quinta-feira, 28 de abril de 2011

No portão da entrada principal a inscrição “Jedem das seine”

Legível pelo lado de dentro do campo. Os prisioneiros eram confrontados com a frase duas vezes por dia, na parada ao início da manhã e ao final da tarde, como que para serem relembrados da sua constante presença. Significa “a cada o seu”, uma espécie de cada um merece o que tem. Que é pior do que isso, porque esta expressão normalmente assume que aquilo que as pessoas têm depende das acções que levaram a cabo: se tiverem sido boazinhas, então a vida sorri; se tiverem sido mazinhas, então sofrem as consequências. Ora, no caso de Buchenwald, não é nada disso que se trata. Ninguém está ali senão por aquilo que fez mas sim por aquilo que é, ou seja, sobre aquilo que não depende de uma escolha e que não passível de ser controlado. Logo, é mais uma espécie de cada macaco no seu galho. Mas um cada macaco no seu galho muito cínico.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Pouca terra

Foi a primeira vez que fui a um campo de concentração. Um crime chegar a esta idade, tanta porcaria de sítio onde já fui, e só agora meti os pés num sítio como este. E este nem sequer é um campo de extermínio, era um campo essencialmente de trabalhos forçados. Claro que foi o local de morte de muitos milhares de pessoas, também tinha um crematório e um laboratório – chamemos-lhe assim – onde se faziam experiências com cobaias humanas injectadas com febre tifóide. Também tinha um posto médico falso para onde os prisioneiros de guerra russos eram levados ao engano para serem fuzilados. Mas não tinha câmaras de gás. As pessoas que não eram dadas como aptas para trabalho forçado eram tipicamente enviadas para outros campos como Auschwitz, esses sim com câmaras de gás. Dito de outra forma, tenho que visitar mais.

Fica uma foto dos carris por onde chegavam os comboios com vagões de animais carregados de gente para povoar este campo. Segundo reza, estes dez quilómetros foram construídos em pouco mais de 100 dias, a um ritmo alucinante e a custo de muitas vidas.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Redundância

«O homem não sabe mais que os outros animais; sabe menos. Eles sabem o que precisam saber. Nós não.»

Citações e pensamentos de Fernando Pessoa, organização de Paulo Neves da Silva

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Quem Weimar perde o l'gar

Talvez seja mais conhecida pelo facto de ter sido aqui que se juntaram uma data de carolas para escrever a Constituição alemã no período imediatamente a seguir à Primeira Guerra Mundial – e daí ter surgido o termo “República de Weimar”. Mas Weimar é bem mais do que isso, é literalmente um poço de cultura. A começar pelos dois monstros da cultura alemã, Goethe e Schiller, que aqui viveram, passando pelo Liszt e terminando na Bauhaus (e todos os artistas que a ela estão associados).

domingo, 24 de abril de 2011

Vou no comboio, algures depois de Kassel.

Vou de livro na mão há já algum tempo e resolvo pousá-lo um bocado para descansar os olhos. Ao meu lado, do outro lado do corredor, vai uma tipa grandalhona que entrou há pouco tempo no comboio. Traz uma mochila bem grande que pousou no banco ao lado dela e vai sentada à janela com o sol de final de dia a bater-lhe na cara. De repente, quando olho em redor, vejo que tem um raminho de qualquer coisa que parece salsa na mão. Debica com a mão direita e retira um pouco das ervas verdes e leva à boca. Mastiga e engole aquela porcaria e volta a tirar mais um bocado do ramo e volta novamente a levar à boca e a comer. Depois abre o recipiente de metal para o lixo ao seu lado e despeja para lá o remanescente. Ajeita-se na cadeira, refastelada e prepara-se para dormir um bocado.

sábado, 23 de abril de 2011

Dou por mim a pensar coisas estúpidas.

Mesmo estúpidas. Quer dizer, de início não parecem estúpidas. Depois, crescem elas ou cresce o meu sentido de auto-crítica e ficam imediatamente catalogadas. Coisas estúpidas. Mesmo estúpidas. O único problema é que, por vezes, o hiato entre começar a pensar nelas e finalmente perceber que são estúpidas é estupidamente grande. Uma estupidez.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Às voltas e o sono não surge.

Os passos pesados do vizinho de cima. Pesados porque fazem barulho, não são passos de velho arrastados. Na rua, passa um grupo de pessoas um bocado mais barulhento, apanho-lhes as palavras enquanto passam divertidos pela minha janela. Dou mais uma volta, estou demasiado desperto. Disperso por entre sonhos que não são sonhos, são imagens soltas, dispersas. Estou demasiado desperto e então levanto-me. Levanto-me e sento-me a escrever isto.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Até à ponte ferroviária.

Zona este. Desde a pedonal – aquela que, atravessando, vai aterrar mesmo lá no centro – até lá ao fundo. Que não é tão fundo, nem sequer até fundo, dez minutos de passada rápida e cabeça vazia são o suficiente. Só dez minutos, os vinte ir e vir parecem muito – por causa da passada rápida – parecem mais do que os seis meses que estive sem ir correr. A mudança de horário tem destas coisas. O sol dos últimos dias, semanas, mês também ajuda, convida a vir para a rua, passo rápido por entre os que se passeiam, pedalam, patinam. Bandos de putos na relva das margens, garrafas de cerveja, cigarros e guitarras desafinadas, mantas no chão e óculos escuros da moda.

E tudo isto em dez minutos, vinte ir e vir.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Einmal ist keinmal

No momento em que vou a sair, já atrasado para o meu encontro das 18h15, dou pela falta das chaves de casa. Tenho tudo. A carteira, o telefone – aliás, os dois telefones – o raio do badge. Excepto as chaves de casa. Procuro em todo o lado. Dou a volta a tudo. Gavetas, bolsos das calças, casaco, gabardine. A mochila! Trouxe a mochila de manhã e nada lá dentro senão o raio de um saco de plástico. O meu colega de gabinete olha para mim preocupado “what’s wrong?”. Explico-me ele dá-me nas orelhas por ainda não ter feito uma cópia das chaves para o que der e vier.

Desisto. Telefono à minha senhoria: “Hi Anna”. Meio envergonhado, claro, é uma situação estúpida. O que vale é que ela é uma porreira. Não posso ir já aí mas já te ligo dentro de uma hora ou assim. Combinado. Vou para o tal encontro – aquele das 18h15 para o qual já estou pornograficamente atrasado. Uma cerveja à beira rio. Mais do que à beira rio, literalmente no rio numa espécie de jangada ou plataforma com umas mesas e uma senhora que é um atraso de vida a atender às mesas. O telefone ao meu lado, ao lado da caneca de cerveja. Toca mais ou menos quando estou a chegar ao fim. Despejo o que falta da caneca e despeço-me. Levo nas orelhas – pela segunda vez no mesmo dia, raios parta – porque estou “deserting my friends”. Explico o que se passa – porra, já lhes tido dito – e ainda digo que ligo depois para ver se ainda ali estão.

Subo os degraus de três em três, galgo os metros até casa num instante e chego dez, quinze segundos antes do carro dela – um Ka muito velhinho – entrar na esquina da rua e estacionar. Sai do carro apressadamente e já me estou a desculpar pelo incómodo e ela “macht nix”. É uma querida. Abre-me a porta da rua e passa-me para a mão as chaves para abrir a porta do apartamento. O pior dos meus receios concretiza-se. Dou duas voltas à chave até abrir a porta, o que significa que ela estava fechada, o que significa que as chaves não estão dentro de casa e que saí com elas de manhã, o pior cenário possível. A minha cara deve ter ficado com mau aspecto porque eu percebi que ela não percebeu a minha dedução lógica e, mesmo assim, está preocupada. Depois lá faz click e solta uma das únicas três expressões que verdadeiramente interessam em alemão: “ach so” (as outras duas são “genau” (com ou sem “ganz”) e “jawohl” (“doch” também é giro)). E continua “bist du sicher?”. Onde é que puseste, lembras-te? E eu conto o raio da história, que verifiquei aqui, ali e acoli e não estou nada a ver onde possa ter enfiado a porcaria das chaves, normalmente ponho no bolso das calças e o meu receio é que as tenha deixado cair daí sabe Deus onde. Digo-lhe que das qualquer das formas amanhã vou “nochmal gucken” e lhe digo qualquer coisa.

Depois, a pièce de résistance. Aproveito, já que ela está ali, para lhe mostrar os dois buracos que o gajo da Unitymedia fez na semana passada quando estava a instalar uma tomada para o cabo da televisão. Foram direitinhos de encontro a qualquer coisa demasiado rija e ele teve que chegar para a esquerda e deixar dois lindos orifícios escarrapachados no meio da parede. E eu pior que estragado. E achei que mais valia mostrar-lhe. Entra-me na sala e nem sequer olha para a parede, olha para o sofá onde a minha guitarra repousa ao comprido, qual imperador romano de cacho de uvas na mão. “Spielst du?”. Claro, até já me tinhas visto de guitarra na mão, no mínimo no dia em que ajudaste a carregar as tralhas cá para casa [já vos disse que é uma querida, não disse? Trouxe-me de armas e bagagens até cá a casa para facilitar a mudança]. Lá se apercebe que já deveria saber. “Bist du single?”. E em seguida diz que me vai apresentar a Laura, a filha dela. Eu rio-me e ela acrescenta que ela própria não pode, mas a filha pode. Eu rio-me mais, que raio havia de fazer. E que não preocupe com a porcaria dos buracos na parede. Um bocadinho de “gibs” e resolve-se. É mesmo uma querida.

Dirige-se à porta e olha para mim. “Bist du verliebt?” e eu respondo muito rápido “alle Tagen” e agora é ela quem se ri. E acrescenta que quando as pessoas estão apaixonadas perdem as coisas e dou mais uma achega que é porque têm a cabeça noutro sítio. Vê lá outra vez amanhã se não encontras as chaves, pensa, “uberlegt mal” onde as podes ter posto e depois diz-me qualquer coisa. Claro, está combinado.

E obrigado uma vez mais.

domingo, 17 de abril de 2011

How to improvise

A louça amontoa-se no lava-louças, empilha-se por entre pratos que se assentam uns em cima dos outros, copos que se encaixam uns nos outros, a bancada repleta de sacos com coisas que ficaram por arrumar, que ficam por arrumar, que provavelmente já não serão arrumadas. Garrafas de vinho e migalhas, uma embalagem de CIF e caixas de cereais, uma tábua e uma faca para cortar o pão, garrafas vazias à espera do vidrão, pequenos recipientes de molho de soja que acompanham take away the sushi. À espera. On the hold. En attendant. Warten. A imobilidade mental traduz-se nestas pequenas coisas do dia, a mais singela e ridícula tarefa caseira passa a ser insuportável e hercúlea.

sábado, 16 de abril de 2011

sexta-feira, 15 de abril de 2011

quinta-feira, 14 de abril de 2011

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Mais crónicas de fada do lar

Corto-me na mão esquerda a cortar pão. Dou um misto de grito de dor misturado com algumas palavras menos próprias e considerações sobre a actividade profissional da mãe da faca. O golpe não é muito fundo mas o suficiente para depressa ganhar a cor avermelhada do sangue. Ocorre-me que deveria desinfectar a ferida. Ocorre-me em seguida que não tenho álcool nesta casa. Aliás, não tenho rigorosamente nada de primeiros socorros. Olho em volta e rapidamente vejo a solução. Preparo e despejo um shot de tequilla na ferida – afinal, 38% do conteúdo da garrafa é álcool; já a de vodka, que estava mesmo ao lado, só tinha 37,5%. Pena não me ter lembrado do ritual do limão e do sal.

domingo, 10 de abril de 2011

A Musikmesse é a maior feira de instrumentos musicais do mundo.

Uma FIL só para instrumentos de sopro. Outra só para instrumentos de percussão. Outra só para instrumentos de corda. Outra – aliás, duas – só para instrumentos eléctricos. Outra só para literatura especializada. Mais umas quantas FILs para sistemas de som e luz profissionais. Na zona das cordas, imensos instrumentos dos quatro cantos do mundo. A guitarra espanhola com grande destaque, claro, mas a quantidade bancas chinesas de qualidade duvidosa foi o que mais me chamou a atenção. Para além disso, bancas de instrumentos eslavos, de origem cigana e até uma banca só de ukeleles coloridos como o Havai. As pulgas saltitantes de origem portuguesa fazem sucesso junto das crianças e dos pais das crianças que abrem os cordões das bolsas e oferecem aqueles instrumentos meio brincadeira aos filhos, juntamente com livritos pequeninos com uma espécie de método de aprendizagem. Agora, em relação aos instrumentos portugueses que deram origem ao ukelele – braguinha – não vi nada. Assim como não vi um cavaquinho. Nem sequer uma guitarra portuguesa, símbolo máximo da nossa expressão musical única e de projecção mundial.

sábado, 9 de abril de 2011

Spielzeug

«O homem digno desse nome apenas ama duas coisas: o perigo e o jogo. É por isso que ele deseja a mulher, o mais perigoso dos brinquedos.»

Assim falava Zaratustra, Friedrich Nietzsche

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Sweet dreams are made of this

«Amor não se conjuga no passado, ou se ama para sempre ou nunca se amou verdadeiramente»

Fernando Pessoa

terça-feira, 5 de abril de 2011

Foram capazes de ter sido estes quadros. É possível, não nego.

Num deles o Armstrong. Sentado, o corpo ligeiramente cortado, o alto da cabeça também. Segura o trompete perto do bocal, o instrumento poisa no chão perto dos pés. Os sapatos pretos, as meias brancas, um laçarote. O olhar está concentrado em qualquer outra coisa, lá longe, fora daquilo que conseguimos ver. Não tem nada a ver com aquela expressão bonacheirona com que é associado, aquele sorriso enorme. Parece velho e cansado.

No outro quadro, o Ellington. Com uma pose de duque, claro, sentado de costas para o piano. Vemo-lo pelo reflexo do espelho de um camarim, na bancada uma série de frascos – um deles diz baby powder – e produtos, a gravata pendurada a um canto. Ao fundo, um armário, repleto de fatos pendurados. Impecáveis, exactamente como aquele que veste e o cabelo muito penteado para trás, com brilhantina.

No último, Sonny Stitt, desconhecido para mim. É uma daquelas imagens típicas de jazz: um saxofonista fotografado por entre fios espessos de fumo de um cigarro pousado num cinzeiro infecto: o cinzeiro, mais perto, desfocado, o músico, mais longe, focado. Um holofote projecta um feixe de luz por detrás, que faz disparar o brilho do metal do saxofone e dos dedos a pressionar as válvulas.

domingo, 3 de abril de 2011

Revisitei a minha amiga do final do ano passado.

Por um momento ia jurar que a minha cara lhe disse alguma coisa quando parou para me perguntar o que ia beber. Mas não. Ou então fingiu que não. No outro extremo da sala, um trio a tocar música cabo-verdiana. Demorei a perceber que era isso que ouvia, houve qualquer coisa que me fez pensar que deveria ser música brasileira – talvez o amarelo da t-shirt de um deles. Tive que explicar a uma tipa que não faço ideia quem seja que, lá por ser português, não significa que perceba um boi de crioulo. E é verdade, só consigo apanhar umas coisas. Lá cantaram aquela do caminho para “ess´ minha terra Sã Nicolau”, talvez para me contrariar e mostrar que afinal percebo umas raspas.

sábado, 2 de abril de 2011

Diga trinta e três

o botão. Enviar. São duas as perguntas mas as questões são muito mais. Imensas, inúmeras possibilidades e uma panóplia. As questões são muito piores que as perguntas. Às perguntas respondemos com sim ou não, ou talvez, logo se vê; no limite, nem sequer respondemos e dizemos apenas que não sabemos a resposta adequada. As questões são muito piores. Porque as questões são as perguntas que fazemos a nós próprios apenas porque sabemos que não possuímos a respostas. Não há sim nem não, nem talvez, muito menos logo se vê. Ficam a pairar no ar como o smog de uma cidade poluída, não desaparecem nem dão tréguas.

Off the hook

´(…) It’s bad, loving someone you can’t forgive.’
‘It´s not as bad as loving someone you can’t have,’

Shantaram, Gregory David Roberts

sexta-feira, 1 de abril de 2011