por não dizer nada mas o casal ao nosso lado também repara e avisa o empregado/sushiman, que inicia uma operação de captura do bicho que o leva a correr desalmadamente por uma divisão adentro que fica fora do nosso alcance. Passando um momento, regressa com uma cara compungida e, atrapalhado, desfaz-se em desculpas. O tipo do casal, que por esta altura já tinha terminado a refeição, diz
Don’t worry, the food was really tasty
e rimo-nos. E tinha razão, a comida estava excelente. Comemos lindamente, um sushi maravilhoso, incluindo porções da deliciosa parte gorda do atum. No final, de estômago bem cheio e consolado, com o restaurante já praticamente vazio à excepção de uma mesa com italianos que trocaram algumas palavras de português brasileiro connosco, pedimos a conta que sabíamos seria elevada, dado o que tínhamos escolhido. E, com a mesma cara ainda um pouco desconfortável com a situação, o sushiman deu à volta ao bar e veio falar connosco, baixinho, e dizer-nos que nos cobraria apenas metade da refeição, sem incluir sequer as cervejas. Dizemos que não aceitamos, insistimos que queremos pagar, que a refeição estava óptima mas a vontade dele sobrepõe-se.
segunda-feira, 27 de novembro de 2017
Há duas classes de pessoas no metro:
as que olham avidamente para o ecrã do smartphone, muitas vezes com auscultadores nos ouvidos, e as que dormem, contorcidas a tentar encostar-se ao apoio da cabeça que não existe. Uma coisa é certa: há um silêncio quase sepulcral, só entrecortado aqui e ali pelo anúncio das estações vindouras, sempre com uma voz infantilizada (mais até do que propriamente jovem), que roça o ridículo.
Shinjuku
pronunciado como “txiiinjuku”, com um “i” longo e repetido maquinalmente após uma curta pausa
Shinjuku Shinjuku Shinjuku
Como se fosse um alerta redobrado, triplicado, etc., para os mais distraídos. Num dos dias levo uma T-shirt vestida que comprei em Camden Town há mais de uma década. Tem o símbolo do metro londrino e, numa brincadeira que certos considerarão de mau gosto, lê-se “Fuck the gap”, num óbvio trocadilho. Sentado num dos bancos compridos com as costas para as paredes laterais da carruagem, vejo duas adolescentes com traje de escola – saia de flanela e blusa branca – entrar e sentar-se no banco em frente àquele onde estou. Apercebo-me que estão a olhar para a minha indumentária, levam a mão à boca a conter um risinho agudo que parece querer escapar. Uma pega no telemóvel, olha para a T-shirt e para o teclado à vez, aparentemente a digitar aquilo que vê escrito. Depois disso, de obter uma confirmação ou maior precisão da tradução, o risinho intensifica-se.
Nas lojas, supermercados, os funcionários das caixas falam connosco enquanto passam os artigos pela máquina registadora e os colocam em sacos. Em japonês, quase me esquecia de adicionar. Duvido que não estejam cientes de que não percebemos patavina. Mas ainda assim vão dizendo uma lenga-lenga suave e delicada, quase monocórdica, que acompanha a tarefa e, no fim,
Arigato gozaimasu
As duas mãos, sempre as duas mãos a dar e receber coisas, e uma pequena vénia ao qual tentamos responder. Fico um pouco dividido em tentar retribuir estes comportamentos de cortesia, tenho algum receio de não reproduzir os gestos de uma forma correcta e apropriada, e que, por isso, possa ser interpretado de forma errada.
Um dia, numa loja de conveniência, porque a despesa ultrapassou um determinado limiar, sou presenteado com uma raspadinha que daria acesso a um qualquer prémio. Coloco a mão dentro de uma caixa de cartão e tiro um papel ao calhas. Raspo a superfície prateada e mostro-lhe o resultado pouco afortunado. E o que então se segue é extremamente curioso: a senhora solta uma profunda exclamação de pesar, acompanhada de uma expressão facial de quase consternação, como se tivesse acabado de assistir a uma injustiça terrível. Os mais cépticos poderão argumentar que se trata de uma reacção teatralizada, farisaica, com o intuito de gerar qualquer tipo de empatia com o cliente. Aceito, é uma observação totalmente válida. Mas devo dizer que pareceu bastante genuína e ainda para mais numa situação em que a criação da empatia com o cliente pouco proveito traria àquela senhora (nunca mais pus os canudos na mesma loja).
Shinjuku
pronunciado como “txiiinjuku”, com um “i” longo e repetido maquinalmente após uma curta pausa
Shinjuku Shinjuku Shinjuku
Como se fosse um alerta redobrado, triplicado, etc., para os mais distraídos. Num dos dias levo uma T-shirt vestida que comprei em Camden Town há mais de uma década. Tem o símbolo do metro londrino e, numa brincadeira que certos considerarão de mau gosto, lê-se “Fuck the gap”, num óbvio trocadilho. Sentado num dos bancos compridos com as costas para as paredes laterais da carruagem, vejo duas adolescentes com traje de escola – saia de flanela e blusa branca – entrar e sentar-se no banco em frente àquele onde estou. Apercebo-me que estão a olhar para a minha indumentária, levam a mão à boca a conter um risinho agudo que parece querer escapar. Uma pega no telemóvel, olha para a T-shirt e para o teclado à vez, aparentemente a digitar aquilo que vê escrito. Depois disso, de obter uma confirmação ou maior precisão da tradução, o risinho intensifica-se.
Nas lojas, supermercados, os funcionários das caixas falam connosco enquanto passam os artigos pela máquina registadora e os colocam em sacos. Em japonês, quase me esquecia de adicionar. Duvido que não estejam cientes de que não percebemos patavina. Mas ainda assim vão dizendo uma lenga-lenga suave e delicada, quase monocórdica, que acompanha a tarefa e, no fim,
Arigato gozaimasu
As duas mãos, sempre as duas mãos a dar e receber coisas, e uma pequena vénia ao qual tentamos responder. Fico um pouco dividido em tentar retribuir estes comportamentos de cortesia, tenho algum receio de não reproduzir os gestos de uma forma correcta e apropriada, e que, por isso, possa ser interpretado de forma errada.
Um dia, numa loja de conveniência, porque a despesa ultrapassou um determinado limiar, sou presenteado com uma raspadinha que daria acesso a um qualquer prémio. Coloco a mão dentro de uma caixa de cartão e tiro um papel ao calhas. Raspo a superfície prateada e mostro-lhe o resultado pouco afortunado. E o que então se segue é extremamente curioso: a senhora solta uma profunda exclamação de pesar, acompanhada de uma expressão facial de quase consternação, como se tivesse acabado de assistir a uma injustiça terrível. Os mais cépticos poderão argumentar que se trata de uma reacção teatralizada, farisaica, com o intuito de gerar qualquer tipo de empatia com o cliente. Aceito, é uma observação totalmente válida. Mas devo dizer que pareceu bastante genuína e ainda para mais numa situação em que a criação da empatia com o cliente pouco proveito traria àquela senhora (nunca mais pus os canudos na mesma loja).
domingo, 26 de novembro de 2017
A sensação começa assim que se chega.
Regresso aos corredores do aeroporto de Narita – limpo, incluindo, pasme-se, as casas-de-banho impecáveis – e desemboco no controlo fronteiriço. Há uma meia-dúzia de funcionários, de pé ao lado de um computador com uma maquineta, que processam as declarações alfandegárias. A linha rapidamente avança e calha-me um senhor de alguma idade, com um sorriso estampado, que tece um comentário entusiasmado quando vê a minha origem. É simpático e agradável enquanto percorremos os procedimentos, findos os quais me indica que avance com a mão direita estendida, diz-me
Welcome to Japan
enquanto dobra ligeiramente a cabeça numa vénia. Depois de atravessar a cabine do agente da polícia que me carimba o passaporte, dirijo-me ao balcão dos comboios de ferro japoneses para levantar o meu passe de 15 dias. Uma vez mais, sou recebido com um sorriso e bastante disponibilidade por, neste caso, uma senhora. Para além do passe de 15 dias, dá-me três bilhetes, número de comboios diferentes que tenho de apanhar até Hiroshima, com o meu lugar reservado.
O primeiro comboio é o expresso do aeroporto de Narita para a cidade, vai relativamente cheio e em pouco tempo nos deixa nas principais estações de Tokyo. Não me recordo em qual, mudo de plataforma para a do primeiro de vários Shinkansen que hei de apanhar durante estes dias. O comboio bala percorre a vasta plataforma lentamente. No chão, estão indicadas as portas das várias carruagens onde os passageiros já formam uma pequena fila e o alinhamento entre as indicações e onde a porta efectivamente fica é milimétrica. Entro, descubro o meu lugar, coloco a minha mala na estrutura por cima dos bancos e sento-me no lugar que me foi atribuído. Espaçoso, muito espaço para as pernas e confortável.
O interior deste comboio é aprazivelmente silencioso. As pessoas falam suavemente, quase como se sussurrassem, não há mais ruídos senão o anúncio das estações quando delas nos aproximamos. E mesmo a senhora que atravessa a carruagem a vender bebidas e snacks, parece conseguir fazê-lo com uma ligeireza e subtileza incaracterísticas. Devo ter adormecido a certa altura, embalado pelo movimento e pela ausência de ruído e, dado o conforto, sem desta vez ter massacrado mais as costas.
O pior foi a seguir, quando acordei e tentei ligar ao wifi do comboio. Ligam-me e atendo o telefone, falo entusiasticamente apesar do cansaço. E só então me apercebo que não deveria estar a fazê-lo. Um sinal indica que, não só se deve manter os telefones em silêncio, mas também as chamadas devem ser somente feitas nos extremos das carruagens, depois de passar as portas de vidro que dão acesso ao corredor pequeno pelo qual se sai para o apeadeiro. Despacho o amigo com quem falo, de repente sinto-me mal por estar a falar ao telefone dentro de uma carruagem de comboio. Cujo silêncio me aparece acentuar-se ainda mais, depois do meu erro barulhento.
Welcome to Japan
enquanto dobra ligeiramente a cabeça numa vénia. Depois de atravessar a cabine do agente da polícia que me carimba o passaporte, dirijo-me ao balcão dos comboios de ferro japoneses para levantar o meu passe de 15 dias. Uma vez mais, sou recebido com um sorriso e bastante disponibilidade por, neste caso, uma senhora. Para além do passe de 15 dias, dá-me três bilhetes, número de comboios diferentes que tenho de apanhar até Hiroshima, com o meu lugar reservado.
O primeiro comboio é o expresso do aeroporto de Narita para a cidade, vai relativamente cheio e em pouco tempo nos deixa nas principais estações de Tokyo. Não me recordo em qual, mudo de plataforma para a do primeiro de vários Shinkansen que hei de apanhar durante estes dias. O comboio bala percorre a vasta plataforma lentamente. No chão, estão indicadas as portas das várias carruagens onde os passageiros já formam uma pequena fila e o alinhamento entre as indicações e onde a porta efectivamente fica é milimétrica. Entro, descubro o meu lugar, coloco a minha mala na estrutura por cima dos bancos e sento-me no lugar que me foi atribuído. Espaçoso, muito espaço para as pernas e confortável.
O interior deste comboio é aprazivelmente silencioso. As pessoas falam suavemente, quase como se sussurrassem, não há mais ruídos senão o anúncio das estações quando delas nos aproximamos. E mesmo a senhora que atravessa a carruagem a vender bebidas e snacks, parece conseguir fazê-lo com uma ligeireza e subtileza incaracterísticas. Devo ter adormecido a certa altura, embalado pelo movimento e pela ausência de ruído e, dado o conforto, sem desta vez ter massacrado mais as costas.
O pior foi a seguir, quando acordei e tentei ligar ao wifi do comboio. Ligam-me e atendo o telefone, falo entusiasticamente apesar do cansaço. E só então me apercebo que não deveria estar a fazê-lo. Um sinal indica que, não só se deve manter os telefones em silêncio, mas também as chamadas devem ser somente feitas nos extremos das carruagens, depois de passar as portas de vidro que dão acesso ao corredor pequeno pelo qual se sai para o apeadeiro. Despacho o amigo com quem falo, de repente sinto-me mal por estar a falar ao telefone dentro de uma carruagem de comboio. Cujo silêncio me aparece acentuar-se ainda mais, depois do meu erro barulhento.
sábado, 25 de novembro de 2017
Tudo somado, levo um dia inteiro de viagem desde que saí da Portela até chegar a Narita.
Mesmo assim não estou muito cansado. O voo mais longo apanhou grande parte da noite e, por isso, consegui dormir umas boas seis a sete horas que, embora me deixem a cabeça mais leve, pesam-me no pescoço e nas costas, tensos do desconforto do assento do avião.
E, enquanto percorro os corredores do aeroporto em direcção à saída, vem-me à cabeça a primeira vez que ouvi o Christian falar sobre o Japão e dou-me conta de que foi há quase vinte (!!) anos atrás que, sentado no canto da mesa rectangular, de frente para a porta da sala de aula. Era frequente ouvi-lo falar sobre as suas viagens, tinha passado grande parte do início da idade adulta a viajar pelo mundo, munido de uma máquina de escrever que usava para a profissão de jornalista. As minhas preferidas eram sobre o Brasil, de quando fez a cobertura da inauguração de Brasília – acompanhou a comitiva da qual o próprio Niemeyer fez parte – e de quando foi mordido por uma cobra num tornozelo e um dos locais de imediato lhe fez um corte na pele, chupou o sangue e queimou a ferida com um cigarro acesso. Esta última aventura era contada com a exibição do tornozelo, perna das calças ligeiramente para cima e meia para baixo.
Mas sobre o Japão acho que aquela foi a primeira vez. A pedido, alguém lhe perguntou, um dos outros alunos. E ele parou um pouco antes de responder, uma pequena pausa antes de
Die Japaner sind wie Ameisen
e nós rimo-nos um pouco. A analogia é engraçada e, mais do que isso, facilmente conseguimos perceber como os nipónicos podem ser comparados a formigas, faz parte de uma ideia pré-concebida de uma sociedade com um elevado nível de organização e onde as pessoas têm um código de conduta bastante vincado.
Donde o que vem a seguir é um spoiler alert que, no fundo, não é um spoiler alert, a não ser para os mais distraídos: é exactamente essa a sensação com que se fica do país do sol nascente. É um lugar-comum que, de uma forma abusiva, pode ser generalizado como diferença entre grande parte das sociedades asiáticas e ocidentais: um equilíbrio diferente o individual e o colectivo, os asiáticos mais abnegados e com maior entrega para o colectivo, os ocidentais com maior propensão para olhar para o umbigo. Claro que não estou imune a um certo condicionamento que me tenha levado a descobrir essencialmente aspectos que confirmem a minha ideia original – um comportamento típico e cada vez mais presente no mundo actual das redes-sociais e do jornalismo sem tempo e dinheiro para investigar. Ainda assim, fazendo esta última ressalva, não me parece de todo descabida a atribuição de uma certa formiguidade aos japoneses.
E, enquanto percorro os corredores do aeroporto em direcção à saída, vem-me à cabeça a primeira vez que ouvi o Christian falar sobre o Japão e dou-me conta de que foi há quase vinte (!!) anos atrás que, sentado no canto da mesa rectangular, de frente para a porta da sala de aula. Era frequente ouvi-lo falar sobre as suas viagens, tinha passado grande parte do início da idade adulta a viajar pelo mundo, munido de uma máquina de escrever que usava para a profissão de jornalista. As minhas preferidas eram sobre o Brasil, de quando fez a cobertura da inauguração de Brasília – acompanhou a comitiva da qual o próprio Niemeyer fez parte – e de quando foi mordido por uma cobra num tornozelo e um dos locais de imediato lhe fez um corte na pele, chupou o sangue e queimou a ferida com um cigarro acesso. Esta última aventura era contada com a exibição do tornozelo, perna das calças ligeiramente para cima e meia para baixo.
Mas sobre o Japão acho que aquela foi a primeira vez. A pedido, alguém lhe perguntou, um dos outros alunos. E ele parou um pouco antes de responder, uma pequena pausa antes de
Die Japaner sind wie Ameisen
e nós rimo-nos um pouco. A analogia é engraçada e, mais do que isso, facilmente conseguimos perceber como os nipónicos podem ser comparados a formigas, faz parte de uma ideia pré-concebida de uma sociedade com um elevado nível de organização e onde as pessoas têm um código de conduta bastante vincado.
Donde o que vem a seguir é um spoiler alert que, no fundo, não é um spoiler alert, a não ser para os mais distraídos: é exactamente essa a sensação com que se fica do país do sol nascente. É um lugar-comum que, de uma forma abusiva, pode ser generalizado como diferença entre grande parte das sociedades asiáticas e ocidentais: um equilíbrio diferente o individual e o colectivo, os asiáticos mais abnegados e com maior entrega para o colectivo, os ocidentais com maior propensão para olhar para o umbigo. Claro que não estou imune a um certo condicionamento que me tenha levado a descobrir essencialmente aspectos que confirmem a minha ideia original – um comportamento típico e cada vez mais presente no mundo actual das redes-sociais e do jornalismo sem tempo e dinheiro para investigar. Ainda assim, fazendo esta última ressalva, não me parece de todo descabida a atribuição de uma certa formiguidade aos japoneses.
sexta-feira, 24 de novembro de 2017
quarta-feira, 22 de novembro de 2017
terça-feira, 21 de novembro de 2017
O sermão que Father John Misty pregou no Coliseu
(Publicado originalmente aqui)
O Coliseu de Lisboa está sem as cadeiras na plateia, magotes de pessoas de pé e algumas sentadas, ao fundo, na geral, assistem a Weyes Blood, uma californiana nascida no final dos anos oitenta. Cabelo liso, escuro, longo, vou aqui usar uma comparação que não é da minha autoria e cuja utilização solicitei: parece uma Mafalda Veiga americana com os seus pássaros do sul. Como sempre nestas coisas, o público pode até mais do que tolerar e ter mesmo uma genuína empatia por quem tem a ingrata tarefa de fazer tempo até surgir o cabeça de cartaz, mas é por demais redundante dizer que o que quer ver é mesmo o cabeça de cartaz. E, embora bata palmas e exulte, goste daquilo que ouve, quer que o primeiro concerto acabe e dê lugar ao segundo.
Para os maiores fãs, esta pode ser uma longa espera. Quase tão longa como o percurso que levou Josh Tillman até ao alter ego (?) Father John Misty. Um percurso que incluiu anos dedicados à música, noutras bandas – e, por vezes, sentado à bateria, – assim como em próprio nome, sob a égide do qual, aliás, gravou oito álbuns, repletos de uma música folk maioritariamente sombria, e que passaram relativamente despercebidos. E, escusado será de dizer, sem nunca atingir minimamente o patamar alcançado enquanto Father John Misty.
Num longo artigo da New Yorker do verão deste ano, é descrito, logo no início, aquele percurso, que contou com bastantes atribulações pessoais, incluindo depressões e drogas. E drogas para lidar com depressões – segundo o próprio, o LSD tem nele um efeito terapêutico que é normalmente associado à cannabis. Mas foi uma experiência com cogumelos alucinogénios que, em 2010, o levou a deixar a cidade onde então vivia, Seattle, em direcção a Los Angeles, com um plano em mente: escrever um romance.
Nessa senda, deu conta que, naquilo que agora escrevia com um intuito diferente, estava uma voz diferente, uma voz que era mais sua do que aquilo que até então tinha escrito na sua música. Voltou a pegar na guitarra e a escrever novamente músicas e também nesta circunstância havia algo de diferente e novo. E assim nasceu um novo eu, mais verdadeiro do que anterior, cujo nascimento Josh Tillman baptizou de Father John Misty. Tillman descreve o desconforto com que se sente na pele de cantor e compositor e das personagens que assume em palco e tem uma frase que gostei particularmente que, traduzida para português, é qualquer coisa como “quis ser autenticamente falso e não falsamente autêntico.”
Um primeiro álbum em 2012 chamado “Fear Fun”, um segundo em 2015 chamado “I love you, honeybear” e, esta primavera, “Pure Comedy”, tema aliás com que dá início ao set, depois das luzes da sala se apagarem e imagens de bonecos, com expressões sinistras e macabras, aparecerem projectadas no fundo do palco.
Caminha lentamente, de um lado ao outro do palco. Faz gestos incisivos com as mãos, algo teatrais. Aliás, toda a postura parece uma representação, como se Josh Tillman se tivesse mascarado e assumido a personagem de Father John Misty. Faz uma espécie de dança, com um ligeiro meneio, o braço esticado com a mão a tecer uma ligeira curvatura e que desce ao longo do corpo, num misto de sevilhana com dança erótica. O público reage efusivamente, partilha e comunga como se se tratasse de uma experiência religiosa. E então percebo: o público já não é público, deixou de o ser. O público é o rebanho que ouve a palavra do seu pastor, um conjunto de acólitos que bebe a palavra sagrada do pregador. Que procura a salvação.
O concerto desenrola-se com uma precisão milimétrica, as músicas seguem-se umas atrás das outras, com pouco espaço para qualquer desvio ao line up, para qualquer pequena manifestação de espontaneidade. Mesmo quando, impelido por um momento de maior intensidade musical, Father John Misty se coloca de joelhos a cantar e, mais ainda, se deixa tombar para trás até as costas tocarem o palco, parece um movimento que segue uma lógica e um fio-condutor inescapáveis, como se não pudesse existir qualquer outra manifestação noutro momento que não aquela.
Estamos no miolo do concerto, no tema “True Affection”, introduzido por um som digital acompanhado de imagens de um coração na tela gigante, quando surge a primeira brecha: ouve-se um “thank you very much” dito na passada, que rapidamente é deixado para trás pelo tema seguinte. E, um pouco mais à frente, quando no início de “Bored in the USA” a luz do holofote que lhe é apontado o incomoda, dá uns passos ao lado para evitar ser encadeado. E o rebanho reage. E, ainda nessa música, arranca e puxa pela voz e o rebanho volta a reagir efusivamente. “Let’s hear it for the band”, pede – e é devidamente correspondido – logo no tema seguinte, “I’m writing a novel”. E tudo parece ganhar uma nova intensidade, uma nova força quando canta “Hollywood forever cemitery” e “I love you, honeybear” para terminar o set, com beijinhos soprados para o rebanho.
Finalmente no encore se sente que a encenação caiu por terra e que é agora Josh quem está à nossa frente. “Thank you very much, this is incredible”. Lá à frente, junto às grades, alguém tem um cartaz que ele lê “Please give me the setlist or let me touch your beard”. Josh opta pela segunda opção, desce do palco e dá a barba a tocar, ao mesmo tempo que explica que tem a pele um pouco seca. Há mais alguém que pede um abraço que também é correspondido. Regressa ao palco e dá-nos um elogio “you are the best crowd in the world”. E é precisamente neste momento que deixamos definitivamente de ser um rebanho e nos transformamos novamente num público.
“Real love baby”, “So I’m growing old on magic mountain”, “Holy shit” e o conjunto de encores termina com um intenso “The ideal husband”, num sermão que praticamente totaliza duas horas. Não somos só nós que voltámos a ser público: parece ser Josh Tillman quem está agora em cima do palco e não o mesmo Josh Tillman que, por momentos, foi Father John Misty. Ou um terceiro John Tillman que, enquanto Father John Misty fez de Josh Tillman.
O Coliseu de Lisboa está sem as cadeiras na plateia, magotes de pessoas de pé e algumas sentadas, ao fundo, na geral, assistem a Weyes Blood, uma californiana nascida no final dos anos oitenta. Cabelo liso, escuro, longo, vou aqui usar uma comparação que não é da minha autoria e cuja utilização solicitei: parece uma Mafalda Veiga americana com os seus pássaros do sul. Como sempre nestas coisas, o público pode até mais do que tolerar e ter mesmo uma genuína empatia por quem tem a ingrata tarefa de fazer tempo até surgir o cabeça de cartaz, mas é por demais redundante dizer que o que quer ver é mesmo o cabeça de cartaz. E, embora bata palmas e exulte, goste daquilo que ouve, quer que o primeiro concerto acabe e dê lugar ao segundo.
Para os maiores fãs, esta pode ser uma longa espera. Quase tão longa como o percurso que levou Josh Tillman até ao alter ego (?) Father John Misty. Um percurso que incluiu anos dedicados à música, noutras bandas – e, por vezes, sentado à bateria, – assim como em próprio nome, sob a égide do qual, aliás, gravou oito álbuns, repletos de uma música folk maioritariamente sombria, e que passaram relativamente despercebidos. E, escusado será de dizer, sem nunca atingir minimamente o patamar alcançado enquanto Father John Misty.
Num longo artigo da New Yorker do verão deste ano, é descrito, logo no início, aquele percurso, que contou com bastantes atribulações pessoais, incluindo depressões e drogas. E drogas para lidar com depressões – segundo o próprio, o LSD tem nele um efeito terapêutico que é normalmente associado à cannabis. Mas foi uma experiência com cogumelos alucinogénios que, em 2010, o levou a deixar a cidade onde então vivia, Seattle, em direcção a Los Angeles, com um plano em mente: escrever um romance.
Nessa senda, deu conta que, naquilo que agora escrevia com um intuito diferente, estava uma voz diferente, uma voz que era mais sua do que aquilo que até então tinha escrito na sua música. Voltou a pegar na guitarra e a escrever novamente músicas e também nesta circunstância havia algo de diferente e novo. E assim nasceu um novo eu, mais verdadeiro do que anterior, cujo nascimento Josh Tillman baptizou de Father John Misty. Tillman descreve o desconforto com que se sente na pele de cantor e compositor e das personagens que assume em palco e tem uma frase que gostei particularmente que, traduzida para português, é qualquer coisa como “quis ser autenticamente falso e não falsamente autêntico.”
Um primeiro álbum em 2012 chamado “Fear Fun”, um segundo em 2015 chamado “I love you, honeybear” e, esta primavera, “Pure Comedy”, tema aliás com que dá início ao set, depois das luzes da sala se apagarem e imagens de bonecos, com expressões sinistras e macabras, aparecerem projectadas no fundo do palco.
Caminha lentamente, de um lado ao outro do palco. Faz gestos incisivos com as mãos, algo teatrais. Aliás, toda a postura parece uma representação, como se Josh Tillman se tivesse mascarado e assumido a personagem de Father John Misty. Faz uma espécie de dança, com um ligeiro meneio, o braço esticado com a mão a tecer uma ligeira curvatura e que desce ao longo do corpo, num misto de sevilhana com dança erótica. O público reage efusivamente, partilha e comunga como se se tratasse de uma experiência religiosa. E então percebo: o público já não é público, deixou de o ser. O público é o rebanho que ouve a palavra do seu pastor, um conjunto de acólitos que bebe a palavra sagrada do pregador. Que procura a salvação.
O concerto desenrola-se com uma precisão milimétrica, as músicas seguem-se umas atrás das outras, com pouco espaço para qualquer desvio ao line up, para qualquer pequena manifestação de espontaneidade. Mesmo quando, impelido por um momento de maior intensidade musical, Father John Misty se coloca de joelhos a cantar e, mais ainda, se deixa tombar para trás até as costas tocarem o palco, parece um movimento que segue uma lógica e um fio-condutor inescapáveis, como se não pudesse existir qualquer outra manifestação noutro momento que não aquela.
Estamos no miolo do concerto, no tema “True Affection”, introduzido por um som digital acompanhado de imagens de um coração na tela gigante, quando surge a primeira brecha: ouve-se um “thank you very much” dito na passada, que rapidamente é deixado para trás pelo tema seguinte. E, um pouco mais à frente, quando no início de “Bored in the USA” a luz do holofote que lhe é apontado o incomoda, dá uns passos ao lado para evitar ser encadeado. E o rebanho reage. E, ainda nessa música, arranca e puxa pela voz e o rebanho volta a reagir efusivamente. “Let’s hear it for the band”, pede – e é devidamente correspondido – logo no tema seguinte, “I’m writing a novel”. E tudo parece ganhar uma nova intensidade, uma nova força quando canta “Hollywood forever cemitery” e “I love you, honeybear” para terminar o set, com beijinhos soprados para o rebanho.
Finalmente no encore se sente que a encenação caiu por terra e que é agora Josh quem está à nossa frente. “Thank you very much, this is incredible”. Lá à frente, junto às grades, alguém tem um cartaz que ele lê “Please give me the setlist or let me touch your beard”. Josh opta pela segunda opção, desce do palco e dá a barba a tocar, ao mesmo tempo que explica que tem a pele um pouco seca. Há mais alguém que pede um abraço que também é correspondido. Regressa ao palco e dá-nos um elogio “you are the best crowd in the world”. E é precisamente neste momento que deixamos definitivamente de ser um rebanho e nos transformamos novamente num público.
“Real love baby”, “So I’m growing old on magic mountain”, “Holy shit” e o conjunto de encores termina com um intenso “The ideal husband”, num sermão que praticamente totaliza duas horas. Não somos só nós que voltámos a ser público: parece ser Josh Tillman quem está agora em cima do palco e não o mesmo Josh Tillman que, por momentos, foi Father John Misty. Ou um terceiro John Tillman que, enquanto Father John Misty fez de Josh Tillman.
segunda-feira, 20 de novembro de 2017
domingo, 19 de novembro de 2017
Num poster que tem uma foto do Einstein com a língua de fora
«He who joyfully marches to music in rank and file has already earned my contempt. He has been given a large brain by mistake, since for him the spinal cord would suffice. This disgrace to civilisation should be done away with at once. Heroism at command, senseless brutality, deplorable love-of-country stance, how violently I hate all this, how despicable and ignoble war is; I would rather be torn to shreds than be a part of so base an action! It is my conviction that killing under the cloak of war is nothing but an act of murder.»
sábado, 18 de novembro de 2017
Para e de
«There is more than one kind of freedom, said Aunt Lydia. Freedom to and freedom from. In the days of anarchy, it was freedom to. Now you are being given freedom from. Don't underrate it.»
The Handmaid's Tale, Margaret Atwood
The Handmaid's Tale, Margaret Atwood
quinta-feira, 16 de novembro de 2017
Sororize
Fraternize means to behave like a brother. Luke told me that. He said there was no corresponding word that meant to behave like a sister. Sororize, it would have to be, he said. From the Latin. He liked knowing about such details. The derivation of words, curious usages. I use to tease him about being pedantic.
The Handmaid's Tale, Margaret Atwood
The Handmaid's Tale, Margaret Atwood
quarta-feira, 15 de novembro de 2017
terça-feira, 14 de novembro de 2017
... und manchmal die Nebenstraße nehmen
Não é por acaso que blog e blague são palavras tão parecidas.
segunda-feira, 13 de novembro de 2017
sexta-feira, 10 de novembro de 2017
quinta-feira, 9 de novembro de 2017
quarta-feira, 8 de novembro de 2017
Sem emenda
No site do restaurante japonês, entre outras coisas, lia-se "emenda".
terça-feira, 7 de novembro de 2017
O que mais me vem à memória é o teu sorriso.
Grande, vasto. Largo. Orelha a orelha. Os olhos pequeninos, franzidos com rugas, marotos. Vejo-te com a boina na cabeça, a andar no quintal, a tirá-la da cabeça quando nos vês e vens falar.
Ça va?
As bochechas subidas a acompanhar o movimento da boca. Assim era quando te via, normalmente passado algum tempo, e te cumprimentava. Quando falávamos sobre qualquer coisa. Quando nos metíamos contigo. Como quando te picavam para tocar o realejo e tu não te inibias nada e tiravas o objecto do bolso das calças
Bah voilà
levavas à boca com as duas mãos e sopravas. Um bem-disposto.
Relembro-me daquele verão, vejo-te a entrar em casa pelo corredor, cacete debaixo do braço, boina na cabeça. Viravas à direita para a cozinha, onde a mesa redonda ficava à justa, era só esticar os braços para tirar as coisas da gaveta, pegar em algo da bancada, para onde a gata cinzenta, bola de pêlo
Bibiche
saltava e lambia o queijo de triângulo suavemente, quando não eram os pedacinhos pequeninos de bife cru cortados com uma faca
Come melhor do que nós, o raio da gata
e ficava ali com o focinho na tijela pequena. Acabávamos o almoço e começavas o teu ritual seguinte: sentavas-te no canto esquerdo do sofá, bem encostado e rapidamente adormecias. Ouvi-te ressonar vezes sem conta, naqueles poucos minutos de sono pós-prandiais. E, de repente, acordavas quase sobressaltado, saias do sofá com um pulo, como se tivesses molas nos pés
Ça y est
e regressavas à tua vida, depois de voltar a pôr a boina cabeça. Andavas pelo quintal a tratar das coisas enquanto me lembro de ter visto o anúncio da Sega
Sega, c’est plus fort que toi
tantas vezes na televisão. Por vezes entravas rapidamente pela sala adentro quando ela não estava por perto para te censurar e, a olhar por cima do ombro, abrias a porta de baixo do armário na sala, retiravas uma garrafa lá de dentro, e despejavas um pouco num copo pequeno. Olhavas para mim de seguida, cara de maroto, dedo indicador esticado à frente da boca e do nariz, e fazias
Shiu
antes de beber rapidamente o conteúdo do copo. Não querias que ela soubesse das tuas incursões pelo armário das bebidas e eu cumpri o teu pedido, como se fosse uma espécie de segredo de Estado, uma omertà selada entre nós. Pelo contrário, os cigarros
Gauloises, aqueles maços azuis clarinhos com o capacete alado, fazia-me lembrar os livros do Astérix
tinhas permissão (ou desplante) para fumar, embora levasses sempre sermão quando eras visto com um na mão. E, como sempre, rias-te, o sorriso aberto e largo, os olhos pequeninos escondidos atrás das bochechas. Da mesma forma como quando te metias connosco em miúdos. Estás em cima de um escadote ou de um banco, na cozinha, virado para a janela do fundo, a que dava para o caramanchão antes do portão da garagem, a arranjar qualquer coisa lá em cima, quando nós entrámos. Pela cozinha, como sempre se entrava naquela casa. Cumprimentamos-te e tu para te meteres connosco, mostras-nos os músculos do braço e, com gestos exagerados e teatrais, sopras com força para o teu polegar ao mesmo tempo que contrais o músculo do teu antebraço, que faz um alto redondo perto do cotovelo, como se fosse um balão que tivesses acabado de encher com o ar que entrou pelo polegar, subiu o braço e se alojou naquele sítio. Apertei-te o alto no braço e quis mostrar-te que já era suficientemente crescido para não acreditar nesse número.
Bah dis donc!
E tu, como sempre, riste-te. Olhos franzidos, o sorriso.
Há muitos anos, numa daquelas noites de verão da casa que costumava ficar cheia naquela altura do ano, sentámo-nos na sala no piso de cima. Naquele espaço entre os quartos todos onde praticamente dividíamos todo o tempo passado naquela casa, juntamente com a cozinha ampla. Não me lembro como começou mas acabámos a jogar à sardinha, sentados nas cadeiras de lona. Cadeiras que tinham braços e, quando o jogo assim exigia, e tínhamos de retirar rapidamente os nossos próprios braços para não levarmos uma palmada, os meus cotovelos bateram violentamente nos braços de plástico da cadeira. Riste-te da primeira vez que me viste esfregar o cotovelo de dor. Das vezes subsequentes riste-te ainda mais. A certa altura, lembro-me de te ver encolhido a um canto, agarrado à barriga. Rimo-nos todos, para dizer verdade, a certa altura eu ria-me de te ver a bandeiras despregadas.
E é assim que quero continuar a lembrar-me de ti.
Ça va?
As bochechas subidas a acompanhar o movimento da boca. Assim era quando te via, normalmente passado algum tempo, e te cumprimentava. Quando falávamos sobre qualquer coisa. Quando nos metíamos contigo. Como quando te picavam para tocar o realejo e tu não te inibias nada e tiravas o objecto do bolso das calças
Bah voilà
levavas à boca com as duas mãos e sopravas. Um bem-disposto.
Relembro-me daquele verão, vejo-te a entrar em casa pelo corredor, cacete debaixo do braço, boina na cabeça. Viravas à direita para a cozinha, onde a mesa redonda ficava à justa, era só esticar os braços para tirar as coisas da gaveta, pegar em algo da bancada, para onde a gata cinzenta, bola de pêlo
Bibiche
saltava e lambia o queijo de triângulo suavemente, quando não eram os pedacinhos pequeninos de bife cru cortados com uma faca
Come melhor do que nós, o raio da gata
e ficava ali com o focinho na tijela pequena. Acabávamos o almoço e começavas o teu ritual seguinte: sentavas-te no canto esquerdo do sofá, bem encostado e rapidamente adormecias. Ouvi-te ressonar vezes sem conta, naqueles poucos minutos de sono pós-prandiais. E, de repente, acordavas quase sobressaltado, saias do sofá com um pulo, como se tivesses molas nos pés
Ça y est
e regressavas à tua vida, depois de voltar a pôr a boina cabeça. Andavas pelo quintal a tratar das coisas enquanto me lembro de ter visto o anúncio da Sega
Sega, c’est plus fort que toi
tantas vezes na televisão. Por vezes entravas rapidamente pela sala adentro quando ela não estava por perto para te censurar e, a olhar por cima do ombro, abrias a porta de baixo do armário na sala, retiravas uma garrafa lá de dentro, e despejavas um pouco num copo pequeno. Olhavas para mim de seguida, cara de maroto, dedo indicador esticado à frente da boca e do nariz, e fazias
Shiu
antes de beber rapidamente o conteúdo do copo. Não querias que ela soubesse das tuas incursões pelo armário das bebidas e eu cumpri o teu pedido, como se fosse uma espécie de segredo de Estado, uma omertà selada entre nós. Pelo contrário, os cigarros
Gauloises, aqueles maços azuis clarinhos com o capacete alado, fazia-me lembrar os livros do Astérix
tinhas permissão (ou desplante) para fumar, embora levasses sempre sermão quando eras visto com um na mão. E, como sempre, rias-te, o sorriso aberto e largo, os olhos pequeninos escondidos atrás das bochechas. Da mesma forma como quando te metias connosco em miúdos. Estás em cima de um escadote ou de um banco, na cozinha, virado para a janela do fundo, a que dava para o caramanchão antes do portão da garagem, a arranjar qualquer coisa lá em cima, quando nós entrámos. Pela cozinha, como sempre se entrava naquela casa. Cumprimentamos-te e tu para te meteres connosco, mostras-nos os músculos do braço e, com gestos exagerados e teatrais, sopras com força para o teu polegar ao mesmo tempo que contrais o músculo do teu antebraço, que faz um alto redondo perto do cotovelo, como se fosse um balão que tivesses acabado de encher com o ar que entrou pelo polegar, subiu o braço e se alojou naquele sítio. Apertei-te o alto no braço e quis mostrar-te que já era suficientemente crescido para não acreditar nesse número.
Bah dis donc!
E tu, como sempre, riste-te. Olhos franzidos, o sorriso.
Há muitos anos, numa daquelas noites de verão da casa que costumava ficar cheia naquela altura do ano, sentámo-nos na sala no piso de cima. Naquele espaço entre os quartos todos onde praticamente dividíamos todo o tempo passado naquela casa, juntamente com a cozinha ampla. Não me lembro como começou mas acabámos a jogar à sardinha, sentados nas cadeiras de lona. Cadeiras que tinham braços e, quando o jogo assim exigia, e tínhamos de retirar rapidamente os nossos próprios braços para não levarmos uma palmada, os meus cotovelos bateram violentamente nos braços de plástico da cadeira. Riste-te da primeira vez que me viste esfregar o cotovelo de dor. Das vezes subsequentes riste-te ainda mais. A certa altura, lembro-me de te ver encolhido a um canto, agarrado à barriga. Rimo-nos todos, para dizer verdade, a certa altura eu ria-me de te ver a bandeiras despregadas.
E é assim que quero continuar a lembrar-me de ti.
segunda-feira, 6 de novembro de 2017
domingo, 5 de novembro de 2017
Trio de Aaron Goldberg foi às Caldas tocar nice jazz
(Publicado originalmente aqui)
O receio de que o dia de chuva possa condicionar o trânsito foi felizmente infundado. Rapidamente passo os túneis do Campo Grande, subo a Avenida Padre Cruz e desço a Calçada de Carriche. Talvez por ser 2 de Novembro: muita gente colou ao feriado do dia anterior dias de férias até ao fim-de-semana seguinte. Daí até aos quilómetros iniciais do asfalto duvidoso e trajecto sinuoso da A8 é um instante e, volvida uma hora, estou a sair da auto-estrada nas Caldas da Rainha. A aplicação do telemóvel vai falando comigo, indicando-me que direcção devo seguir, dando-me as instruções precisas até ter o Centro Cultural e de Congressos, que surge à minha esquerda.
Lá dentro, no impressionante auditório, já está na hora de início de mais um concerto do Caldas Nice Jazz e ainda o roadie coloca garrafas de água em palco. Uma senhora entra na fila à frente da do meu lugar e diz aos amigos que os músicos se atrasaram no “checksound” – uma forma recorrentemente utilizada para designar o “soundcheck” – e que estavam a acabar de jantar. São mais alguns minutos até as luzes se apagarem e o trio entrar em cena.
O primeiro tema é de Chico Buarque, “Trocando por miúdos”. O contrabaixista, Yasushi Nakamura, inicia o seu solo com frases pentatónicas, cheias a rebentar de groove e intenção. Pausadas, comedidas, com a calma de quem sabe esperar e respirar. Um dos vários momentos ao longo da noite em que Nakamura esteve em destaque, teve várias intervenções de grande nível no decurso do concerto.
Agora Goldberg estala os dedos para dar o tempo para o segundo, mais rápido. “Tokyo Dream” que, como nos explicará mais à frente, ocorreu-lhe num sonho numa noite em Tokyo. Foi a única vez que compôs um tema a sonhar e, por essa razão, nem sequer sente que a autoria seja sua. Uma estrutura e um cheiro bluesistico. Leon Parker, na bateria, de óculos escuros e cabelo rapado, emite uns sons agudos e umas exclamações enquanto toca, à la Keith Jarrett, seja quando aumenta a intensidade de um momento em que tem mais espaço para dar asas à sua arte, seja em resposta a algo que os outros dois músicos fazem que lhe agrada.
Goldberg tem uma ligação interessante à nossa língua. Fala-a de forma um pouco titubeante e quebrada, brasileiro gringo, como o define. De vez em quando regressa ao inglês nativo, alegadamente para não excluir os outros dois companheiros de palco – Leon Parker a certa altura parece afastar-se como quem desiste e se vai embora. Apresenta a banda pela primeira vez ao final do segundo tema e explica-nos que este é o último concerto da digressão. Agradece a hospitalidade com que foram recebidos, que chegou a incluir uma ida às termas que lhes deixou um odor sulfuroso. Aprecia o facto de não precisar de nos explicar a letra do tema de Chico Buarque. E, como se não bastasse tudo isto, termina anunciando o tema seguinte, que nos explica ser dedicado ao activista angolano Luaty Beirão, que teve o prazer de conhecer recentemente. O público responde com uma ovação sentida ao tema que leva no título o nome próprio “Luaty”.
Mais à frente vamos ouvir outro tema que remete para o Brasil. A introdução tem a linha de baixo do “Hit the Road Jack”, tónica menor, seguida de sétima, sexta, quinta, e liga com a “Manhã de Carnaval”, banda sonora do filme “Orfeu Negro” da autoria de Jobim. E vamos ouvir também, entre outros, uma versão do “All of me” que é também um habitué do set list dos concertos de Goldberg.
Um momento diferente, quase caricato, fechou o set: Leon Parker levanta-se do banco da bateria, afasta-se enquanto abre os botões da camisa (calma, tinha uma t-shirt por debaixo), e coloca-se à frente de um microfone. E, com recurso à sua voz e a estalidos com os dentes e a língua, duas mãos a bater no peito – uma com o punho fechado, outra com o punho aberto – estilo Tarzan, acompanha os companheiros (passo a redundância). Depois disto, que naturalmente arrancou uma reacção bastante efusiva do público, só mesmo um encore com a já clássica versão do “Isn’t She Lovely” de Stevie Wonder fez os músicos regressar para encerrar a noite.
Há uns bons anos tive o prazer de ver Aaron Goldberg mas não como frontman. Desta vez, tive o privilégio de o ver brilhar nesse papel, apoiado numa excelente secção rítmica. É provável que tenha atingido uma fase da sua carreira em que não precise de se afirmar – há quem diga que o temos de fazer constantemente – mas, caso restassem algumas dúvidas, ficaram cabalmente esclarecidas: Goldberg está claramente numa classe aparte, juntamente com a elite dos pianistas de jazz actuais.
O receio de que o dia de chuva possa condicionar o trânsito foi felizmente infundado. Rapidamente passo os túneis do Campo Grande, subo a Avenida Padre Cruz e desço a Calçada de Carriche. Talvez por ser 2 de Novembro: muita gente colou ao feriado do dia anterior dias de férias até ao fim-de-semana seguinte. Daí até aos quilómetros iniciais do asfalto duvidoso e trajecto sinuoso da A8 é um instante e, volvida uma hora, estou a sair da auto-estrada nas Caldas da Rainha. A aplicação do telemóvel vai falando comigo, indicando-me que direcção devo seguir, dando-me as instruções precisas até ter o Centro Cultural e de Congressos, que surge à minha esquerda.
Lá dentro, no impressionante auditório, já está na hora de início de mais um concerto do Caldas Nice Jazz e ainda o roadie coloca garrafas de água em palco. Uma senhora entra na fila à frente da do meu lugar e diz aos amigos que os músicos se atrasaram no “checksound” – uma forma recorrentemente utilizada para designar o “soundcheck” – e que estavam a acabar de jantar. São mais alguns minutos até as luzes se apagarem e o trio entrar em cena.
O primeiro tema é de Chico Buarque, “Trocando por miúdos”. O contrabaixista, Yasushi Nakamura, inicia o seu solo com frases pentatónicas, cheias a rebentar de groove e intenção. Pausadas, comedidas, com a calma de quem sabe esperar e respirar. Um dos vários momentos ao longo da noite em que Nakamura esteve em destaque, teve várias intervenções de grande nível no decurso do concerto.
Agora Goldberg estala os dedos para dar o tempo para o segundo, mais rápido. “Tokyo Dream” que, como nos explicará mais à frente, ocorreu-lhe num sonho numa noite em Tokyo. Foi a única vez que compôs um tema a sonhar e, por essa razão, nem sequer sente que a autoria seja sua. Uma estrutura e um cheiro bluesistico. Leon Parker, na bateria, de óculos escuros e cabelo rapado, emite uns sons agudos e umas exclamações enquanto toca, à la Keith Jarrett, seja quando aumenta a intensidade de um momento em que tem mais espaço para dar asas à sua arte, seja em resposta a algo que os outros dois músicos fazem que lhe agrada.
Goldberg tem uma ligação interessante à nossa língua. Fala-a de forma um pouco titubeante e quebrada, brasileiro gringo, como o define. De vez em quando regressa ao inglês nativo, alegadamente para não excluir os outros dois companheiros de palco – Leon Parker a certa altura parece afastar-se como quem desiste e se vai embora. Apresenta a banda pela primeira vez ao final do segundo tema e explica-nos que este é o último concerto da digressão. Agradece a hospitalidade com que foram recebidos, que chegou a incluir uma ida às termas que lhes deixou um odor sulfuroso. Aprecia o facto de não precisar de nos explicar a letra do tema de Chico Buarque. E, como se não bastasse tudo isto, termina anunciando o tema seguinte, que nos explica ser dedicado ao activista angolano Luaty Beirão, que teve o prazer de conhecer recentemente. O público responde com uma ovação sentida ao tema que leva no título o nome próprio “Luaty”.
Mais à frente vamos ouvir outro tema que remete para o Brasil. A introdução tem a linha de baixo do “Hit the Road Jack”, tónica menor, seguida de sétima, sexta, quinta, e liga com a “Manhã de Carnaval”, banda sonora do filme “Orfeu Negro” da autoria de Jobim. E vamos ouvir também, entre outros, uma versão do “All of me” que é também um habitué do set list dos concertos de Goldberg.
Um momento diferente, quase caricato, fechou o set: Leon Parker levanta-se do banco da bateria, afasta-se enquanto abre os botões da camisa (calma, tinha uma t-shirt por debaixo), e coloca-se à frente de um microfone. E, com recurso à sua voz e a estalidos com os dentes e a língua, duas mãos a bater no peito – uma com o punho fechado, outra com o punho aberto – estilo Tarzan, acompanha os companheiros (passo a redundância). Depois disto, que naturalmente arrancou uma reacção bastante efusiva do público, só mesmo um encore com a já clássica versão do “Isn’t She Lovely” de Stevie Wonder fez os músicos regressar para encerrar a noite.
Há uns bons anos tive o prazer de ver Aaron Goldberg mas não como frontman. Desta vez, tive o privilégio de o ver brilhar nesse papel, apoiado numa excelente secção rítmica. É provável que tenha atingido uma fase da sua carreira em que não precise de se afirmar – há quem diga que o temos de fazer constantemente – mas, caso restassem algumas dúvidas, ficaram cabalmente esclarecidas: Goldberg está claramente numa classe aparte, juntamente com a elite dos pianistas de jazz actuais.
sábado, 4 de novembro de 2017
sexta-feira, 3 de novembro de 2017
quinta-feira, 2 de novembro de 2017
A música e a alma de Peter Evans inundaram o Maria de Matos
(Publicado originalmente aqui)
Ao entrar as portas do Teatro Maria de Matos, depois de ter conseguido navegar as restrições ao trânsito na avenida de Roma causadas por um desfile de pessoas vestidas a rigor para o Halloween, tentei recordar-me da última vez que ali tinha estado. Um sítio onde fui algumas vezes com os meus avós, assim como aos cinemas King, poucos metros mais abaixo, à esquerda na esquina. E, se é certo que não consegui aceder ao local remoto da minha memória onde essa recordação possa estar (hipnose?), é também certo que não esperaria regressar a este local para ver um concerto. E ainda para mais este tipo de concerto: o septeto do trompetista nova-iorquino Peter Evans, que esteve em Lisboa esta 3a feira dia 31, depois de ter passado pelo Conservatório de Música de Coimbra e pela Casa da Música, no Porto.
Evans é um trompetista que já experimentou com inúmeras formações diferentes, a solo, em duo, em trio, quinteto. Seguindo uma lógica incremental, o quinteto foi alargado para incluir um violinista e um percussionista. Eis os seis que subiram ao palco do Maria de Matos com o frontman para apresentar o mais recente projecto denominado Action/Metempsychosis: Mazz Swift (violino), Ron Stabinsky (piano e sintetizador), Sam Pluta (electrónica), Tom Blancarte (baixo), Levy Lorenzo (percussão e electrónica) e Jim Black (bateria e sampler).
O espectáculo inicia de rompante, de forma inesperada, com a voz da violinista Mazz Swift, um instrumento que não vem listado na comunicação oficial mas que se revela de importância logo na primeira nota. É uma voz forte, penetrante, que canta, ri, geme e, pelo meio, respira, suspira. Ganha um cúmplice na corda solta do violino que se lhe associa por algum tempo, até os restantes progressivamente se juntarem. Trompete e voz formam uma quase união em notas lentas e prolongadas até a música prosseguir noutra direcção, ao longo de um set único de cerca de uma hora e vinte minutos.
A liberdade dos membros deste septeto é bastante grande. Nos momentos em que se sente no seu expoente máximo, é como se cada um estivesse a dar o seu próprio concerto ou recital a solo. Mas tal não significa que cada um esteja a tocar para seu lado; pelo contrário, há uma fluidez e uma simbiose nas melodias que se intersectam e se cruzam que confere uma unidade e torna aquilo que parece um exercício individual em algo fortemente colectivo.
A riqueza dos instrumentistas em palco permite também explorar diferentes combinações da lógica anterior mas em pequenas formações – duos, trios – formadas dentro do conjunto. Por exemplo, quando ao solo de electrónica se associa a bateria e a percussão que, por sua vez, levam a uma “conversa” entre Jim Black e Levy Lorenzo – que enverga uma t-shirt na qual se lê, em letras amarelas, “agora pense num groove bom” – e que, também, por sua vez, levam a outra combinação de sons e timbres. Outras vezes, estas várias divagações laterais simultâneas – como grupos de pessoas que conversam bilateralmente à mesa de uma sala de reuniões repleta – desaguam num riff conjunto, numa linha melódica forte e incisiva que todos executam, manifestando ou relembrando a sua unidade.
Como qualquer liberdade, esta que é conferida pela formação maior vem associada a uma responsabilidade: a de saber ouvir os demais, com ouvidos de ouvir, e de saber reagir, responder e interagir adequadamente, com o objetivo comum de criar música. Talvez a isto queira Evans aludir com a metempsicose que faz parte do título deste projecto: a forma como a música passa de intérprete para intérprete, como a alma que vai encarnando em diferentes pessoas, ao longo de um percurso. E talvez, se ainda maior especulação me é permitida, seja uma forma de salvação da alma, em cujo caso a expressão trocadilhística “for Evans sake” poderia fazer algum sentido. Estou, no entanto, em plenas condições de afirmar, sem qualquer especulação, que a minha alma de espectador saiu mais consolada do Maria de Matos. Que tenha sido no Halloween é um pormenor que só o torna mais curioso.
Ao entrar as portas do Teatro Maria de Matos, depois de ter conseguido navegar as restrições ao trânsito na avenida de Roma causadas por um desfile de pessoas vestidas a rigor para o Halloween, tentei recordar-me da última vez que ali tinha estado. Um sítio onde fui algumas vezes com os meus avós, assim como aos cinemas King, poucos metros mais abaixo, à esquerda na esquina. E, se é certo que não consegui aceder ao local remoto da minha memória onde essa recordação possa estar (hipnose?), é também certo que não esperaria regressar a este local para ver um concerto. E ainda para mais este tipo de concerto: o septeto do trompetista nova-iorquino Peter Evans, que esteve em Lisboa esta 3a feira dia 31, depois de ter passado pelo Conservatório de Música de Coimbra e pela Casa da Música, no Porto.
Evans é um trompetista que já experimentou com inúmeras formações diferentes, a solo, em duo, em trio, quinteto. Seguindo uma lógica incremental, o quinteto foi alargado para incluir um violinista e um percussionista. Eis os seis que subiram ao palco do Maria de Matos com o frontman para apresentar o mais recente projecto denominado Action/Metempsychosis: Mazz Swift (violino), Ron Stabinsky (piano e sintetizador), Sam Pluta (electrónica), Tom Blancarte (baixo), Levy Lorenzo (percussão e electrónica) e Jim Black (bateria e sampler).
O espectáculo inicia de rompante, de forma inesperada, com a voz da violinista Mazz Swift, um instrumento que não vem listado na comunicação oficial mas que se revela de importância logo na primeira nota. É uma voz forte, penetrante, que canta, ri, geme e, pelo meio, respira, suspira. Ganha um cúmplice na corda solta do violino que se lhe associa por algum tempo, até os restantes progressivamente se juntarem. Trompete e voz formam uma quase união em notas lentas e prolongadas até a música prosseguir noutra direcção, ao longo de um set único de cerca de uma hora e vinte minutos.
A liberdade dos membros deste septeto é bastante grande. Nos momentos em que se sente no seu expoente máximo, é como se cada um estivesse a dar o seu próprio concerto ou recital a solo. Mas tal não significa que cada um esteja a tocar para seu lado; pelo contrário, há uma fluidez e uma simbiose nas melodias que se intersectam e se cruzam que confere uma unidade e torna aquilo que parece um exercício individual em algo fortemente colectivo.
A riqueza dos instrumentistas em palco permite também explorar diferentes combinações da lógica anterior mas em pequenas formações – duos, trios – formadas dentro do conjunto. Por exemplo, quando ao solo de electrónica se associa a bateria e a percussão que, por sua vez, levam a uma “conversa” entre Jim Black e Levy Lorenzo – que enverga uma t-shirt na qual se lê, em letras amarelas, “agora pense num groove bom” – e que, também, por sua vez, levam a outra combinação de sons e timbres. Outras vezes, estas várias divagações laterais simultâneas – como grupos de pessoas que conversam bilateralmente à mesa de uma sala de reuniões repleta – desaguam num riff conjunto, numa linha melódica forte e incisiva que todos executam, manifestando ou relembrando a sua unidade.
Como qualquer liberdade, esta que é conferida pela formação maior vem associada a uma responsabilidade: a de saber ouvir os demais, com ouvidos de ouvir, e de saber reagir, responder e interagir adequadamente, com o objetivo comum de criar música. Talvez a isto queira Evans aludir com a metempsicose que faz parte do título deste projecto: a forma como a música passa de intérprete para intérprete, como a alma que vai encarnando em diferentes pessoas, ao longo de um percurso. E talvez, se ainda maior especulação me é permitida, seja uma forma de salvação da alma, em cujo caso a expressão trocadilhística “for Evans sake” poderia fazer algum sentido. Estou, no entanto, em plenas condições de afirmar, sem qualquer especulação, que a minha alma de espectador saiu mais consolada do Maria de Matos. Que tenha sido no Halloween é um pormenor que só o torna mais curioso.
quarta-feira, 1 de novembro de 2017
Em defesa do medo
Desde a capacidade de enfrentar o desconhecido até à mais primitiva valentia física, a coragem é uma característica com imensa saída, valorizada socialmente. De tal forma que temos vergonha de admitir os nossos medos, como se fossem falhas de carácter e de postura.
A História lembra e exulta os corajosos, que tiveram a ousadia de enfrentar os canhões, o poder, ultrapassar obstáculos. Normalmente não perde muito tempo com os medrosos, a não ser para adicionar referências negativas. Assim como não perde muito tempo com os corajosos que se dão mal.
Mas a verdade é que o medo faz mais por nós do que a coragem. O medo protege-nos enquanto a coragem nos expõe a riscos. Talvez por isso, todos tenhamos medo de alguma coisa. Ou várias ao mesmo tempo. Seja de levar uns tabefes ou da mudança, de alturas ou de espaços fechados, do escuro ou de aranhas. Porque do ponto de vista da nossa sobrevivência, o medo é um valor seguro e a coragem algo arriscado.
E, por isso, algumas vezes sinto que o medo é injustiçado. Tratado como inferior e indesejado. Vítima de escárnio e maldizer quando, na prática, é o nosso melhor conselheiro em tantas circunstâncias do dia-a-dia.
Talvez seja esta a única fosse a única circunstância em que a coragem não aleija: não ter medo de enfrentar o tabu e assumir o medo. E, para aqueles que porventura possam não sentir medo – uma minoria desajustada, vítimas de uma gritante falha evolucionária que as deixa desamparadas para enfrentar o mundo – basta ter a coragem necessária para ter medo.
A História lembra e exulta os corajosos, que tiveram a ousadia de enfrentar os canhões, o poder, ultrapassar obstáculos. Normalmente não perde muito tempo com os medrosos, a não ser para adicionar referências negativas. Assim como não perde muito tempo com os corajosos que se dão mal.
Mas a verdade é que o medo faz mais por nós do que a coragem. O medo protege-nos enquanto a coragem nos expõe a riscos. Talvez por isso, todos tenhamos medo de alguma coisa. Ou várias ao mesmo tempo. Seja de levar uns tabefes ou da mudança, de alturas ou de espaços fechados, do escuro ou de aranhas. Porque do ponto de vista da nossa sobrevivência, o medo é um valor seguro e a coragem algo arriscado.
E, por isso, algumas vezes sinto que o medo é injustiçado. Tratado como inferior e indesejado. Vítima de escárnio e maldizer quando, na prática, é o nosso melhor conselheiro em tantas circunstâncias do dia-a-dia.
Talvez seja esta a única fosse a única circunstância em que a coragem não aleija: não ter medo de enfrentar o tabu e assumir o medo. E, para aqueles que porventura possam não sentir medo – uma minoria desajustada, vítimas de uma gritante falha evolucionária que as deixa desamparadas para enfrentar o mundo – basta ter a coragem necessária para ter medo.
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