segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Quarteto de Ricardo Toscano conquista o grande auditório da Culturgest

(Publicado originalmente aqui)

Confiro duas vezes a informação sobre o concerto. Não, não me enganei, é mesmo no grande auditório. A Culturgest costuma reservar a sua sala mais pequena para os jovens nomes do jazz mas não neste caso. Ricardo Toscano, o saxofonista nascido em 1993 (ninguém nasceu em 93), músico em franca ascensão e de uma maturidade surpreendente, tem a plateia do grande auditório cheia para o ver tocar.

É o próprio a reconhecer o prazer e o privilégio de tocar numa das melhores salas do país. Ainda para mais a música que gosta com os seus amigos e igualmente quasi-imberbes companheiros de palco: João Pedro Coelho no piano, Romeu Tristão no contrabaixo e João Pereira na bateria. E todos aprumadinhos: fato escuro (no caso de Toscano, com um lenço no bolso), camisa branca ou clara (excepto João Pedro Coelho) com o primeiro botão aberto, sapatos castanhos. A elegância faz parte, ainda para mais num estilo de música que considera sexy.

A tela no fundo do palco enche-se de um cor-de-laranja intenso e quente, João Pedro Coelho faz uma nota pedal ao piano e o concerto arranca com um tema original de Toscano, cujo nome, se bem percebi – o que não é grande garantia – é Homília. O fundo passará a azul escuro para o segundo tema, o standard Milestones, um clássico de Miles Davis. Uma “versão estranha”, como a definirá Toscano, “mas acabámos todos juntos”, observação correcta que gera algum riso na plateia.

Toscano mete conversa connosco para introduzir o terceiro tema da noite. Fala-nos da precária saúde de Sonny Rollins que, aos 87 anos, tem uma infecção pulmonar que piora sempre que o lendário saxofonista toca. “Muito triste”. Em jeito de homenagem ao grande senhor do saxofone e ao seu enorme legado, bem como a “todos os que estão a sofrer dos pulmões nesta sala” o tema seguinte é uma balada do álbum The bridge, intitulada Where are you?, e que traz ao de cima o melhor de Romeu Tristão, a cargo de quem fica a exposição da melodia arrastada e lânguida do tema e que, chegada a hora, faz um excelente solo.

O fundo do palco fica agora vermelho e depois passa a verde, para acompanhar dois temas originais do saxofonista e que ainda não têm nome. Em relação ao segundo, explica-nos que é um tema inquieto e triste, uma espécie de grito mudo de quem grita para dentro de um saco, repleto de impotência mas também de uma vontade de transformar coisas tristes em coisas bonitas. Feliz de quem consegue transformar a tristeza em algo assim tão belo.

Um momento divertido teve lugar imediatamente após um tema de swing rápido e fundo lilás: “João Pereira pergunta se alguém no público tem uma chave de afinação de bombo”. O que é certo é que alguém se acusa lá de cima do topo da plateia, desce decididamente os degraus em direcção ao palco para entregar o objecto metálico, enquanto as luzes da sala se acendem para lhe guiar o caminho. Os músicos e o público agradecem a generosidade.

Enquanto João Pereira afina o bombo, Toscano explica-nos que têm programado para fechar o set algo de diferente que não jazz. Em resposta a um desafio que lhe foi colocado, o saxofonista preparou um arranjo de uma ária da sua ópera favorita, Tristão e Isolda. A escolha incidiu sobre a ária da morte de Isolda. Sob um fundo azul turquesa, é caso para dizer que Isolda foi morta e bem morta.

O quarteto havia de regressar mais uma vez ao palco para um encore único a evocar o grande John Coltrane com o standard My favourite things, cujos primeiros acordes arrancam de imediato uma reacção efusiva do público. Numa versão clássica do tema, cheia de intensidade, de repente reparo em João Pereira a tirar o pé do pedal do bombo e a dar chutos na pele do mesmo. Mais: a certa altura, um dos pratos está na vertical e acaba por se soltar e cair no chão. Uma performance que acaba por fazer o baterista merecer o epíteto de “demolidor de baterias”.

Ricardo Toscano e os seus companheiros colocaram o pé no palco do grande auditório da Culturgest, cada qual como um Neil Armstrong que dá um importante pequeno grande passo rumo ao futuro. Parabéns não só aos músicos mas também à Culturgest pela coragem da aposta bem ganha.

Sem comentários:

Enviar um comentário