(Texto publicado originalmente aqui no Canela e Hortelã)
Dizer que todos os percursos de vida são únicos é um lugar-comum que, por definição, é de fácil emprego e não tem muito valor acrescentado. No caso de Arturo Sandóval assenta que nem uma luva. Mais, o percurso de vida do trompetista, na actual conjuntura, poderá ser também irrepetível, por razões que lhe são alheias: a recente reaproximação diplomática entre Cuba e os Estados Unidos, respectivamente, país onde Sandoval nasceu e para o qual desertou.
Decorria o ano de 1990 quando Sandoval interrompeu uma digressão europeia com Dizzie Gillespie, seu mentor, para desertar para os Estados Unidos, país que lhe viria a conferir a cidadania em 1999. No ano seguinte, a vida de Arturo deu, literalmente, um filme. Realizado e protagonizado por outro americano-cubano, Andy Garcia, “For Love and Country” relata a história da vida do trompetista.
Anos volvidos, dez (dez!!) Grammys depois, 6 Billboard Awars, um Emmy e a Presidential Medal of Freedom com que Barack Obama o galardoou em 2013, Sandoval esteve ontem de regresso ao Centro Cultural de Belém, depois de por aqui ter passado no ano passado.
O concerto arranca com um blues num tempo rápido, e de imediato se ouve o som intenso e estridente que sai do trompete de Sandoval, que enche o Grande Auditório do Centro Cultural de Belém. Sandoval está irrequieto, faz sinais aos outros músicos, sai de palco no solo do teclista para regressar e ajustar os microfones overhead da bateria, a tempo do baterista iniciar uma sucessão de chases, alternando quatro compassos de solo com o percussionista.
No final do tema, Sandoval dá as boas-vindas ao público, diz-nos que estão “muy contentos de estar aqui” e retoma o cocktail de ritmos e batidas que caracterizou a noite: uma série de ritmos latinos e caribenhos, a espaços sente-se o funk que, aliado ao som dos inúmeros teclados em palco, nos recorda um Herbie Hancock electrónico. Tudo isto com o swing do jazz sempre a espreitar, sempre presente.
E, daí para a frente, o músico cubano começa a tirar coelhos da cartola, uns atrás dos outros. Se no trompete já sabemos do que é capaz – embora as notas ridiculamente agudas que consegue tirar do instrumento não deixem de surpreender o público, que reage ruidosamente à mesma frase em sucessivas oitavas, cada vez mais altas – há muito mais para apreciar.
Logo ao segundo tema começa a mostrar-nos o que sabe fazer com as cordas vocais, cantando. Mas é um pouco mais à frente que inicia um solo – o segundo nesse mesmo tema depois de ter solado ao trompete – com uma harpa de boca, que acaba por desembocar num scat frenético. Imita o som de um trompete, mexendo os dedos no microfone como se tivesse os pistões daquele instrumento. Imita também o som do contrabaixo, tocado com os dedos e com arco, o som da bateria. E depois envereda por sons humanos, conversas, gritos, risos e risadas, e é também assim que, a certa altura, o público reage.
E ainda veio o piano. Após expulsar o pianista da frente das teclas pretas e brancas, inicia uma balada sozinho. Depois de uma longa introdução, a balada transforma-se, ganha ritmo e o percussionista começa a acompanhar, inicialmente com maracas, depois num despique de tarola e cow bell que foi um dos momentos altos da noite.
Outro dos momentos marcantes da noite foi a homenagem que fez a Dizzie Gilliespie, a quem Sandoval se diz “eternamente agradecido”, com o tema “Dear Dizz (every day I think of you)”, assim como a versão de “Joy Spring” de Clifford Brown.
Para o encore, Sandoval deixou o “Night in Tunisia”, que acaba por ser, embora apenas implicitamente, a segunda homenagem da noite a Dizzie Gillespie. Depois de os solos terem rodado pelos elementos da banda, Sandoval fica sozinho, à capela. Põe em uso toda extensão da sua longa tessitura, cobrindo dos registos mais graves aos registos mais agudos. Faz truques como o growl, rosnando com o trompete, até a banda se lhe juntar novamente para, com uma sonoridade árabe, conduzir o concerto até ao fim.
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