Quando era miúdo gostava de ler os livros de banda desenhada do Tio Patinhas. A minha mãe torcia o nariz: dizia que aquilo não era português e achava que podia comprometer a minha aprendizagem da língua. Pese embora a validade desse argumento, secretamente, acho que era também a vontade de que lesse qualquer coisa mais pedagógica do que aquelas aventuras de patos falantes. Para mim, claro, a questão da linguagem não representava nenhum problema. Bastava usar um sotaque abrasileirado de cada vez que passava os olhos pelos balões das falas dos personagens. Aliás, se não o fizesse então aí sim, não me parecia que aquilo que estava escrito fizesse grande sentido.
Até que surgiram as versões traduzidas. Português de Portugal, lembro-me de ouvir nos anúncios que davam na televisão, certamente dirigidos a mães como a minha. Os livros passavam a ter uma risca com as nacionais cores do verde e do vermelho no canto superior direito para distinguir das antigas versões. E aí o argumento transatlântico caiu por terra e a leitura mental deixou de ser feita com sotaque brasuca. E devorei ainda mais livros do que os já devorava. Lembro-me de comprar um livro sempre que passava num quiosque perto das Palmeiras a caminho das aulas de ténis em Oeiras.
Esta história ocorre-me agora sempre que leio jornais que já adoptaram o novo acordo ortográfico, como o Expresso, por exemplo. Não consigo ler o Expresso com o meu sotaque nasalado de português lisboeta, tenho que o ler usando uma imitação de sotaque brasileiro porque faltam lá uma série de letras como o “c” numa série de palavras. Não é tão gritante como eram os livros originais do Patinhas em que toda a gente se tratava por “você” e os pronomes reflexivos dos verbos vinham sempre no sítio errado, claro. Mas também não traduz em letras a forma como oiço as pessoas falar ali para os lados do Marquês ou de Benfica. Assim como, para o mesmo, qualquer sítio entre Bragança e Faro.
Porque, por muito que o vendam de outra forma, parece-me sempre uma abrasileiração do português.
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