(Publicado originalmente aqui)
Na entrada para a palavra “Bisonte” no dicionário Priberam da língua portuguesa lê-se “género de grandes bovídeos selvagens, caracterizados pela bossa do pescoço e pelo grande colar de pele lanosa.”. Já TRiSoNTe – e escrito assim, isto é, as consoantes maiúsculas e as vogais minúsculas – não consta daquele dicionário (nem de qualquer outro, tanto quanto sei), é uma ilustre desconhecida, sem aplicação prática para lá da designação desta banda que deu um valente pontapé de saída à 12ª edição do Somersby Out Jazz, no final de tarde do primeiro domingo de Maio, nos jardins da Torre de Belém.
Estará a sua origem associada aos três membros que formam este trio (passo o pleonasmo)? Ricardo Barriga (guitarra) e Gonçalo Prazeres (saxofone alto e barítono) são os mentores, materiais e espirituais, deste projecto que, talvez por esta criação a quatro mãos (mais seis cordas e não sei quantas (23?) chaves), pudesse encontrar em BiSoNTe – e apesar da definição supra-mencionada – uma designação mais apropriada, ao mesmo tempo que exclui, por completo, a possibilidade de uNiSoNTe. Inicialmente, a estes dois mentores juntaram-se Miguel Cordeiro (teclados) e Rui Pereira (bateria). No entanto, seria com Luís Candeias (bateria) que a composição da formação acabaria por se consolidar e permanecer durante largos anos. E, então, acrescento eu, TRiSoNTe passou definitivamente a ser uma designação por demais apropriada.
Antes de escrever mais uma palavra que seja, tenho que fazer uma séria declaração de interesses: sou amigo do Ricardo Barriga há muitos e muitos anos, desde que me lembro de existir, pelo que tudo o que escrever nesta crónica deverá ser visto à luz da minha potencial imparcialidade ou enviesamento.
Posto isto, a primeira observação, inevitável e totalmente incontornável, que aqui coloco, na forma interrogativa, é a seguinte: cadê o (contra)baixo? A ausência deste último é uma das características mais salientes do trio (mesmo quando foram quarteto) e que os aproxima de algumas das referências que serviram de inspiração para o projecto, como é o caso dos Human Feel de Chris Speed, Kurt Rosenwinkel, Andrew D’Angelo e Jim Black. A mim, uma formação deste género imediatamente, e quase inevitavelmente, remete para os Morphine cujo baixo de Mark Sandman, no fundo, não fazia as vezes de um baixo, dado o emprego bastante sui generis do mesmo, e que casava na perfeição com o som do saxofone barítono.
Após o primeiro disco, “Monter’s Lullaby”, editado em 2013, os TRiSoNTe têm na calha, para breve, o lançamento de um segundo, “Emergency Exit”, alguns temas dos quais a banda aproveitou para apresentar no concerto. Mas o que é mais relevante neste novo trabalho de estúdio é a alteração estrutural à dinâmica da banda que acabou por acarretar. E o elemento curioso dessa alteração é que surgiu de forma totalmente circunstancial: Candeias sugeriu experimentar a inclusão de baixo na gravação (manejado pelo próprio), algo que não estava contemplado inicialmente. O resultado foi do agrado de todos, o que explica a razão de termos quatro e não três elementos em palco nos jardins da Torre de Belém – António Quintino, no baixo eléctrico, é a mais recente aquisição do trio que, por isso, regressou ao formato de quarteto (o que remete para a possibilidade de considerar a evolução da designação para TeTRaSoNTe ou QuaDRiSoNTe).
Regressemos novamente aos jardins, cheios de lisboetas domingueiros, espraiados na relva, de copo na mão para combater o calor, alguns troncos nús e bikinis, e com o som de fundo do comboio da linha de Cascais. Com uma pontualidade britânica, às 17h, são atingidos pela melodia lenta e pesada, apoiada numa linha de baixo enrolada e quase trôpega, de “99 ways to get an orgasm”, tema com que a banda abre as (literais) hostilidades e mostra, sem rodeios, ao que vem.
Os cavalheiros deste pouco ortodoxo power trio virado quarteto não são uns meninos quaisquer – muito pelo contrário, são aquilo a que custamos chamar malta da pesada. A música desta banda está repleta da atitude e da agressividade do rock, da liberdade do free, com muito noise e dissonâncias à mistura e, claro, a improvisação do jazz. Os riffs são poderosos, com imensa convicção, seja saídos da guitarra distorcida e saturada de Barriga, seja do saxofone de Prazeres, ou dos dois instrumentos em simultâneo, tocados, como se costuma dizer, na batata.
Quando a tarefa de controlar o riff crú e poderoso é de Barriga, por vezes, é criado um contraste que faz sobressair melodias de notas longas e suaves, expostas por Prazeres. O segundo tema da tarde, “Freedy K will kill me if I stay”, um título certamente familiar para os fãs dos vários pesadelos em Elm Street, é um exemplo disso mesmo. Quando a mesma tarefa é partilhada, ganha uma cor e uma presença quase inumanas, como no terceiro tema da tarde e primeiro do novo álbum, “Cangalhada”: após uma curta introdução de guitarra que lembra a utilização de cordas soltas à la Bill Frisell, explode num riff envolvente e contagiante. Por esta altura, abalroado pelo que lhe entra nos ouvidos e faz vibrar os tímpanos, o público já acordou da letargia mole, assobia e bate palmas.
As cordas do baixo de Quintino só se deixam tocar com palheta, para garantir o ataque mais vincado de cada nota, acrescentando uma intensidade adicional e um som mais crispy. Das baquetas de Candeias raras vezes (se é que uma sequer) sai um simples e elementar swing, daqueles tradicionais. Mas sai tudo o resto, possível e imaginário, em catadupa, da subtileza das escovas na tarola a um pedal de bombo extremamente veloz, a fazer lembrar bateristas de heavy metal.
A banda só dá algum descanso ao público em temas como “Saída de emergência” e “I always tell the truth (even when I lie)” – neste último, Quintino e Candeias trocam de posições e instrumentos –, assentes numa linha de guitarra simples e eficaz, que abre as portas a um solo de Prazeres de frases curtas e soltas, com recurso a delay e outros efeitos – aliás, a utilização de variados efeitos é também uma forte marca, sortilégios que normalmente saem mais da cartola dos guitarristas mas que, neste caso, com maior ou menor intensidade, saem praticamente da cartola de todos. “Ciclo vicioso” também propicia um momento de alguma acalmia, um tema com um cariz mais melancólico e introspectivo.
A Gonçalo Prazeres cabe a responsabilidade de dizer umas palavras e fá-lo a seguir ao tema “Escanifobético”, aproveitando a deixa para dizer que é “a música que define o nosso som” e, talvez involuntariamente, deixando um sério recado para os músicos e bandas que rejeitam etiquetas. Não chegaria ao ponto de afirmar que a regra dos TRiSoNTe é não ter regras, embora sinta que fazem e tocam uma música livre do jugo de pelo menos umas quantas. De uma forma menos espartilhada ou agrilhoada e que acima de tudo garante o que é verdadeiramente fundamental: não são só os pratos da bateria de Candeias que se fazem ouvir, mas também os pratos tilintantes de um serviço da Vista Alegre, enquanto a banda, como se costuma dizer, parte a louça toda. E, acima de tudo, se diverte a fazê-lo, como uma grande desbunda.
O set aproxima-se do fim com a melodia simples e eficaz de “Push”, outro tema novo, em que a guitarra e saxofone se vão apoiando mutuamente, numa dança que permite a um e outro ter o espaço para improvisação sem que o tema perca solidez. O final, sem antes Prazeres pegar novamente no microfone para rapidamente apresentar os elementos da banda, fica por conta de “(title)”, do anterior álbum.
Termino por dizer que são vários os Prazeres (99 formas de ter orgasmos musicais?) ao ouvir esta Barriga(da) de música que quase enCandeia(s) (humildes desculpas por não conseguir enquadrar Quintino neste trocadilho). E aproveito para também eu deixar (voluntariamente) um recado: está na altura de ver estes quatro noutros fóruns, cuja programação se centra neste tipo de música, tais como a Culturgest ou o Jazz em Agosto.
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