Há já alguns meses que não falávamos. Aí desde o início do verão. Uma das coisas que lhe disse, na altura, foi para ver o Mecanismo, a série do Padilha. Desta vez, a conversa começou pela obrigatoriedade de votar de acordo com a lei brasileira, sob pena de coisas como, entre tantas outras, não poder renovar o passaporte, ser negado um pedido de empréstimo no banco, o ingresso na faculdade ser barrado. Ela disse que tinha votado nas últimas presidenciais e tinha guardado religiosamente o comprovativo, como sempre faz. E acrescentou que o voto tinha sido no Bolsonaro - o tema que, só aqui entre nós, eu queria aproveitar para discutir com eles, dois brasileiros dos seus 40 e picos anos.
Lancei mais algumas achas, o seguinte para a fogueira ganhar uma dimensão crítica e, a partir daí, arder por si: e esta do Moro aceitar ser ministro da Justiça? Defenderam a decisão dele, argumentando que é a única forma de acabar de fazer aquilo que começou enquanto juiz, sem os entraves e bloqueios que lhe foram semeando pelo caminho, e rodeado de pessoas da sua inteira confiança, sem ligações partidárias. Porque é preciso pôr ordem no país. E só um governo como o do Bolsonaro o pode fazer. Porque é preciso acabar com o ciclo da corrupção. Viu quando tentaram arranjar uma ordem de tribunal para pôr o Lula fora da prisão outra vez?
A forma como mentem descaradamente às pessoas. Olha o apartamento do Guarujá. É possível que seja o apartamento de um amigo e o Lula vai lá mais vezes que o amigo?? Há uma fotografia gigante dele na entrada? Você faria isso na casa do seu amigo, botar uma foto enorme sua na entrada?? Respondo negativamente e relembro que temos um ex-primeiro-ministro a contas com a Justiça por algo bastante similar. Têm a mesma escola, aprenderam uns com os outros, são farinha do mesmo saco.
E não são só os ricos e poderosos que se alimentam. Olha as bolsas que foram criadas para pobres. Pede-me desculpa por aquilo que acrescenta de seguida
Qual é a única coisa que pobre sabe fazer? É ter filho.
O montante é uma ninharia mas são importantes para a franja da população mais pobre, que se dedica a ter filhos como fonte de rendimento, através da acumulação destes apoios estatais. No fundo, são mecanismos de fidelização eleitoral: na prática, não são tomadas medidas que verdadeiramente mudem a vida destas populações e que lhes dêem melhores condições e possibilidades de vida; dão-lhes a esmola que lhes permite (sobre)viver e não mais, para que se tornem e permaneçam dependentes.
E o caso caricato das designadas bolsas-presidiário (cuja existência desconhecia), atribuídas aos dependentes de pessoas encarceradas. Não concordam com as visitas conjugais dos reclusos, mesmo quando tento contrapor dizendo que também têm direitos e relembrando a discussão suscitada pela recente greve dos guardas prisionais em Portugal. Descrevem-me como são as visitas conjugais domingueiras no país deles, que envolvem várias tendas no pátio da prisão. E, o que mais os escandaliza, a utilidade destas visitas para o aumento da prole e, neste caso concreto, a acumulação de bolsas atribuídas pelos filhos e pelo "estatuto" de presidiário.
Como é possível que isto aconteça quando há mulheres a dar à luz no chão de um hospital no Rio de Janeiro porque não há ninguém para tratar delas? - diz-me com a voz um pouco trémula e os olhos a humedecer ligeiramente. O vídeo circulou pela internet, encontrei esta reportagem da Globo.
E as questões de segurança. Ou melhor, de insegurança.
O que faz uma pessoa que sai à rua com um fusil? Não pode ser coisa boa. E não há outra forma de lidar com situações deste género senão recorrendo a mão pesada, acção decisiva. Aproveito para ir até às Filipinas e arrastar o encantador Duterte para a discussão mais a sua política musculada (um pleonasmo de utilização frequente neste contexto) de atirar a matar antes de julgar.
Tem que ser!
Tentam convencer-me (convencer-se?) que é a única forma de poder reganhar o controlo da situação. Porque a impunidade é demasiada, fazem o que querem.
E os casos de abusos sexuais nos transportes públicos. "O ser humano" (ele usa esta expressão nas descrições) não faz mais nada, coloca-se de pé ao lado da mulher e satisfaz-se à frente de toda a gente. Ela complementa: já foi vítima de uma situação destas, era ainda uma adolescente de 16 anos. Ficou sem reacção, sem saber como reagir e defender-se. Se bem que a possibilidade de defesa, em princípio, não é muito elevada, já que quem ousa contestar é, de imediato, ameaçado ou alvo de represálias.
E é escusado ir à polícia. A polícia não faz nada. A polícia também tem medo, evita o confronto e foge como qualquer outro. Já para não dizer que também recebe dos próprios bandidos. Que fazer quando lhes pagam 1000 reais por mês? O bandido vem e só precisa perguntar quanto ele quer para olhar para o outro lado. Os pais dele, quando os visita nas férias, dizem-lhe para fazer sempre o que a polícia disser e para não abrir a boca em nenhuma circunstância.
Com o seu sotaque meio quebrado, percebem que você não é de cá e vão pensar que tem dinheiro.
Foi a minha vez de me desculpar antes de falar, pela pergunta que ia fazer e atrevi-me a fazê-la: não têm medo que o Brasil vire um estado autoritário e repressivo?
Confesso que, a esta pergunta, esperava uma resposta mais contida, que admitisse alguns riscos e perigos de perda de liberdades mas que estes, ainda assim, fossem compensados pelas vantagens que a mudança de presidente acarretaria. Nada disso:
Quem me dera! Ao menos podia sair à rua!
Têm idade suficiente para ter vivido algum tempo durante a ditadura brasileira, enquanto eram miúdos, e não era assim tão mau como dizem. Os brasileiros que vêm para cá acham Portugal um paraíso. E é nesta senda que, a certa altura, atravessa para este lado do Atlântico e diz o nome Salazar, preparando-se para acrescentar qualquer coisa como "também fez coisas boas". É nesse preciso momento que o interrompo, não permito que termine essa frase, não consigo senão contrapor. Começo por lhe dizer que, se ainda vivêssemos nesse tempo, não poderíamos sequer ter a conversa que estávamos a ter. Acrescento mais exemplos de censura, da falta de liberdade de imprensa, da PIDE e dos presos políticos. Neste caso - e só mesmo neste - consigo fazê-los recuar um pouco. A certa altura admitem que a ditadura portuguesa possa ter sido pior do que a brasileira. Como se existisse uma espécie de escala, de pantone para avaliar a gradação dos regimes autoritários.
É tarde. Ela entra noutra divisão por um bocado. Vai buscar o casaco e as suas coisas para sair. Eu já estou de casaco vestido e a preparar-me para ir embora. Ele ainda vai ficar.
O que está escrito na bandeira não é mais.
Diz-me, os olhos vidrados no vazio do chão de pedra.
domingo, 30 de dezembro de 2018
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