terça-feira, 23 de junho de 2009
Diapasão
Já a vi umas quantas vezes, sentada num banco de madeira no paredão. Ali entre o café da praia da Rata e aquele final do paredão que termina na praia de Cascais. Sentada de guitarra na mão, toca e canta com o saco do instrumento aberto no chão em frente, recipiente improvisado para trocos e esmolas. Tem cara de estrangeira, o cabelo à foda-se faz-me lembrar o Bono, futebolistas e cantores pimba: relativamente curto no cocuruto, a escorrer de comprido atrás, a morrer no início das costas. Os óculos escuros muito redondos, estilo hippie ou John Lennon. Talvez por isso cante o Lucy in the sky with diamonds. Quando passo no sentido de Cascais, ouço três ou quatro ou cinco vezes o refrão. Reparo que não está confortável naquele tom, está a esforçar demasiado a voz porque o tom é demasiado agudo para ela e que tem dificuldade em fazer acordes com travessão. Pouco depois, após subir a rampa, descer as escadas ao lado do Salamandra que cheiram sempre a mijo, passar pela praia, seguir para o sentido contrário, contornar a rocha e passar pelo restaurante, estou de novo a regressar à recta e volta-me ao ouvido o refrão. Parece um disco riscado, encalhada ad eternum naquelas palavras. A voz ainda mais esforçada que momentos antes, de certeza que está a ficar cansada. E há ali um momento. Um curto momento. Curtíssimo. Em que me vejo a abrandar o passo em direcção àquele banco, a interromper-lhe o refrão e a tentar explicar-lhe que só ganharia em tocar aquela música meio tom ou um tom abaixo porque está a ficar esganiçada. E que, já que estamos nisto, deveria tocar mais acordes abertos porque está a mandar algumas marteladas nos travessões. Mas sigo, prossigo, a voz esganiçada e o Lucy in the sky with diamonds, o ar estrangeiro, os óculos e o cabelo ficam para trás, morrem nas minhas costas à medida que passo o sítio onde estão os aparelhos de ginástica e começa aquela curva grande que só acaba perto do Tamariz.
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