domingo, 26 de abril de 2020

Narrativa

No título da notícia, há uma referência à narrativa oficial do governo chinês ao combate há pandemia. Como é expectável, trata-se da possível discrepância entre a forma demasiado rosada como as autoridades estarão a comunicar o processo e o regresso à normalidade e aquilo que verdadeiramente aconteceu no local.

Há uns tempos, um amigo chamou-me a atenção para o emprego que, hoje em dia, se faz, amiúde, da palavra "narrativa". Da mesma forma que, neste exemplo, o governo chinês tem uma narrativa (que pode ser mais abrangente do que o episódio de combate ao Covid-19), há tantas outras narrativas. A esquerda e a direita têm as suas narrativas, as religiões têm as suas narrativas. Outro exemplo: a narrativa (ou uma das) deste governo PS é que pôs fim à austeridade, algo que é contestado por outros partidos e sensibilidades políticas. Até as pessoas que acreditam que a Terra é plana tem a narrativa delas: acreditam que a Terra é plana.

O termo "narrativa" remete-me, de forma quase automática, para uma carteira de sala de aula, que eu ocupava na pré-adolescência. A disciplina é, naturalmente, português, na altura em que abordámos as particularidades deste tipo de texto, os seus elementos - acção, tempo, personagens, narrador, etc.. Lembro-me (surpreendentemente) relativamente bem da professora desta disciplina: costumava insistir, com alguma veemência, na forma como avaliávamos se o narrador era participante ou não-participante: "entra na história...? Mas bate à bota e pergunta "posso entrar?", é isso?".

Em si, narrar é contar, descrever, relatar algo e esse algo pode ser a realidade. Intuitivamente, reservo o verbo "narrar" para aquelas histórias que os anglo-falantes definem como "stories", para distinguir de History, e que tem um equivalente (horripilante) no novo acordo da língua portuguesa sob a forma de "estórias". Ou seja, associo "narrativa" a ficção. Por isso, parece-me inadequado quando se pretende narrar a realidade: é tratá-la como se fosse uma história (estória).

Há o espaço para a subjectividade da interpretação daquilo que é: será um sucesso ter apenas o número de vítimas mortais registado oficialmente, ou será um desastre termos todos estes falecidos contabilizados? Seguramente haverá uma narrativamente para as posições, assim como inúmeras outras para outras posições intermédias ou mais extremadas. Mas o ponto é esse: mesmo em face do mesmo, é uma posição sobre o que significa.

Donde, como sugestão de resolução deste profundo dilema: se fizer sentido, basta substituir a palavra "narrativa" por "opinião", "teoria" ou "hipótese". Porque, normalmente, não é mais do que isso: é uma forma de ver e interpretar a realidade. Certo que, em alguns casos, estamos claramente no campo daquela ficção das história (estórias): por exemplo, no que concerne à hipótese/teoria/opinião que defende que a Terra é plana. Excluindo esses casos da mais obtusa negação da realidade, a troca parece funcionar bem.

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