domingo, 28 de fevereiro de 2010

I'm a poor lonesome cowboy

A ter impacto em alguma coisa, a possibilidade dos homossexuais se casarem fará a taxa de divórcio diminuir. Porque os casamentos gay são, por definição, casamentos felizes.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Borboleta

Quando o assaltante o encostou à parede com uma navalha em riste, um pensamento heróico de resistência e possível retaliação passou-lhe pela cabeça. Felizmente, foi muito passageiro. Enquanto rendia a carteira e o telemóvel e vasculhava os bolsos à procura de eventuais valores esquecidos, lembrou-se da caneta que trazia no bolso da camisa. E então voltaram-lhe as ideias de bravura quando se lembrou da expressão “the pen is mightier than the sword”.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Cão que ladra

A cadela nunca descia senão o primeiro metro da rampa de acesso à garagem, ficava lá ao longe a ladrar à distância. Um ladrar irritante. Estávamos à porta, esperávamos os outros que ainda não tinham chegado e ela ladrava-nos. Pequenina, uma rafeira acanichada, branca. Os donos chamavam-lhe Princesa, o que só acentuava a vontade que tínhamos de a achar insuportável.

De repente, a ideia. Calaríamos a cadela calando-nos a nós próprios. E então ficámos silenciosos, encostados à parede de cimento. A cadela ladrou mais um pouco e depois parou, mais ou menos quando começou a estranhar o nosso silêncio imóvel. Rodou ligeiramente a cabeça, aguçou os ouvidos, as orelhas fizeram um movimento curioso e começou a fazer um ruído novo, um ladrar diferente entrecortado com uns quantos uivos, quase como se nos acusasse de estar a gozar com ela.

Não aguentámos. Largámos uns risos meio abafados, meio por abafar e, assim que os ouviu, de imediato a Princesa largou a ladrar furiosamente, tal e qual como no início. Tentámos outra vez. Vá lá, agora sem rir, ela há-de se fartar e vai-se embora. Mas, passados uns instantes daquele ladrar alternativo e curioso, novamente um de nós rebentava e o plano do silêncio ia por água abaixo.

E foi então que surgiu a ideia da estratégia inversa: se não a conseguimos calar com silêncio, vamos calá-la com barulho. Retirámos do interior da garagem o amplificador. Posicionado de frente para o bicho. Põe os agudos no máximo que os cães não gostam. E, claro, o volume nos píncaros. Depois, foi só tocar alguns acordes com a força dos duzentos watts que os dois speakers soltavam.

O som distorcido e ensurdecedor não durou mais que alguns segundos. Os acordes cessaram e olhámos todos para o cimo da rampa. A cadela largou dois ou três latidos tímidos e desatou a correr, desapareceu no sentido da entrada da casa. Largámos a rir ruidosamente, como se também nós tivéssemos duzentos watts de potência de som.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O abraço. Agarraste-me de rompante, não estava à espera. Com uma força, os teus braços envolveram-me e pressionaram-me contra ti. Demorei a reagir, não estava à espera, demorei a pôr os meus braços à tua volta. E depois falaste-me. Ao ouvido, por entre o ruído de fundo. Por entre os teus braços cerrados. E aí não tive mesmo reacção. Não estava à espera.

Não estava nada à espera.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Hard Bop

Estamos algures entre os anos 50 e 60. Nos Estados Unidos vivem-se momentos de alguma agitação social decorrentes da luta pela igualdade de direitos dos negros. É neste contexto que surge o hard bop, na Costa Leste, como uma resposta ao cool. É uma afirmação: é a tentativa de voltar a trazer o jazz para os seus verdadeiros criadores. Secções de ritmo mais soltas, às vezes tão soltas como aquilo que se catalogou de “free jazz” – a liberdade conceptual e da estrutura dos temas é uma forma de transpor e proclamar a liberdade social que buscavam.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Cool

Termina a Segunda Guerra Mundial e os Estados Unidos entram numa fase de prosperidade. Este bem-estar contribui para nascimento do cool. Do ponto de vista musical, a nova corrente consubstancia-se num afastamento face à complexidade e elaboração do frenético bebop. Muito mais do que isso, representa também uma alteração social importante, é uma apropriação do estilo por uma classe social diferente: o cool é o jazz dos brancos. Sedeado à beira mar, na Costa Oeste. Os nomes que mais se destacaram são os dos meninos bonitos da Califórnia, muitos deles oriundos da formação clássica.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

O rádio do carro aos berros, na altura não tinha leitor de CDs, só cassetes. Comprei um daqueles apetrechos com formato de cassete – lembras-te? – com um fio preto fininho a sair de um dos lados. Ligava-se a um discman ou a um minidisc e era a música destes últimos que se ouvia nos altifalantes do carro. Aos berros. Lembras-te?

sábado, 20 de fevereiro de 2010

«Em tempos de crise, não é só a Rainha de Inglaterra que anda a precisar de umas aulas de economia. O mesmo pode dizer-se da Justiça portuguesa. Pensávamos já ter visto tudo quando, há pouco tempo, soubemos das centenas de euros gastas para julgar uma idosa por ter roubado um creme de quatro euros que afinal tinha pago. Agora percebemos que ainda não tínhamos visto nada, quando lemos no 24 Horas que um colectivo de três juízes está a empregar o seu dispendioso tempo a julgar um jovem de 18 anos por ter furtado um pacote de amêndoas de Páscoa no valor de dois euros. Igualmente criativa é a cobertura do tema feita pelo 24 Horas que foi ouvir famosos que já tiraram umas coisitas. Por exemplo, aos nove anos o padre Vítor Melícias tirou «dois marmelos do marmeleiro da senhora Maria», que se riu e lhe disse que comesse os que lhe apetecessem. Moral da história: ele deixou-se marmeladas e foi para padre. A senhora Maria devia ser mesmo muito feia…»

Revista Tabú

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

«E então parei de ter receio de que me perseguissem dado que só eu me poderia perseguir, de ter receio de que me espiassem dado que só eu me poderia espiar, de ter receio que me matassem dado que só eu me poderia matar(…)»

A ordem natural das coisas, António Lobo Antunes

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Browse

Os carros a passar. O barulho dos carros a passar. O ruído da deslocação. Da aceleração quando não querem esperar pelo próximo verde, dos travões quando já não vão a tempo. Às vezes, o barulho vem molhado, encharcado da chuva que invadiu o pavimento da avenida. As buzinas. A necessidade que têm de buzinar. Os carros que passam e fazem barulho com a sua deslocação, ainda por cima buzinam.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Se soubesses. A sério. Contar-te seria impossível. Mas poderias saber. Só saber. Seria estranho se soubesses sem te o ter contado. Mas poderias saber. Simplesmente saber. Mesmo que não te tivesse contado tudo, tintim por tintim. Ou apenas uma parte. Não interessa. Queria que soubesses. Mas sem ter que te contar. Era isso. Sem ter que te dizer as coisas, sem ter que te falar sobre isso, sem ter que te contar. E, mesmo assim, que soubesses tudo. Que percebesses, que te apercebesses, que deduzisses. Porque te o dissessem, que te o contassem. Mas não eu.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Acordar

Com o novo acordo ortográfico, o título desta página passa a estar errado.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Coeur

Depois de recuperado dos primeiros problemas cardíacos, os médicos alertaram-no para que procurasse levar uma vida calma, evitar agitações e comoções. E então passou a viver aterrado com a possibilidade de sentir qualquer tipo de emoção.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Schirm

Tinha que me proteger de cada vez que olhava para ti. Como se fosses um sol e eu precisasse daqueles óculos cinzentos e feios que são distribuídos quando se aproxima um eclipse. Para que, sem eles, os meus olhos (e os de outros fascinados) não sejam destruídos por um brilho demasiado intenso mas hipnótico. E por isso é importante fazer a desmistificação. Quando a intensidade é reduzida à sua verdadeira dimensão e, portanto, os óculos ficam na prateleira, então a percepção do brilho é finalmente adequada. E então é só mais um eclipse, daquelas dezenas que vamos ter oportunidade de apreciar no decurso de uma vida.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Dunkel

O teu cabelo. Escuro. Preto. Eu sei que não é preto: pinta-lo. De escuro. Muito escuro. Preto. Acreditas que tenho saudades? Saudades dessa cor, desse preto, escuro. Saudades dessa escuridão do teu cabelo. Que não é preto, sei que o pintas? Acreditas?

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Schüler

Tenho um vizinho – o de cima, acho eu – que está a aprender música. A primeira vez que o ouvi foram os acordes iniciais do Smells Like Teen Spirit numa guitarra meia desafinada. Agora estou a ouvi-lo a treinar escalas. Maiores. Primeiro, simplesmente os sentidos ascendente e descendente. Depois em terceiras: 1º grau, 3º grau, 2º grau, 4º grau, e por aí fora. Vacila um bocadinho quando chega a esta parte, tem que abrandar e não mantém um tempo regular.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Picante

Posso não ter uma refeição feita no frigorífico, posso não ter sopa, posso não ter pão ou manteiga, posso não ter um pacote de leite ou um reles iogurte, posso não ter esparguete ou arroz, posso não ter uma peça de fruta ou uma folha de alface, posso não ter um enlatado que me desenrasque, posso não ter uma porcaria qualquer congelada que rapidamente se ponha no microondas. Mas, dê por onde der, tenho sempre um destes em casa.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Cabine

Se a minha boleia ainda não à porta no momento em que acabava a minha aula e saía, costumava caminhar os poucos passos até à esquina da rua do liceu. Facilitava porque assim escusava de entrar na rua de acesso aos blocos de apartamentos. Na maioria das vezes, pouco tempo depois surgia um carro que fazia de imediato inversão de marcha para seguir no sentido inverso.

Mas também havia os dias, que àquela hora eram noites, em que a boleia demorava. Para tentar apressar o processo e encurtar a espera, por vezes até obviando possíveis esquecimentos, ali estava a cabine telefónica, mesmo na esquina, perto do poste de iluminação pública com um caixote do lixo verde agarrado.

Por vezes estava em muito mau estado: a proximidade do liceu garantia actos de vandalismo regulares. A caixa do telefone arrombada, certamente em busca das moedas, o auscultar partido ou pura e simplesmente arrancado do fio metálico. O próprio caixote do lixo também sofria. Um dia foi incendiado algo dentro dele; derretia numa agonia lenta, o plástico esverdeado escorria e pingava para o chão sujo de calçada.

O problema era a minha falta de fundos. Tinha algures entre os sete e os dez, onze anos e não tinha ainda o hábito de andar com dinheiro. Numa altura em que as simples moedas de dois escudos e cinquenta centavos dariam para uns instantes razoáveis de conversa, nem isso o meu bolso estava em condições de cuspir.

A minha sorte era a falta de tecnologia. Aqueles telefones permitiam que a chamada fosse executada sem moeda. A chamada caia passado pouco tempo assim que a luz cor-de-laranja a exigir dinheiro começava a piscar. Mas era o suficiente para que minha voz fosse entendida e, à la Sozinho em Casa, se lembrassem de mim.