sábado, 31 de agosto de 2019

Significado

«Thus it can be seen that mental health is based on a certain degree of tension, the tension between what one has already achieved and what one still ought to accomplish, or the gap between what one is and what one should become. Such a tension is inherent in the human being and therefore is indispensable to mental well-being. We should not, then, be hesitant about challenging man with a potential meaning for him to fulfill. It is only thus that we evoke his will to meaning from its state of latency. I consider it a dangerous misconception of mental hygiene to assume that what man needs in the first place is equilibrium or, as it is called in biology, "homeostasis," i.e., a tensionless state. What man actually needs is not a tensionless state but rather the striving and struggling for a worthwhile goal, a freely chosen task. What he needs is not the discharge of tension at any cost but the call of a potential meaning waiting to be fulfilled by him.»

Man's search for meaning, Victor Frankl

sábado, 17 de agosto de 2019

Costuma estar à boca do metro do Saldanha.

Sentado numa cadeira sem costas, um apoio para o pé esquerdo, toca uma guitarra acústica amplificada, virado para o patamar onde desembocam as escadas. À frente, no chão, está o saco da guitarra, que é utilizado para recolher as moedas que alguns transeuntes vão deixando. De manhã, para apanhar a hora de ponta. E em qualquer altura do ano. No inverno, por vezes usa luvas com os dedos cortados, faz-me confusão como consegue tocar com o frio.

O repertório é variado, já lhe ouvi tocar um pouco de tudo. Vai desde os temas clássicos para guitarra espanhola (uma vez pareceu-me ouvir o concerto de Aranjuez), até ao (incontornável?) Romance, banda sonora do filme Jeux Interdits, passando por uma versão do Yesterday dos Beatles.

Os músicos de rua costumam escolher locais onde as pessoas possam parar para os ver e ouvir. Mesmo os que tocam no interior do túnel do metro, por vezes, acabam envoltos num semicírculo de melómanos. Mas nunca à boca do metro Saldanha: ninguém ali pára para o ouvir tocar. Passam por ele como eu, que ouço um pouco enquanto me aproximo e, depois, me afasto. Mesmo a pequena fracção que abranda ligeiramente para lhe deixar uma moeda - e, às vezes, até mesmo para dizer bom dia - no saco da guitarra não chega a parar.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Serra comum

«Perdi as pernas... Foram-me cortadas... Salvavam-me aí mesmo, na floresta... Fui operada nas condições mais primitivas. Puseram-me na mesa para me operar, e não havia iodo sequer, serraram-me as pernas com uma serra comum, as duas pernas... Puseram-me na mesa, faltava iodo. Foram buscá-lo a outro destacamento, a seis quilómetros, deixando-me sobre a mesa. Sem anestesia. Sem... Em vez de anestesia, uma garrafa de aguardente caseira. Não havia nada, a não ser uma serra comum... De carpinteiro...
(...)
Mais tarde, em Ivanovo e em Tachkent, fizeram quatro reamputações, a gangrena reapareceu quatro vezes. De cada vez, cortavam mais um bocado, e acabou por resultar numa amputação muito alta.»

A guerra não tem rosto de mulher, Svetlana Alexievich

domingo, 11 de agosto de 2019

Descia a Almirante Reis uns quantos passos à minha frente.

Do outro lado da avenida em relação à Igreja dos Anjos. Magro, as calças de ganga velhas ficavam-lhe largas nas pernas e no rabo. Tinha o cabelo escuro e ralo, puxado para trás. Levava um saco de plástico na mão esquerda. De repente, parou e agachou-se perto de uma poça de água, formada no pequena depressão na calçada do passeio. Água da chuva que tinha caído de manhã, escura e suja. Enfiou o braço esquerdo pelas alças do saco para libertar aquela mão e enfiou as duas dentro da poça. Esfregou-as, uma contra a outra. Depois de molhadas, passou-as pela cara. Levantou-se, sacudiu as duas mãos e continuou a descer a avenida.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

A chama purificadora dos Burning Ghosts e os fantasmas que se ouvem a arder

(Publicado originalmente aqui)

Ao meu lado está um grupo de três senhoras de terceira idade, uma observação que poderá, à primeira vista, parecer um trava-línguas mas que, no fundo, apenas pretende retratar a força gravitacional do jazz: aquelas três senhoras, que a um par de olhos mais estereotipados pareceriam (exclusivamente) pertencer ao público-alvo dos concertos do Grande Auditório e não a este anfiteatro ao ar livre, olham para o panfleto com o programa completo do Jazz em Agosto para decidir a que outros concertos assistir. Lá à frente, um casal jovem passa em frente ao palco à procura de um lugar: ela veste um casaco preto com a inscrição “we not me”, em letras garrafais brancas nas mangas, e só me apetece corrigir para “we not I”.

A intensidade das luzes diminui, a voz-off feminina, dá-nos as boas-vindas, pede-nos para desligar o telemóvel e alerta-nos para a interdição de registos áudio e vídeo. Primeiro em português e depois em inglês. E os Burning Ghosts surgem das escadas lá ao fundo, atrás do palco, entre o verde da relva e das folhas das árvores que dançam ao sabor do vento irrequieto da noite. Não perdem tempo, vão directos ao assunto, ainda o público não acabou a salva de palmas inicial, repleta de excitação, e já o baterista martela furiosamente nos instrumentos à sua frente, enquanto os restantes se instalam. Pouco depois, guitarra, baixo e trompete juntam-se, tocam uma linha melódica frenética em uníssono.

Findo o primeiro tema, Daniel Rosenboom, o trompetista, agradece ao público e à Fundação Calouste Gulbenkian pelo convite para estar presente no Jazz em Agosto e apresenta os restantes membros da banda: Jake Vossler na guitarra, Richard Giddens no contrabaixo e Aaron McLendon na bateria. De seguida, faz uma breve alusão (um aviso?) ao “theme of resistance” subjacente à música deste quarteto, que pretende ser simultaneamente um veículo de protesto e de unidade, em particular no actual momento da “American political arena” – esta vertente de carga política é, aliás, frisada na badana de cartão que acompanha o CD que comprei à saída: “a politically motivated quartet at the forefront of the jazz-metal underground”. A intervenção oral termina com anúncio de que o próximo tema se chama “Drowning on the high ground” e é dedicado ao contrabaixista Charlie Haden, falecido em 2014, e que é uma referência dos quatro.

“Revolution” é um dos temas mais marcantes da noite. Junta na perfeição dos elementos-chave deste quarteto: por um lado, o recurso à música como forma de expressão e, no limite, arma política (ou mesmo guerriha), resistência e contestação, uma característica que, de imediato, remete para bandas como os Rage Against the Machine; por outro lado, a fusão dos elementos de jazz com o heavy metal. Por esta altura, Vossler já pegou e colocou às costas a Flying V que figurava proeminentemente no suporte ainda os músicos não tinha subido ao palco, impacientemente à espera do seu momento para intervir. A guitarra parece afinada num registo mais grave (barítono, talvez), tem um som cru e saturado, envolvente e cheio. A própria linguagem corporal de Vossler remete para o metal: a páginas tantas, coloca o pé em cima do monitor enquanto rasga power chords na guitarra com formato em V, pelo meio ouvem-se os harmónicos que soltam quando abafa ligeiramente as cordas com a mão que palheta. Termina o tema virado para o amplificador, gerando um feedback controlado, tal como Giddens no contrabaixo.

É assim que os Burning Ghosts exorcizam os seus demónios, numa espécie de sessão psicanalítica, na qual os fantasmas que os mantêm acordados à noite são evidenciados, expostos, colocados a nu e confrontados. Partilhados com outros que têm, senão os mesmos fantasmas, outros bastante parecidos e que não poupam a ferida aos dedos que impiedosamente perscrutam o sítio onde dói. Em conjunto, submetem esses mesmos fantasmas às chamas purificadoras da música, até que sejam totalmente devorados e carbonizados.

O set termina após uma hora de música. Temos ainda direito a dois encores: primeiro “Free fall” e, depois, “Harbinger”. No final, as minhas três vizinhas de vetusta idade levantam-se, de um salto, e oferecem uma incisiva salva de palmas aos quatro.