(Publicado originalmente aqui)
À entrada do Grande Auditório do CCB, em mais do que um sítio, lê-se o seguinte anúncio, numa folha A4 deitada, como que apoiada numa estante de música: “Por motivos alheios ao CCB, que se prendem com atrasos das companhias aéreas, o concerto desta noite será realizado em dueto: Jason Moran, piano e Nasheet Waits, bateria. Agradecemos a sua compreensão.”. A Bandwagon de Jason Moran não teve outro remédio senão actuar sem o contrabaixo/baixo eléctrico de Tarus Mateen, desfalcada à semelhança da plateia, também ela a meio gás.
Há uma certa argumentação, por vezes expendida pelos entendidos do futebol, que defende a dificuldade que algumas equipas têm em defrontar adversários em inferioridade numérica, resultante de expulsões. Trata-se de uma lógica – que, confesso, sempre me pareceu oriunda de um batatal – que assenta essencialmente em considerações de natureza psicológica dos jogadores em maioria: de um ponto de vista estritamente objectivo e racional, bem como técnico-táctico, ou mesmo aritmético-matemático, ou qualquer outro plano, não me parece que nenhuma equipa queira iniciar uma partida com menos jogadores (ou forçar cartões vermelhos) para, desta forma, adquirir uma determinada e vastamente hipotética vantagem. Se não me equivoco nas regras, o número mínimo de jogadores é 7, aproximadamente 64%, arredondado por excesso, do total de 11. A Bandwagon roçou este limiar, com apenas cerca de 67% (também arredondado por excesso) dos membros; outro membro a menos e quebraria as regras.
Na primeira vez que se dirige ao público, com o microfone depositado sobre o lado direito da estrutura do piano, Jason Moran faz a (necessariamente curta) apresentação da banda – algo que me atrevo a parafrasear como, simplesmente, “Nasheet Waits on drums!”. É uma apresentação que assenta bem a Moran, que não parece ser homem de muitas palavras em palco, mas sim de muitas notas. (O mesmo homem que usa uma pouco usual disposição do piano: toca praticamente de costas para o público, com o piano aí pelas cinco horas e meia do ponteiro do relógio.) O que não invalida que não diga coisas relevantes e com o devido impacto, tal costuma ser o apanágio dos pouco prolixos, quando falam dizem mesmo coisas. Por exemplo, o segundo objectivo desta primeira intervenção foi o de dedicar o concerto a Cecil Taylor, o pianista e poeta norte-americano, recentemente falecido, no início de Abril.
Esta é uma característica central de Moran: um assinalável respeito (mais até, uma reverência) pela tradição e pelos nomes que, antes de si, perscrutaram os caminhos do jazz, da música (círculo mais abrangente) e, mesmo até, da arte (círculo ainda mais abrangente). Uma marca que se nota não só na música mas também nas próprias iniciativas em que participa que, por vezes, englobam parcerias com outras disciplinas, como o cinema e as artes plásticas. Já para não falar nos documentários e homenagens a figuras como Thelonious Monk, talvez uma das que mais respeito lhe merecem.
Aqui estamos apenas (apenas??) cingidos ao contexto da música, através de cinco longos temas, encore incluído, que constituem o set de pouco mais de hora e meia. Longos não é um adjectivo escolhido apenas pela duração. Porque, para além da tal duração (lá está, longa), todos eles englobam, encerram em si um sem número de elementos, de ambientes, de caminhos. Uma espécie de viagem, uma epopeia por uma série de caminhos musicais diferentes.
O primeiro tema curiosamente começa sem começar, com o bastante audível esfregar de mãos de Waits antes de qualquer nota se fazer ouvir. O início é um único acorde soturno e sombrio, repetido tantas e tantas vezes com o acompanhamento das escovas na bateria, que nos transmite uma atmosfera quase lúgubre, um anticlímax pouco ortodoxo para o início de um espectáculo. Depois, progressivamente, através de um solo repleto de repetições insistentes, melódicas e rítmicas, a peça ganha um estado de espírito agitado, frenético, quase desconexo, a remeter para uma estética de free jazz. Pelo meio, devo dizer que ainda ouvi, aqui e ali, elementos de blues a querer espreitar.
Já o segundo tema começa por nos trazer algum swing (será jazz?), mas também um pouco de ragtime, que talvez sirva de ponte para o momento em que Moran, qual Cristo na cruz, estica ambos os braços para atingir, simultaneamente, os registos mais graves e agudos do piano. Permanece em ambas as regiões extremas do instrumento, uma espécie de eixo que une os pólos norte e sul, até se decidir por uma sequência de glissandos (ou será “glissandi”?), com ambas as mãos a percorrerem as teclas mais à esquerda do teclado. Termina este exercício e dá espaço total ao baterista, que arranca um solo conducente ao trecho final do tema.
Da segunda vez que se dirige ao público, entre o segundo e o terceiro temas (se a memória não me atraiçoa, na mesma altura em que ambos retiram os respectivos casacos), diz-nos (informa-nos) que ouvimos não só música do homenageado da noite, Cecil Taylor, mas também de outros como Jaky Byard, compositor e executante de múltiplos instrumentos. E, de seguida, limita-se a agradecer: há cerca de 16, 17 (ainda não chega a 20, confirma com Waits) anos que se deslocam a Portugal e, de cada vez que o fazem, encontram sempre um público interessado e receptivo à sua música. “Thank you for listening”.
Ouvimos (uma tarefa na qual, ao que parece, somos exímios) ainda a outros momentos de destaque – por exemplo, quando Moran fica sozinho em palco no início do terceiro tema – mas é o final do quarto tema, antes da saída de palco para a reentrada do encore, um quase despique entre os dois músicos de grande tensão e intensidade, que gera a reacção mais notória do público.
Para além de música, gosto de palavras e, para além de palavras, ou associado a elas, também gosto de jogos de palavras. Neste caso, o nome deste trio, que, ficámos a saber, também funciona em duo, também funcionou: a Bandwagon de Jason Moran fez, como diriam os seus conterrâneos, o público “jump on the bandwagon”. Com “b” maiúsculo ou minúsculo, tanto faz.
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