(Publicado originalmente aqui)
O auditório ao ar livre da Fundação Calouste Gulbenkian encheu-se uma vez mais para o Jazz em Agosto que, este ano, decorreu entre 28 de Julho e 6 de Agosto. A 34ª edição do festival contou com catorze concertos, numa amálgama das tendências actuais do jazz moderno.
Antes de dizer seja o que for sobre o ali decorreu, as regras da boa crónica, assim como da lisura para com os leitores, levam-me a começar este texto por fazer uma espécie de declaração de interesses. Sou um grande apreciador dos Human Feel e, em particular, do saxofonista Andrew D’Angelo. Por isso, é altamente provável que este texto sobre o Jazz em Agosto de 2017 resulte particularmente enviesado. Altamente provável é, como quem diz, o mais certo. Quase de certeza. Vá, seguramente. Mesmo que não intencionalmente. Pelo que, o melhor é assumir logo à partida o enviesamento e fazê-lo intencionalmente.
Donde, e para ir direito ao assunto, sem rodeios, começo de imediato por abordar o concerto do segundo sábado do festival. E, só depois de o deixar ficar para trás, faço algumas notas sobre outros momentos altos do festival deste ano. Aqui vai.
Human Feel
Não costumo dar muita atenção ao percurso de vida dos artistas. A de Andrew D’Angelo é uma excepção. A história de como, relativamente novo, teve de enfrentar um cancro continua a ser-me marcante. Para os mais interessados, o relato, na primeira pessoa, ainda está no blog do seu site. Que na altura, também serviu para realizar uma petição para angariar o dinheiro necessário para que pudesse receber tratamento médico, uma questão que continua na ordem do dia, numa altura em que o actual presidente americano tenta, por enquanto sem sucesso, revogar a chamada Obamacare.
A noite em que o vi tocar no Village Vanguard – algures em Setembro de 2008 – como convidado da formação de Bill McHenry (como me ajudaram a recordar), que contava com a presença de peso de Paul Motian na bateria (como também me ajudaram a recordar), foi pouco depois da sua recuperação. D’Angelo deu um concerto notável: McHenry deu-lhe imenso espaço para que brilhasse e soltasse toda aquela música visceral que lhe sai das entranhas, com uma energia e uma força que não são comuns.
Andrew D’Angelo pisa o palco do auditório ao ar livre com um boné garrido na cabeça, inúmeras cores que contrastam com a camisa roxa. Kurt Rosenwinkel tem aquela pseudo-boina com pala – à falta de melhor designação – de sempre, imagem de marca. Chris Speed tem um fedora branco, que o faz ganhar mais uns centímetros, relevantes para quem é quase mais pequeno do que o saxofone tenor que empunha.
“Ready?”, ouve-se D’Angelo perguntar quando se vira para trás, para os colegas de palco, após o que a melodia arranca, a duas vozes nos dois saxofones, à qual se junta uma terceira voz do avião da TAP que se faz à pista do aeroporto, convidado assíduo do festival, não falha uma edição que seja.
Uma marca deste quarteto: uma espécie de solos, paradoxalmente, a quatro mãos, com os dois saxofonistas a enveredar por um dado caminho que se cruza e se completa na perfeição. Por seu turno, Rosenwinkel acaba por assumir um papel mais de suporte nesta formação: junta-se a Jim Black numa secção rítmica que tem tanto de atípica como de eficaz.
Para usar uma analogia futebolística, é uma espécie de formação com dois pontas-de-lança – os saxofonistas – e dois centrais – o guitarrista e o baterista –, um dos quais é um lateral adaptado para jogar naquela posição e que pega de estaca – o guitarrista. Mas tal não invalida que este último não tenha os seus momentos debaixo dos holofotes, como no início do terceiro tema, sozinho na grande área em zona de finalização, só encostar. Enfrenta o público sem os companheiros mas sem estar sozinho, munido de uma panóplia de efeitos – alguns dos quais comprados a correr no próprio dia porque parte ficou perdida na viagem – na guitarra e electrónica, num resultado indiscritível, que só é interrompido pela entrada explosiva de D’Angelo.
Volvida uma hora e pouco de música, temas novos – o quarteto editou o álbum Party Favor o ano passado – e alguns retirados do baú, e Chris Speed dirige-se ao público antes do último tema do set. Agradece o convite da organização, a presença do público, o prazer de tocar com os amigos neste beautiful festival, beautiful place, beautiful city, beautiful country, beautiful people, beautiful language e termino aqui, sem aspas, porque não posso, de todo, garantir a precisão da citação.
High Risk
Ao primeiro olhar, o que de imediato me saltou à vista foi o aspecto particularmente jovem e imberbe de dois elementos: o guitarrista Rafiq Bhatia e o baterista Ian Chang. Faz-me pensar em trabalho infantil. Uma pesquisa subsequente veio a revelar que possa eventualmente ter exagerado: o primeiro tem 29 anos; o segundo não consegui descobrir (onde anda a Wikipedia quando precisamos dela?). Não obstante, a qualidade de ambos é invejável para, ainda assim, a pouca idade que têm. Dave Douglas, um repetente com cadastro neste festival, aparece aqui como uma espécie de mentor, um olheiro que soube escolher como se rodear de jovens talentos.
Bhatia traz uma telecaster azul linda, que contrasta com uns chinelos nos pés parecidos aos que uso na natação. A guitarra alimenta dois amplificadores Fender, lado a lado, não sem antes passar por uma panóplia de pedais e efeitos, que terão bastante uso ao longo do concerto. Chang é fininho e tem um aspecto meio desengonçado a tocar, cabeça projectada para a frente, os braços longos. Faz lembrar o Brian Blade não só por isso, mas também porque toca que se desunha.
Esta é uma banda cool, que transpira groove por todos os lados. Uma mistura de jazz com música electrónica, em larga medida conduzida pelo aparelho posicionado em frente a e manuseado pelo baixista Jonathan Maron, mas que tem também um sustento muito grande no enorme conjunto de recursos do baterista (não sei se já vos disse que toca que se desunha). E tem à disposição o som distorcido da tal telecaster azul, que nos enche de sons enquanto o miúdo de 29 anos e chinelos de piscina se contorce, em frases rápidas e notas suspensas, em bends e slides, repleto de efeitos e, aqui e ali, um feedback controlado.
Douglas apresenta a banda ao microfone e termina dizendo “there’s the moon”, “it’s not often we get to play watching the moon”. Mais à frente pedirá desculpa pelo presidente americano, “we have to remind you we didn’t vote for him”, numa altura em que penso que os mais novos nem idade devem ter para votar (têm, estava a exagerar). Termina com palavras repletas de carga política e escolhe, para o encore, um tema que compôs inspirado nos acontecimentos de Ferguson, no Missouri. Para ser inteiramente justo – e pode ser que esteja a sobreavaliá-los para compensar o meu já confessado enviesamento –, este concerto que encerrou o festival foi melhor que o da noite anterior dos Human Feel.
Sélébéyone
Regressemos ao primeiro concerto desta edição, na 6a feira dia 28. Sélébéyone, o nome do novo projecto de Steve Lehman, um termo da língua Wolok, falada no Senegal, Gâmbia e Mauritânia, e que significa “intersecção”. Neste caso – e de acordo com a definição da geometria euclidiana – resulta num ponto, contacto entre as rectas do jazz do frontman da banda e do hip hop de HPrizm e Gaston Bandimic. Uma quase simbiose, onde por vezes, às duas vozes daqueles dois rappers – tanto em inglês como na tal língua impenetrável – se junta a do saxofone de Lehman. Uma voz adicional e pujante, intensa e frenética, insistente e irrequieta.
O saxofonista diz-nos que a primeira vez que esteve no jazz da Gulbenkian foi há 17 anos (quando tinha 21), veio a acompanhar Anthony Braxton. Regressam para o encore, Lehman agradece o entusiasmo do público que pede mais música. Diz-nos que vai contar à mãe e que ela vai estranhar: “they wanted to hear more?!?”. Queríamos, sim senhora, garanto-lhe.
Starlite Motel e Life and Other Transient Storms
Duas palavras para terminar. A primeira para os noruegueses Starlite Motel, um projecto dirigido pelo baterista Gard Nilssen. O único não norueguês desta formação é o americano Jamie Saft, que se senta aos comandos de um Hammond e outros teclados e, aqui e ali, põe no colo a lap guitar que, após um set de uma tema único de cerca de uma hora, enche de uma sonoridade folk o encore com que terminam. Não resisto a fazer um destaque ao baixista desta banda, com um som brutal e incisivo, por vezes obtido com uma baqueta de bateria e, outras, com um conjunto de efeitos, manuseados de joelhos no chão.
A segunda para o projecto da jovem trompetista portuguesa Susana Santos Silva, que subiu ao palco no primeiro dia de Agosto. Life and other transient storms vive bastante da forma como as duas mulheres dos sopros – para além de Susana, Lotte Anker nos saxofones – tocam as suas melodias entrecruzadas e se deixam acompanhar e suportar pelos restantes membros, num tema único que cobre o set. Há uma quase componente onírica, pontilhada por elementos como aquela espécie de trinado, feito com a flauta, que deu início ao encore único. Houve uma baixa na formação: o pianista Sten Sandell foi impossibilitado de viajar até Lisboa por doença, mas foi devidamente substituído por Rodrigo Pinheiro.
E aqui ficam algumas impressões do Jazz em Agosto de 2017. Terminado mais uma edição desta festival referência, resta esperar pela edição do próximo ano.
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