domingo, 4 de março de 2018

Uma fonte de música chamada (Carlos) Bica

(Publicado originalmente aqui)

Passa um bom quarto de hora das 21h30 quando as luzes da plateia do Grande Auditório da Culturgest se apagam e três vultos de preto surgem do lado esquerdo do palco. Assumem as posições enquanto do público chovem palmas de boas-vindas. Carlos Bica oferece o que me pareceu ser um lá a Daniel Erdmann para que este pudesse afinar o seu saxofone em conformidade. Ao mesmo tempo, DJ Ilvibe – nome artístico de Vincent von Schlippenbach (ora repita três vezes rapidamente) – retirava um vinil da respectiva capa e colocava-o no prato do gira-discos e, em seguida, repetiu o gesto para preparar o segundo gira-discos.

É (altamente) provável que esta seja uma formação totalmente inédita. Um cocktail de instrumentos muito pouco ortodoxo. Uma salada de frutas. Uma salsada a fazer lembrar as misturas de iguarias que se fazem nos brunchs, ao fim-de-semana, que, de outra forma, em qualquer outra refeição, nunca se encontrariam no mesmo prato.

Uma troca de olhares, com um toque de cumplicidade, entre os três pares de olhos e as primeiras notas do primeiro tema fazem-se ouvir. No contrabaixo, Bica vai construindo uma quasi-secção-rítmica, linha sobre linha (sobrepostas, paralelas?), usando um pedal de loop, um efeito que, de certa forma, parece aproximar o seu som, tornado metalizado, do do gira-discos.

O segundo tema tem como título uma referência a um programa de televisão alemão que se debruça sobre crimes não-resolvidos – XY ungelöst. Um dois, um dois três quatro e os músicos arrancam com uma linha melódica forte, carregada de ritmo. No decurso desta música, dedicada a mistérios criminais, assisto pela primeira vez (pelo menos não me recordo de outra circunstância) a um solo de DJ.

Ao longo da hora e meia de música, é interessante atentar à interacção dos diferentes instrumentos. Se observamos amiúde o contrabaixo a cumprir um papel mais próximo do que normalmente associamos à sua função tradicional, por outras vezes também assistimos ao saxofone a fazer as vezes de baixo, deixando Bica solto para tocar melodias nas cordas espessas, algumas vezes de arco em riste. Noutras circunstâncias, o som de uma bateria oriundo dos vinis de DJ Ilvibe funciona como apoio rítmico do trio, enquanto noutras as vozes e o scratch têm um papel mais activo e menos de suporte.

O último tema do set tem um nome que, se o meu francês não me deixa ficar mal, é qualquer coisa como “fais ce que tu veux, mais fais le bien”, findo o qual, no meio das palmas, uma voz feminina com sotaque nortenho, algures atrás de mim, exclama efusivamente “Bica, és o maior”. O trio acabaria ainda por regressar para o tradicional encore.

No final, ao presenciar o agradecimento da praxe – os músicos dirigem-se ao extremo do palco e fazem umas quantas vénias – recordo as palavras de Bica, transcritas no folheto oferecido à entrada para o concerto, que li enquanto esperava pela abertura das portas: “Imagino este trio como três vértices de um triângulo”. Curiosamente, a imagem que me vem à cabeça é bastante mais prosaica e, inclusivamente, parva. Dois tipos altos separados por um mais baixo no meio, todos vestidos de preto ou perto disso, fazem-me lembrar um galheteiro.

Há pouco que possa acrescentar ao que já sabemos de Carlos Bica que, com o seu contrabaixo, percorreu inúmeras estradas, caminhos e trilhos. Mais do que isso, em alguns casos, desbravou ele próprio esses caminhos e trilhos, e este trio é certamente um bom exemplo do papel inovador e explorador do músico português. Por isto, parece-me apropriada a analogia de Bica como uma fonte donde jorra música. A potes.

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