quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Doença efémera e cura eterna

««O amor é uma doença», sentenciou o erudito. »E o casamento é a única cura, tens razão. Mas é uma cura de que te podes arrepender, porque é como ter de tomar esse horrível quinino a vida toda mesmo depois de a febre tifóide que tiveste estar curada.»»

Uma estranheza em mim, Orhan Pamuk

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Quarteto de Ricardo Toscano conquista o grande auditório da Culturgest

(Publicado originalmente aqui)

Confiro duas vezes a informação sobre o concerto. Não, não me enganei, é mesmo no grande auditório. A Culturgest costuma reservar a sua sala mais pequena para os jovens nomes do jazz mas não neste caso. Ricardo Toscano, o saxofonista nascido em 1993 (ninguém nasceu em 93), músico em franca ascensão e de uma maturidade surpreendente, tem a plateia do grande auditório cheia para o ver tocar.

É o próprio a reconhecer o prazer e o privilégio de tocar numa das melhores salas do país. Ainda para mais a música que gosta com os seus amigos e igualmente quasi-imberbes companheiros de palco: João Pedro Coelho no piano, Romeu Tristão no contrabaixo e João Pereira na bateria. E todos aprumadinhos: fato escuro (no caso de Toscano, com um lenço no bolso), camisa branca ou clara (excepto João Pedro Coelho) com o primeiro botão aberto, sapatos castanhos. A elegância faz parte, ainda para mais num estilo de música que considera sexy.

A tela no fundo do palco enche-se de um cor-de-laranja intenso e quente, João Pedro Coelho faz uma nota pedal ao piano e o concerto arranca com um tema original de Toscano, cujo nome, se bem percebi – o que não é grande garantia – é Homília. O fundo passará a azul escuro para o segundo tema, o standard Milestones, um clássico de Miles Davis. Uma “versão estranha”, como a definirá Toscano, “mas acabámos todos juntos”, observação correcta que gera algum riso na plateia.

Toscano mete conversa connosco para introduzir o terceiro tema da noite. Fala-nos da precária saúde de Sonny Rollins que, aos 87 anos, tem uma infecção pulmonar que piora sempre que o lendário saxofonista toca. “Muito triste”. Em jeito de homenagem ao grande senhor do saxofone e ao seu enorme legado, bem como a “todos os que estão a sofrer dos pulmões nesta sala” o tema seguinte é uma balada do álbum The bridge, intitulada Where are you?, e que traz ao de cima o melhor de Romeu Tristão, a cargo de quem fica a exposição da melodia arrastada e lânguida do tema e que, chegada a hora, faz um excelente solo.

O fundo do palco fica agora vermelho e depois passa a verde, para acompanhar dois temas originais do saxofonista e que ainda não têm nome. Em relação ao segundo, explica-nos que é um tema inquieto e triste, uma espécie de grito mudo de quem grita para dentro de um saco, repleto de impotência mas também de uma vontade de transformar coisas tristes em coisas bonitas. Feliz de quem consegue transformar a tristeza em algo assim tão belo.

Um momento divertido teve lugar imediatamente após um tema de swing rápido e fundo lilás: “João Pereira pergunta se alguém no público tem uma chave de afinação de bombo”. O que é certo é que alguém se acusa lá de cima do topo da plateia, desce decididamente os degraus em direcção ao palco para entregar o objecto metálico, enquanto as luzes da sala se acendem para lhe guiar o caminho. Os músicos e o público agradecem a generosidade.

Enquanto João Pereira afina o bombo, Toscano explica-nos que têm programado para fechar o set algo de diferente que não jazz. Em resposta a um desafio que lhe foi colocado, o saxofonista preparou um arranjo de uma ária da sua ópera favorita, Tristão e Isolda. A escolha incidiu sobre a ária da morte de Isolda. Sob um fundo azul turquesa, é caso para dizer que Isolda foi morta e bem morta.

O quarteto havia de regressar mais uma vez ao palco para um encore único a evocar o grande John Coltrane com o standard My favourite things, cujos primeiros acordes arrancam de imediato uma reacção efusiva do público. Numa versão clássica do tema, cheia de intensidade, de repente reparo em João Pereira a tirar o pé do pedal do bombo e a dar chutos na pele do mesmo. Mais: a certa altura, um dos pratos está na vertical e acaba por se soltar e cair no chão. Uma performance que acaba por fazer o baterista merecer o epíteto de “demolidor de baterias”.

Ricardo Toscano e os seus companheiros colocaram o pé no palco do grande auditório da Culturgest, cada qual como um Neil Armstrong que dá um importante pequeno grande passo rumo ao futuro. Parabéns não só aos músicos mas também à Culturgest pela coragem da aposta bem ganha.

sábado, 27 de janeiro de 2018

Cravas

O problema de andar com uma máquina reflex ao pescoço são os constantes pedidos de outros turistas para lhes tirar fotografias em frente a coisas.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Natural

«A cultura tende a afirmar que apenas proíbe o que não é natural. No entanto, de uma perspectiva biológica, nada há que não seja natural. O que for possível também é, por definição, natural. Um comportamento verdadeiramente contranatura, que vá contra as leis da natureza, não pode existir, por isso não necessitaria de qualquer proibição. Nenhuma cultura se deu ao trabalho de proibir os homens de fazerem a fotossíntese, as mulheres de correrem mais depressa do que a velocidade da luz ou os eletrões negativamente de serem atraídos uns pelos outros.»

Sapiens: História breve da humanidade, Yuval Noah Harari

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Norte e sul

Esperaria encontrar as célebres diferenças entre o norte e o sul de Itália, de que amiúde se ouve falar. Mas não esperava que fossem tão grandes. Ali senti que não se trata de meras diferenças, mas sim de autênticas clivagens. É surpreendente o quão diferente Nápoles pode ser da capital do país que fica a (escassos?) 200 kms.

Do aspecto da cidade e da paisagem urbana, das pessoas e até à própria forma como falam. Embora este último aspecto fosse algo que já tinha relativamente presente, fruto da convivência diária, durante um certo período de tempo, com um napolitano. Outros italianos oriundos de outras regiões do país diziam que o italiano dele era diferente e ele próprio dizia que a única língua que sabia verdadeiramente falar era o napolitano.

Depois de ler um pouco sobre a origem e a história da cidade, talvez seja mais fácil perceber o que senti. E a isto relembrando também que a Itália era um conjunto de cidades que se juntaram num país há menos de 200 anos, algo que, na qualidade de portugueses, por vezes não pensamos muito, dada a nossa uniformidade e coesão relativamente elevada. Agora se esta é uma característica de países ou territórios que se formaram da junção de cidades-Estado ou onde estas eram as formas típicas de organização, aí está uma boa pergunta para fazer a um grego.

domingo, 21 de janeiro de 2018

Há uma certa beleza decadente por toda a cidade.

Ou uma decadência bela. Das ruas escuras e cinzentas às casas velhas e grafitadas. Das gentes modestas, vestidas a milhas da elegância que normalmente se associa aos italianos que dão cartas na moda. E o lixo nas ruas: a recolha de lixo continua a ser uma das actividades associadas à máfia.

E a degradação estende-se à forma como as coisas funcionam. As indicações que temos são para apanhar um comboio na estação de Montesanto até à de Garibaldi e, uma vez aí, apanhar outro comboio até Pompeia. Parecem simples e lineares e, no entanto, a viagem foi repleta de complicações não-lineares. Desde confundir a estação de funicular de Montesanto com a estação de comboios, até alguma luta com a máquina para tirar o bilhete (que acabou por ser comprado numa tabacaria por indicação do macambúzio funcionário da estação), até perceber, na estação de Garibaldi, qual a plataforma correcta. Esta última parte dificuldade pelo facto de o comboio não ter passado à hora estabelecida, mas sim com cerca de 45m de atraso.

E é diferente dos outros. Moderno, limpo, com indicação das paragens. Os inúmeros grupos de turistas trepam assim que as portas se abrem, facilmente arranjamos um lugar confortável para a viagem de menos de uma hora até à cidade das ruínas.

Quando finalmente as coisas parecem ter encarrilhado (pun intended), uma nova surpresa: já munidos com um mapa do local e um guia-audio, deparamo-nos com uma fila gigantesca para a única pessoa que vende bilhetes à entrada das ruínas. A espera é de mais de uma hora, algumas pessoas à nossa frente refilam, perdem a cabeça e gritam. Entramos já ao início da tarde.

A visita é interessante mas acabou por ser contaminada pela irritação da trabalheira implicada com a entrada no local. À saída, a chuva faz-nos apressar de regresso ao comboio. E aqui surgem as dúvidas. Pergunto a um senhor que, com muita simpatia, me explica que há duas estações em Pompeia e que em ambas podemos apanhar um comboio de regresso a Napóles. Cinquenta por cento de hipóteses e optamos, sem saber, não pela estação a que chegámos mas a outra. A diferença é que desta não parte o comboio bonito dos turistas, mas sim um a cair aos bocados, onde só vão locais, que para em muito mais estações e demora quase o dobro do tempo.

A comida acaba por nos confortar. Um restaurante com aquelas toalhas típicas aos quadrados e empregados pespinetas. A arte dos simples: pedaços de mozzarella panado, seguidos de uma margarita e uma carbonara, com vinho tinto da casa a acompanhar. E uma sobremesa cujo nome teima em me escapar. A boa disposição volta a estampar-se-nos na cara.

Nessa noite, ao regressar para o local da pernoita, deparamo-nos com uma (outra) situação caricata. Um casal chega a casa de carro: ele para o carro para ela sair e retirar um estendal de roupa estrategicamente colocado a bloquear o seu precioso lugar de estacionamento.

sábado, 20 de janeiro de 2018

A estrada circular da cidade leva-me, por alguns momentos, até à Madeira:

faixas de alcatrão repletas de curvas, subjugadas pela topografia acidentada. Uma cidade que cresce à medida que se afasta do mar e ganha altura. As dificuldades crescentes começam a surgir em catadupa assim que quando deixo esta estrada em direcção ao local da pernoita, no centro da cidade.

A luta com o Google Maps que se seguiu durou uma boa hora. Nem sempre a aplicação deu as indicações correctas e, quando deu, nem sempre foram devidamente interpretadas dada a miríade de opções disponíveis. A deambulação inicial pela cidade incluiu uma rua estreita sem saída, que obrigou a uma longa, muito desagradável e arriscada marcha-atrás, prendada com um agradável cheiro a embraiagem queimada.

À medida que vou conduzindo – nesta circunstância, sinónimo de sofrimento –, vou olhando em redor e verificando que praticamente todos os carros, apesar de na esmagadora maioria de pequenas dimensões, têm mossas, batidelas e raspões. Alguns têm pedaços de para-choque ou guarda-lamas colados com fita gomada.

Três telefonemas, algumas perguntas a transeuntes e muito vernáculo depois, o local pretendido finalmente surgiu à nossa direita. Poderia dizer que se tratava de uma rua estreita mas isso seria reiterar o óbvio. Posso acrescentar, no entanto, que não tinha saída. Mas o mais importante é que, à esquerda da parede onde terminava, se encontrava a entrada de uma garagem, que nos foi indicada para deixar a viatura.

Caracterizo a sensação de alívio ao parar o Opel Corsa naquela gruta escavada na rocha transformada em local para guardar veículos ao abster-me de adjectivar. Acrescento apenas que se trataram de dez euros por noite muito bem gastos. E que os cinco pisos, sem elevador, que se seguiram até à porta do apartamento, com um vão de escada apertado e degraus altos e irregulares foram canja de subir com armas e bagagens às costas.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Ir para fora lá fora

«Até aquilo que as pessoas consideram os seus desejos mais pessoais são quase sempre programados pela ordem imaginada. Consideremos, por exemplo, o desejo popular de fazer férias no estrangeiro. Não há nada natural ou óbvio em relação a isto. Um chimpanzé alfa jamais pensaria em usar o seu poder para ir de férias para o território de um bando chimpanzé vizinho. A elite do antigo Egipto gastava a sua fortuna a construir pirâmides e a mumificar os seus corpos mas nenhum dos seus membros pensou em ir fazer compras na Babilónia ou esqui na Fenícia. As pessoas gastam hoje muito dinheiro em férias no estrangeiro porque são verdadeiros crentes nos mitos do consumismo romântico.»

Sapiens: história breve da humanidade, Yuval Noah Harari

domingo, 14 de janeiro de 2018

25 anos

«Por entre o arame farpado dos portões, para lá de toda a zona de construção e das barreiras de arame farpado, erguia-se um Sol grande, vermelho, como que envolto em bruma. Ao lado de Chúkhov, Aliocha olha para o Sol e alegra-se, com um sorriso nos lábios. Tem as faces cavadas, vive só da ração, não ganha nada de lado nenhum; está alegre porquê? Aos domingos passa o tempo a cochichar com os outros batistas. Até parece que o campo desliza sobre eles sem fazer mossa, como a água pelas penas do pato. Deram-lhe vinte e cinco anos pela fé batista - pensarão afastá-los assim da sua fé?»

Um dia na vida de Ivan Deníssovitch, Aleksandr Soljenítsin

sábado, 13 de janeiro de 2018

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Konkatsu

«Japanese statisticians fear that the population will shrink to under 100 million by the middle of the century. If the current birth rate continues, it is even possible that by 2110 the population would have fallen below the 50 million it was in 1910. Japanese governments are trying a variety of measures to reverse the decline. A recent example is using millions of dollars of tax payers' money to fund a matchmaking service for young couples. Subsidised konkatsu parties are arranged for single men and women to meet, eat, drink and - eventually - have babies.

Prisoners of geography, Tim Marshall

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Mercator

«If you look at a world map and mentally glue Alaska onto California, then turn the USA on its head, it appears as if it would roughly fit into Africa with a few gaps here and there. In fact Africa is three times bigger than the USA. Look again at the standard Mercator map and you see that Greenland appears to be the size as Africa, and yet Africa is actually fourteen times the size of Greenland! You could fit the USA, Greenland, India, China, Spain, France, Germany and the UK into Africa and still have room for most of Eastern Europe. We know Africa is a massive land mass, but the maps rarely tell us how massive.»

Prisoners of geography, Tim Marshall

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Das meias-voltas da vida

No início, fazem esforços para que arrotemos. Mas mesmo só no início. Depois - e até ao fim - repreendem-nos pela mesma acção.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Crónica da morte anunciada

«For thirty years it has been fashionable to predict the imminent or ongoing decline of the USA. This is as wrong now as it was in the past. The planet's most successful country is about to become self-sufficient in energy, it remains the pre-eminent economic power and it spends more on research and development for its military than the overall military budget of all other NATO countries combined. Its population is not ageing as in Europe and Japan, and a 2013 Gallup study showed that 25 per cent of all people hoping to emigrate put the USA as their first choice of destination. In the same year Shanghai University listed what its experts judged the top twenty universities in the world: seventeen were in the USA.

The Prussian statesman Otto von Bismarck, in a double-edged remark, said more than a century ago that 'God takes special care of drunks, children and the United States of America." It appears still to be true.»

Prisoners of geography, Tim Marshall