(Publicado originalmente aqui)
A funcionária da Culturgest explica-me que o concerto foi transferido do Grande para o Pequeno Auditório. Nem é bem a mim, é a um cavalheiro desagradável, que, devido à circunstância, resolve furar a fila para reaver o diferencial do preço do bilhete enquanto a senhora me atende. A decisão de alteração da sala é acertada que, mesmo consideravelmente mais pequena, nem assim enche.
Lucia tal como Lucía em espanhol, Cadotsch como se tivesse acento na primeira sílaba e o “o” da segunda como se fosse um “u”, tal como nós, portugueses, gostamos de fazer, a torto e a direito, nos “o” que não acentuamos. A jovem cantora, de origem suíça, é acompanhada por Otis Sandsjö no saxofone tenor e Petter Eldh no contrabaixo, ambos suecos e também eles jovens. Os três entram vestidos de preto da cabeça aos pés: fico na dúvida se morreu alguém ou se vamos assistir à haka dos All Black.
Uma introdução no contrabaixo e, pouco depois, estamos a ouvir a voz de Cadotsch a cantar “Hush now, don’t explain, just say you’ll remain”. É um início directo ao assunto, sem papas na língua que, após a exposição do tema, prossegue para um solo de saxofone que, lentamente, desagua no “Speak low”, o tema que dá nome tanto a este trio, como ao seu álbum de 2016. Billie Holiday e Nina Simone são as grandes referências onde este grupo suíço/eco vai buscar as suas versões; mais à frente vamos ouvir, entre outros, “Ain’t got no”, “Deep song” e o clássico arrepiante “Strange fruit”.
Cortar a música às fatias, aos blocos e aos pedaços (não resisto: aos boCadotsch), numa espécie de dissecação de um ratinho numa aula de biologia. Com uma diferença relativamente importante: o objectivo não é deixar o pobre bicho esventrado, mas sim refazê-lo, voltar a colocar e colar tudo novamente no sítio ou, pelo menos, num qualquer sítio. Assim como o vaso de louça, uma coisa de valor, quiçá da dinastia Ming, que caiu ao chão e se escaqueirou e cujo valor – pecuniário, à partida, sentimental, à chegada – justifica um esforço aturado de puzzle acompanhado de um tubo de super-cola.
Com uma diferença: pese embora o vaso Ming que se partiu continue a ser reconhecível após ter passado pelo processo de montagem e colagem, não regressa à sua versão original. Tem agora formas um pouco diferentes, arestas aqui e ali. Sobretudo está menos liso, mais áspero e anguloso, contundente. No caso do bichito, a comparação levar-nos-ia até um rato de Frankenstein, com as marcas das cicatrizes e dos pontos onde os bocados foram cosidos.
E – apesar da estrutura da formação sem instrumento harmónico, apesar da sonoridade crua que alguns identificam com free jazz, apesar da severa desconstrução das músicas, apesar das frases repetidas na interação entre o contrabaixo e o saxofone, como se se tratasse de uma samplagem de hip hop ou do ritmo de uma bateria (ou caixa de ritmos) – o resultado final é inesperadamente melodioso, quase doce e delicado. Talvez pelo contraste, como no tema “Black is the colour of my true love’s hair”, no qual a suavidade da voz de Cadotsch sobressai na coabitação com o momento intenso do saxofonista, um solo quase rude, feito de frases entrecortadas, como um discurso espontâneo de pouco preparado, dito através de sons metalizados e repletos de harmónicos.
Pela primeira vez reparo no nome do ciclo “Isto é jazz?”, onde se insere este concerto e tantos outros. Um ciclo onde, quiçá, o mais importante é o ponto de interrogação. Uma boa pergunta, verdade seja dita, que já merecia, se não uma resposta concreta e cabal, pelo menos alguma reflexão, com a devida profundidade. “Retro-futurismo acústico”: na ausência de resposta à pergunta anterior, contentemo-nos com a auto-designação que o grupo faz da sua música. Um termo que mete algum respeito: trata-se, afinal de contas, de três palavras, que não são umas quaisquer palavras e que chegam a ter, inclusivamente, um hífen a justapor duas delas (digo-o sem, na verdade, ter uma preferência entre justaposição e a aglutinação, ambas têm os seus méritos e encantos).
Avancemos até ao final do set. Neste momento, acabamos de ouvir “Wild is the wind”, os artistas juntam-se ao fundo do palco para as vénias da praxe e saem pelo cortinado. O público aplaude com algum entusiasmo mas, antes que ficasse com ideias, as luzes da sala acendem-se e esfumam a expectativa de (sequer) um encore. Cá fora, na bancada do bengaleiro, há CDs, vinis e cassetes à venda – é oficial, o vinil (já) está démodé.
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