segunda-feira, 2 de julho de 2018

Como passei a minha noite com Pat Metheny

(Publicado originalmente aqui)

No trajecto do centro comercial Vasco da Gama até à Sala Tejo, as pessoas tentam abrigar-se dos pingos de chuva. Para além de carregarem chapéus de chuva fora de época, estas vítimas das alterações climáticas têm também alguma dificuldade em perceber a localização da Sala Tejo, um recinto – mais parece um pavilhão desportivo – que não costuma fazer parte dos principais roteiros.

Passa cerca de quinze minutos da hora de início do espectáculo quando, após um pedido para desligarmos o telemóvel, nos pedem “would you please give a warm welcome to Pat Metheny”. E a recepção é, efectivamente, calorosa e o americano de t-shirt às riscas horizontais, calças de ganga pretas, ténis de desporto branquinhos e o eterno cabelo, farto e volumoso, surge sozinho em palco. Se anteriormente o critério etário era o único que não cumpria para parecer um reformado americano a viver na Flórida, agora já nem esse é um impedimento: segundo o que a minha breve consulta online permitiu apurar, o guitarrista está a cerca de um mês e meio de chegar aos 64 anos.

Disse que o americano pisou o palco sozinho mas, agora que penso melhor no assunto, apercebo-me que até estava bastante bem acompanhado. Trazia, na mão, aquela que deverá ser a mais badalada das suas guitarras feitas à medida: com dois braços e cordas que percorrem obliquamente o corpo de dimensão superior à normal, o instrumento – que mais parece o resultado de uma noite de paixão entre uma guitarra, uma cítara e uma harpa – produz uma gama de sons surpreendente que, infelizmente, a acústica da sala não permite desfrutar ao máximo.

Findo este primeiro tema, ainda sentado na cadeira, Metheny espera pelos restantes membros do quarteto, com quem tem tocado nos últimos dois anos: na bateria, o mexicano Antonio Sanchez, uma presença de já há alguns anos a esta parte; a malaia Linda Oh no contrabaixo; e o britânico Gwinlym Simcock no piano. Dado que se encontra a preencher o lugar que durante bastante tempo foi ocupado pelo grande Lyle Mays, não consigo deixar de pensar que Simcock deverá ser ou bastante corajoso ou totalmente inconsciente.

Os primeiros acordes são ainda feitos com a guitarra XPTO, mas só mesmo os primeiros. Assim que os restantes membros arrancam, Metheny levanta-se rapidamente e troca para um instrumento tradicional, que não deixará durante grande desta “evening with Pat Metheny”, um título que parece conter uma proposta indecente.

Este é um dos músicos com maior projecção de um estilo que, normalmente, não tem uma projecção muito grande. Há um público que, apesar de não ter grande afinidade com a música jazz ou de fusão, segue, não obstante, de perto o percurso deste guitarrista. Os números falam por si: vinte Grammys no bolso, uma discografia enorme que rendeu uns bons milhões de vendas, e um dos únicos quatro guitarristas membros do Downbeat Hall of Fame (os outros são Django Reinhardt, Charlie Christian e Wes Montgomery).

Da única vez que se dirige verdadeiramente ao público, uma hora depois de o concerto ter arrancado, apresenta a banda como se fosse um entertainer num combate de boxe
Antooniooo Saaaancheeeez!!
Liiiindaaaa Ooooh!!
Gwiinlyyym Siimcooock!!
com a sua voz quase tão aguda como os registos mais altos da guitarra.

“I feel like I should say goal”, acrescenta em conversa que soa de circunstância, exultando o espírito e orgulho nacionais do público, e aproveitando para mencionar também México e Inglaterra, dirigindo-se ao baterista e pianista, respectivamente, para depois completar com “We’re out”, um “nós” que o junta à contrabaixista.

De seguida, Metheny explica-nos o mote daquele quarteto. Trata-se da revisitação dos temas que marcaram a sua longa carreira. Mas “old tunes but played in a diferente way”, tocadas pela forma que emerge da junção destes músicos, neste momento. E depois vem algo que cimenta a minha convicção que o Metheny só quer mesmo saber da música: alguns seguramente vão identificar os temas mas ele não se vai dar ao trabalho de listá-los porque, pura e simplesmente, não sabe de cor os nomes dos seus temas.

A esta confissão devo adicionar uma outra da minha autoria. Eu próprio estava a travar uma intensa batalha (e a perder rotundamente) com os títulos dos temas. Pelo que, após aquelas palavras, convenientemente conclui que não me deveria martirizar mais e aceitar que, apesar de ter reconhecido vários dos temas, foram muito poucos aqueles aos quais consegui associar um nome. Enfim, dando seguimento à confissão, foram apenas dois e um possível terceiro: o tema lento “Always and forever”, um trecho de “James” que surgiu no medley a solo com que abriu os três encores da noite, e o que me pareceu ser o “Part One” do álbum “The way up”.

Este manifesto desinteresse por elementos totalmente secundários, tais como títulos de músicas (por favor...), está também patente, por exemplo, nos intervalos entre temas (ou na sua ausência). O quarteto nem dá tempo ao público para expressar o seu agrado e contentamento pela música que ouve, com o recurso tradicional que tem ao seu dispor: a rápida cadência dos temas nem sequer permite que a ovação termine espontaneamente, o final da salva de palmas é forçado pelo início do tema seguinte. De facto, não se vislumbra nenhuma razão que justifique esperar pelo fim daquele som das palmas das mãos a bater umas contra as outras.

No total, são quase duas horas e meia de música, encores incluídos. Esta é, aliás, outra das características dos concertos de Metheny: são uma autêntica barrigada. Alguns não têm estômago para tanto, há um conjunto de desistências, pessoas que se encaminham, exaustas, para a saída, através da escuridão da sala. Outros, que não abusaram das entradas ou tomaram sais de fruta, permanecem na cadeira que, por força das horas ali passadas, se tornou desconfortável. Outros, ainda mais deliciados a absorver todas as notas, inclusivamente trauteiam os temas, como um senhor atrás de mim que fez o favor de partilhar efusivamente a sua interpretação dos temas. Confesso que também gostei mas parece-me que este senhor terá uma ainda melhor apreciação que a minha desta noite passada com Pat Metheny.

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