Na sua autobiografia - intitulada Hitch-22 -, Christopher Hitchens fala da experiência de ser um britânico nos EUA, assim um pouco à semelhança do célebre tema de Sting. Um dos aspectos que realça são as diferenças na utilização da língua inglesa. Refere, inclusivamente - e este é um fenómeno que, segundo consta, abrange outros anglo-falantes não-americanos em terras do tio Sam - que a sua sonoridade britânica teria sido, em algumas circunstâncias, uma boa alavanca para conquistas junto do sexo oposto. Neste contexto, relata o episódio de uma jovem, que se terá referido ao seu "sotaque"; Hitchens respondeu-lhe, de imediato, que seguramente ele não tinha sotaque, mas sim o contrário: ela é que tinha.
Este episódio, por sua vez, fez-me recordar um outro muito semelhante, protagonizado por José Saramago: no decurso de uma entrevista, uma jornalista brasileira disse-lhe que tinha dificuldade em perceber o seu "sotaque", ao que Saramago de imediato retorquiu, com o tom seco e austero que o caracterizava, que "sotaque tem a senhora". O escritor português não avançou, contudo, se, na sua experiência, o sotaque, perdão, o português de Portugal granjeia qualquer tipo de vantagem junto do sexo feminino luso-falante doutras latitudes.
A noção da ausência de sotaque no país de origem da língua, para além de soar um certo toque de sobranceria, acarreta, em si, algumas inconsistências. Desde logo porque não permite categorizar os diferentes sotaques dentro do próprio país de origem. Das duas uma: ou nenhum é sotaque - o que é chato porque eu ia jurar que já ouvi o sotaque do Porto, açoreano, madeirense, alentejano, algarvio, das Beiras, de Setúbal, de Viseu, etc.; ou são todos excepto um, que é o não-sotaque, e em cujo caso é necessário definir qual é exactamente este último.
Costuma dizer-se que o português falado na região de Coimbra é o mais correcto ou mais aproximado do padrão da língua. Mas, acaso este fosse o não-sotaque, teríamos outro problema: do ponto de vista da origem - a lógica aparentemente subjacente aos comentários de Hitchens e Saramago - Coimbra não fará sentido. Certamente teríamos que rumar mais a norte.
A minha sugestão simplificadora é aceitar que todos temos sotaque. Embora um(ns) coincida(m) com a forma como a língua se fala numa parte do território onde originariamente se formou.
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