(Publicado originalmente aqui)
Passa um bom quarto de hora das 21h30 quando as luzes da plateia do Grande Auditório da Culturgest se apagam e três vultos de preto surgem do lado esquerdo do palco. Assumem as posições enquanto do público chovem palmas de boas-vindas. Carlos Bica oferece o que me pareceu ser um lá a Daniel Erdmann para que este pudesse afinar o seu saxofone em conformidade. Ao mesmo tempo, DJ Ilvibe – nome artístico de Vincent von Schlippenbach (ora repita três vezes rapidamente) – retirava um vinil da respectiva capa e colocava-o no prato do gira-discos e, em seguida, repetiu o gesto para preparar o segundo gira-discos.
É (altamente) provável que esta seja uma formação totalmente inédita. Um cocktail de instrumentos muito pouco ortodoxo. Uma salada de frutas. Uma salsada a fazer lembrar as misturas de iguarias que se fazem nos brunchs, ao fim-de-semana, que, de outra forma, em qualquer outra refeição, nunca se encontrariam no mesmo prato.
Uma troca de olhares, com um toque de cumplicidade, entre os três pares de olhos e as primeiras notas do primeiro tema fazem-se ouvir. No contrabaixo, Bica vai construindo uma quasi-secção-rítmica, linha sobre linha (sobrepostas, paralelas?), usando um pedal de loop, um efeito que, de certa forma, parece aproximar o seu som, tornado metalizado, do do gira-discos.
O segundo tema tem como título uma referência a um programa de televisão alemão que se debruça sobre crimes não-resolvidos – XY ungelöst. Um dois, um dois três quatro e os músicos arrancam com uma linha melódica forte, carregada de ritmo. No decurso desta música, dedicada a mistérios criminais, assisto pela primeira vez (pelo menos não me recordo de outra circunstância) a um solo de DJ.
Ao longo da hora e meia de música, é interessante atentar à interacção dos diferentes instrumentos. Se observamos amiúde o contrabaixo a cumprir um papel mais próximo do que normalmente associamos à sua função tradicional, por outras vezes também assistimos ao saxofone a fazer as vezes de baixo, deixando Bica solto para tocar melodias nas cordas espessas, algumas vezes de arco em riste. Noutras circunstâncias, o som de uma bateria oriundo dos vinis de DJ Ilvibe funciona como apoio rítmico do trio, enquanto noutras as vozes e o scratch têm um papel mais activo e menos de suporte.
O último tema do set tem um nome que, se o meu francês não me deixa ficar mal, é qualquer coisa como “fais ce que tu veux, mais fais le bien”, findo o qual, no meio das palmas, uma voz feminina com sotaque nortenho, algures atrás de mim, exclama efusivamente “Bica, és o maior”. O trio acabaria ainda por regressar para o tradicional encore.
No final, ao presenciar o agradecimento da praxe – os músicos dirigem-se ao extremo do palco e fazem umas quantas vénias – recordo as palavras de Bica, transcritas no folheto oferecido à entrada para o concerto, que li enquanto esperava pela abertura das portas: “Imagino este trio como três vértices de um triângulo”. Curiosamente, a imagem que me vem à cabeça é bastante mais prosaica e, inclusivamente, parva. Dois tipos altos separados por um mais baixo no meio, todos vestidos de preto ou perto disso, fazem-me lembrar um galheteiro.
Há pouco que possa acrescentar ao que já sabemos de Carlos Bica que, com o seu contrabaixo, percorreu inúmeras estradas, caminhos e trilhos. Mais do que isso, em alguns casos, desbravou ele próprio esses caminhos e trilhos, e este trio é certamente um bom exemplo do papel inovador e explorador do músico português. Por isto, parece-me apropriada a analogia de Bica como uma fonte donde jorra música. A potes.
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