sábado, 30 de julho de 2016

O semi está atrelado

Um semi-sólido é qualquer coisa que fica entre os estados sólido e o líquido. Será que semi-líquido poderia ser utilizado para designar a mesma coisa? Ou seria algo entre os estados líquido e gasoso? Já semi-gasoso só poderia referir-se a este último caso - é como semi-sólido, só funciona num sentido. O líquido, porque está no meio (virtude?), suscita todas estas dúvidas. A propósito, num mundo dominado pelo semi-frio, já era tempo de um semi-quente.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Verdade subjectiva

Fala-se na verdade objectiva dos factos e eu tenho dificuldade em perceber o que significa. Há verdade subjectiva? A minha, a tua, a vossa, a deles? E pode extrair-se uma verdade não objectiva de factos?

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Sinais interiores de riqueza

«A propósito de sinais interiores de riqueza a semana passada, na consulta do Hospital Miguel Bombarda, vi uma mulher nova, de quarenta anos: nasceu-lhe um caroço no peito e o médico não a quis operar porque a doença já lhe atingira os ossos. Quimioterapia. Uma mulher bonita, inteligente. Disse-me:
- Ainda gostava de viver mais algum tempo
e vai morrer daqui a nada. Depois sorriu e perguntou
- Vou ficar melhor, não acha?
ela sabia que não e sabia que eu sabia que não
- Claro que melhora
disse eu
- Está linda sabe?
- Toda a gente me diz isso agora. Faço quarenta e um no mês que vem.»

Livro de crónicas, António Lobo Antunes

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Passion and warfare no CCB: sabemos donde vem, só falta saber para onde Steve Vai.

À entrada do Grande Auditório do CCB há uma indicação de que o concerto não é aconselhado a epilépticos. Pouco depois, já dentro da sala de espectáculo, reparo que o palco foi recuado, três filas adicionais de plateia foram adicionadas nesse espaço para fãs mais ferrenhos. Reparo também que parece haver uma dose reforçada do sistema de som, que se nota com a música de ambiente e quando os roadies fazem testes à bateria e o kick do bombo quase manda a sala abaixo (julgo que foi a primeira vez que saí do CCB com os ouvidos a zumbir).


Steve Vai foi discípulo de Joe Satriani, que teve outros notáveis alunos, como Kirk Hammett dos Metallica. Com ele aprendeu vários aspectos da técnica e do virtuosismo das 6 cordas da guitarra. Mas resumi-lo apenas ao virtuosismo é insuficiente: a criatividade do seu repertório é impressionante num género onde é relativamente difícil conseguir constantemente inovar. Em alguns casos, parecem mais experiências laboratoriais do uso (e abuso) das 6 cordas da guitarra, como em vários temas do álbum Flexable em que, desde imitar extraterrestres, até dobrar o discurso de uma senhora, e até à “The attitude song”, cheia (perdoem-me o pleonasmo) de atitude, está lá de tudo. E é depois de fazer este álbum que Vai se fecha no estúdio a produzir outra obra de uma quase engenharia musical, para a qual o guitarrista tentou elevar ainda mais a fasquia que havia acabado de colocar já bastante alta. Este álbum veio a chamar-se “Passion and Warfare”, um clássico incontornável para os apreciadores do género, e é homenageado nesta digressão, que comemora os 25 anos do seu lançamento.

Num estilo onde muitas vezes a excentricidade é um requisito fundamental (necessário mas não suficiente) e que roça o kitsch, Steve Vai deu azo à sua irreverência natural. Para além do carácter inovador no plano musical e que o distingue, os restantes aspectos relacionados com o espectáculo em si, que vão da forma como toca as músicas – a ajeitar o cabelo enquanto só uma mão toca a guitarra – até à roupa – as calças e as camisas de gosto duvidoso – até à guitarra de assinatura da Ibanez com as florzinhas por todo o lado do corpo e no braço, tudo isto contribui para o fazer sobressair.
(Publicado originalmente aqui)


É interessante também relembrar as suas incursões pelo universo de Frank Zappa e a passagem pelos Whitesnake (uma fase Maria-Vai-com-as-outras?), assim como no filme Crossroads, onde protagoniza um duelo de guitarra fabuloso com um Ralph Macchio, o do Karate Kid, que também aqui tem um mestre. Macchio, a tocar slide numa Telecaster, vence o duelo – é curioso ver Vai a fingir perdê-lo, quase merecia um óscar – tocando o 5º capriccio de Paganini, mais ou menos como aplica o pontapé tirado na cartola no final do Karate Kid (o duelo pode ser visto aqui).


Confissão: estes três últimos parágrafos de texto foram escritos antes de ter saído de casa para o concerto. Mas acabaram por, sem saber ler nem escrever, espelhar o que lá se passou. Voltemos ao Grande Auditório do CCB onde, de repente, as luzes se apagaram, o público gritou e na tela no fundo do palco foi projectada uma cena do Crossroads. – “This is it, this is the place”, “the deal is still on”. Logo a seguir entram em cena os músicos, Vai com um capacete de lasers que parecem sair-lhe dos olhos e outro feixe que brota da extremidade do braço da guitarra. A banda acompanha o início do duelo final do filme.

Seguem-se alguns dos grandes clássicos, o “Crying Machine” e um excelente “Tender Surrender”. Vai interrompe a música a seguir ao seu solo, fazendo um esgar de cansado, e esperando arrancar uma reacção do público. E conseguiu: a sala ergueu-se e foi a primeira ovação de pé da noite que o deixou visivelmente surpreendido. Seguiu-se uma sucessão de curtas frases na guitarra com o público a reproduzir as notas pelo meio até finalmente ser retomada a melodia da música para o final.

“You guys are in a very good mood tonight, aren’t you?”, diz-nos da primeira vez que se vira para o microfone. E em seguida diz-nos o que nos espera, nada mais do que o “Passion and Warfare” tocado na íntegra, de uma ponta à outra. Para arrancar, logo de seguida, surge a imagem de um concerto em que toca o primeiro tema, “Liberty”, juntamente com Brian May.

E esta é uma constante para o que aí vem. Não só são acompanhados pelos telediscos de alguns temas como, a meio do “Answers”, Vai anuncia o nome do seu amigo Joe Satriani, que surge no ecran a felicitá-lo e desafia-lo para uma jam. O que se segue são chases de oito compassos, primeiro tocados por Satriani, e outros tantos por Vai em resposta, durante algumas trocas, até passar a 4 compassos e terminar com ambos a tocar em uníssono. A piada volta a acontecer mais à frente no “The audience is listening”, desta vez com John Petrucci a participar no despique guitarrístico. Vai toca nos limites físicos da guitarra, este concerto deve ser um pesadelo de logística para o roadie, que tem de ter uma guitarra pronta para tocar a praticamente todos os temas.

Um destaque para o fantástico final do “For the love of God”, um exemplo da forma incrível como usa a barra de vibrato da guitarra, por vezes substituindo a palhetada da mão direita. Acabou a tocar com a língua nas cordas, numa espécie de french kiss que voltou a tirar o público da cadeira. Vai ficou novamente surpreendido, olhou para o baterista como que a perguntar “já viste isto?”; o baterista encolheu os ombros como quem diz “Vai lá, Vai”.

Uma surpresa foi deixada para o final, a seguir à exposição integral do “Passion and Warfare”. Após um tema de homenagem a Frank Zappa, Steve Vai chamou dois voluntários ao palco e explicou que o iriam ajudar a compor uma música. À Inês (“my darling”) pediu que indicasse a drum beat que o baterista iria tocar. Ao José pediu a linha de baixo. A Inês foi novamente solicitada, desta vez para indicar o que a guitarra ritmo iria fazer. Finalmente, ao José coube ir cantando ao microfone o que Steve Vai iria tocar na guitarra. E assim, em tempo real, Vai foi dobrando a voz do voluntário José, que não se inibiu de trautear frases que exigiram perícia do herói da guitarra.

O concerto termina com a sonoridade exótica do “Bangkok” no encore, depois de mais de duas horas e meia absolutamente electrizantes. O público levanta-se (outra ovação) e alguns vão até ao palco, ficam a trocar fist bumps com o guitarrista, que tira selfies com os voluntários que foram convidados a assistir ao resto do concerto no palco.


Retomo o título. Embora saibamos donde vem, não sabemos para onde Steve Vai. Ou até onde Vai. Nem o próprio deverá saber, Vai na volta. Mas, para onde quer que seja, deverá ser mais uma viagem marcante ao mundo da guitarrada, um autêntico Vai-e-vem de notas arrojadas. Ai Vai Vai.

domingo, 24 de julho de 2016

sábado, 23 de julho de 2016

Mário Laginha e a ópera italiana em destaque na 8ª edição do Festival ao Largo

(Publicado originalmente aqui)

Ao longo de três semanas, de 8 a 30 de Julho, a 8ª edição do Festival ao Largo traz grandes orquestras e nomes sonantes do canto lírico em 15 espectáculos ao largo livre, em frente à fachada do Teatro Nacional de São Carlos. Espectáculos para os quais – nunca é demais frisar – não é necessário bilhete, o festival é gratuito.

O festival tem uma programação musical bastante variada e, embora se centre na música, também contempla o teatro e a dança. Nos dias 13 e 14, os alunos finalistas da licenciatura em Teatro da Escola Superior de Teatro e Cinema (em co-produção com o Teatro Municipal São Luiz e o Teatro Nacional D. Maria II) apresentaram o clássico de Shakespeare “Sonho de uma noite de verão”, sob a direcção artística de Cristina Carvalhal, comemorando assim o 400º aniversário da morte do dramaturgo britânico. Já à dança caberão as honras de encerramento do festival, com a Companhia Nacional de Bailado a subir ao palco no final da semana que vem, nos dias 28, 29 e 30, apresentando, respectivamente, “Serenade” de George Balanchine, “Herman Schmerman” de William Forsythe e os “5 Tangos” de Hans van Manen.

Relativamente à programação musical, este ano incluiu obras do pianista e compositor português Mário Laginha e, pela primeira vez, uma ópera.

O músico português esteve no arranque do festival na sexta-feira e sábado, dias 8 e 9. A Orquestra Sinfónica Portuguesa, sob a direcção de Cesário Costa, interpretou “Mãos na pedra, olhos no céu”, composto por Mário Laginha para o filme de João Botelho sobre a cidade do Porto, “As mãos e as pedras”, que estreou na aberta do Porto Capital Europeia da Cultura em 2001.

Na quinta-feira, dia 21, Mário Laginha juntou-se à Orquestra da Gulbenkian, dirigida por Pedro Neves, para interpretar duas composições. A primeira composição foi o concerto para piano e orquestra do pianista português, obra estreada em 2009 no 31º Festival Internacional de Música do Algarve. O concerto tem três andamentos e, segundo o próprio, está repleto não só de influências do mundo da música clássica – Mozart, Beethoven, Prokofiev, Ravel, etc. –, mas também doutras esferas musicais do pianista, com o jazz à cabeça – a certa altura, ia jurar que ouvi Gershwin –, mas também música étnica, na torrente de ritmos diferentes que Laginha imprime às teclas do piano. Da mistura destas influências, algo que o pianista refere ser um tarefa difícil e arriscada, nasceu este concerto. A segunda dispensa qualquer tipo de apresentação: a quinta sinfonia de Beethoven, sobejamente conhecida, cujo motivo inicial – pa-pa-pa-paaan, pã pã pã pãããn – é seguramente dos trechos musicais mais emblemáticos.

A fechar a programação de música do festival, a Orquestra Sinfónica Portuguesa e o Coro do Teatro Nacional de São Carlos interpretaram a ópera Cavalleria Rusticana, do compositor italiano Pietro Mascagni, sob a direcção musical de Domenico Longo, na sexta-feira e no sábado, dias 22 e 23. Nos principais papéis: a soprano Mary Elisabeth Williams dá corpo e voz a Santuzza, a jovem camponesa; o tenor Lorenzo Decaro a Turiddu, o jovem aldeão que acaba de regressar do serviço militar; a sua mãe, (Mamma) Lucia é interpretada pela mezzo-soprano Laryssa Savchenko; o barítono Luís Rodrigues é Alfio, um carreteiro; finalmente, a mezzo-soprano Maria Luísa de Freitas é Lola, a mulher de Alfio. Uma excelente interpretação da ópera, considerada a primeira do “verismo”, o movimento realista italiano, onde se destacou a fantástica performance de Mary Elisabeth Williams, que arrancou a maior ovação da noite da multidão que encheu a praça.

Para os mais distraídos: ainda é possível ver 3 espectáculos de bailado. Já agora, não sei se já vos disse, mas é à borla.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Não podemos apanhar o autocarro muito tarde na sexta-feira porque começa o sabbath e o serviço é interrompido.

A distância é pequena e a viagem curta, chegamos a Tel Aviv a meio da tarde. O hotel fica a poucos metros da longa praia ao longo da qual a cidade se estende. Tiramos o que resta da tarde para também estendermos as costas na areia e ignorar, como os locais, as placas com a indicação de proibição de nadar nas zonas não concessionadas, assim como as fitas vermelho e branco, que parecem delimitar o local de um crime.

Recebemos a notícia de que tinha havido um atentado, com vítimas mortais, nesta cidade uns dias antes, enquanto ainda estávamos no calor do deserto. Pouco depois houve um outro atentado numa discoteca nos Estados Unidos, com um saldo muito pior, e Tel Aviv de imediato saiu do radar da comunicação social.

É claro que as questões relacionadas com a segurança são incontornáveis em Israel mas a constante presença sente-se menos do que seria expectável – talvez por isso, porque é constante, transforma-se numa rotina que tende para a invisibilidade. Há, de facto, um aparato policial impressionante em zonas críticas como a cidade velha de Jerusalém e vêem-se bandos de miúdos fardados que deverão estar a fazer o serviço militar, que também é obrigatório para o sexo feminino. Mas talvez a única situação que me causou alguma estranheza é a dos civis que se passeiam com metralhadoras à tiracolo pela rua – militares de folga, voluntários? De resto, os procedimentos de segurança do aeroporto são exaustivos (eufemismo): convém ir com bastante antecedência sob pena de perder o voo com o tempo que a verificação do interior dos volumes levados para a cabine consome. E, a certa altura, passar num detector de metais para entrar num centro comercial ou numa estação deixa de ser notório.

Mas é só isso. Contrariamente àquela que pode ser a percepção generalizada, Israel é um país relativamente calmo, pacato e agradável para turistas. Os locais podem não ser a maior simpatia do mundo o que, novamente, me faz lembrar os russos, a propósito da sua proverbial hospitalidade.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Aventuramo-nos pela primeira vez nas ruas da cidade velha ao final da tarde.

Descemos a rua de David, por entre as portas de metal das lojas, navegando pela multidão. À direita surge a indicação Western Wall. Descemos as escadas, andamos ao longo da varanda com vista para a praça do Muro das Lamentações com a cúpula dourada da mesquita ao fundo. Um grupo de maioritariamente jovens faz duas rodas enormes: uma de homens e outra de mulheres. Cantam em conjunto, de braços abertos nas costas dos parceiros do lado. Passamos pela segurança e pelo detector de metais para entrar na praça. Paramos um pouco a observar junto de um biombo que nos separa do muro onde se encontram maioritariamente judeus ortodoxos.
À saída da praça, passamos pelos túneis e desembocamos no acesso à sinagoga, um arco e, do outro lado, um tipo a controlar a entrada dentro de uma casinhota. Pergunta-me
Where are you from?
Respondo, não entende de início, assim que percebe estende o braço, indicando o caminho
Welcome
À saída tentamos continuar a descer a rua de David e somos interpelados por um dos polícias
Where are you from?
Respondo-lhe e ele acrescenta
This area is for muslims only.
Ficamos até ao cair da noite, as portas fechadas e o esvaziamento das ruelas dão um carácter sombrio e soturno ao passeio.

Na manhã do dia seguinte, sexta-feira, o aparato policial perto do Muro das Lamentações é ainda mais impressionante. Filas de carros estacionados e carrinhas que despejam batalhões de colete à prova de bala e mão direita na pistola guardada à frente, na região abdominal, para mais fácil acesso. Quando começa a aproximar-se o meio-dia, enchentes de muçulmanos descem a rua de David, a caminho da zona que nos é vedada e onde está a mesquita. Palmilhamos o bairro arménio, subimos a via Dolorosa da Igreja da Flagelação até ao Santo Sepulcro.

Ao levantar as malas do hotel, trocamos umas palavras com a recepcionista e da nossa impressão favorável que levamos de Jerusalém. Responde de imediato
That’s because you don’t have to stay here for sabbath.
Saímos para apanhar o eléctrico que sobe a longa rua de Jaffa até à estação de autocarros.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Uma homenagem ao rock feita pelo jazz dos jardins do Instituto Goethe.

(Publicado originalmente aqui)


O jardim do Instituto Goethe abriu as portas para receber mais uma edição do Jazz im Goethe Garten (JiGG para os amigos), anfitrião de um total de oito concertos, nos finais de tarde de terça a sexta-feira. A programação – cuja responsabilidade é de Rui Neves, que também dirige o “Jazz em Agosto” da Fundação Calouste Gulbenkian – trouxe, como é hábito, as novas tendências e a vanguarda do jazz moderno e contemporâneo. Este ano, a organização privilegiou os trios – formação mais representada – mas também duos de pianos e quartetos, com músicos de diversas nacionalidades: Espanha, Suíça, Áustria, França, Itália, Luxemburgo, assim como instrumentistas alemães e portugueses.


Sem nenhum desprimor para as demais bandas do festival, aqui fica um destaque a dois projectos que, de formas distintas, prestaram uma interessante homenagem a dois “power trio” emblemáticos da música rock.
O primeiro foi o projeto austríaco, embora composto por músicos de diferentes nacionalidades, Hang ‘Em High (o mesmo nome do western protagonizado por Clint Eastwood), que tocou na sexta-feira, 8 de Julho. A formação é composta pelo polaco Bond, no baixo de duas cordas, o suíço Lucien Dubuis no saxofone tenor, clarinete baixo e contrabaixo e o (este sim) austríaco Alfred Vogel, na bateria e percussões.

Esta formação devia ter sido dica suficiente para perceber o que aí vinha (pista: não adicionei o pormenor das duas cordas do baixo por acaso). Bastaram as primeiras notas, os primeiros acordes e riffs saídos daquele baixo, para de imediato ter recuado no tempo e ser levado até 1999, ano em que, enquanto esperava por um concerto de Paradise Lost, assisti, por acaso, a um support act de uma banda que se chamava Morphine. Não conhecia rigorosamente nada deles; aliás, nem sequer sabia que existiam. É certo que o set longo que tocaram – que se prolongou ainda mais pelos discursos em português quebrado do vocalista e baixista (de duas cordas!) Mark Sandman – fez com que, a certa altura, desejasse que terminassem e deixassem os cabeça-de-cartaz subir ao palco. Até porque a noite já ia longa, antes deles, já tinham tocado os Blasted Mechanism e os Wonderland.

Mas gravei na minha memória o nome daqueles três tipos, com uma formação e um som totalmente diferente do que até então tinha ouvido (e depois de então). Devo confessar que para isso também contribuiu, como costuma ser nestas coisas, o facto de, poucos dias depois, ter recebido uma chamada de um dos amigos que viu comigo esse concerto, para dizer que tinha acabado de saber que Sandman tinha morrido em palco, perto de Roma, vítima de um ataque cardíaco.

Os Hang ‘em high são uma banda instrumental, não têm um vocalista como os Morphine tinham. Nas suas composições, este papel acaba por ser ocupado pelo espaço adicional para o saxofonista e pela improvisação. Mas o som é bastante similar: arrastado, algo sombrio, fruto dos riffs saturados e impregnados que saem do baixo, e do qual o tema “Edges”, disponível no site oficial da banda, é um excelente exemplo. É o “low rock”, o termo que Sandman usava para descrever a música da sua banda, aludindo a um estilo de rock que, de forma quase herética à altura, põe (orgulhosamente?) as duas cordas do baixo no pedestal outrora ocupado pela guitarra. O resultado é um trio ancorado no som bastante particular daquele baixo, com afinações alternativas, tocado com slide, donde saem as tónicas, que às vezes se juntam a quintas de power chords pujantes e carregados de intenção e intensidade. É certo que o saxofone não é barítono como o de Dana Colley, mas o clarinete baixo e contrabaixo contribuem igualmente para essa ambiência algo soturna, como se introduzissem uma voz de registo grave a um total de outras vozes já de si particularmente graves. O termo “low” tem essa ambivalência: tanto pode ser alusivo ao registo musical como, no limite, a um determinado estado de espírito.


Na terça-feira 12 de julho foi a vez dos franceses Journal Intime, o segundo projecto que aqui destaco. Trata-se de um trio de sopros com Sylvain Bardiau no trompete, Frédéric Gastard no saxofone baixo e Matthias Mahler no trombone. Recorrendo tanto à língua materna como a um inglês cravejado do sotaque da língua materna, Gastard faz o aviso à navegação de que o concerto será uma “viagem ao coração da música de Jimi Hendrix.”.

Ao contrário dos Hang ‘em high, os Journal Intime fazem versões das músicas do guitarrista legendário. O primeiro tema põe de imediato as cartas em cima da mesa. Após uma introdução dissonante ao estio “free jazz”, rebentam as primeiras notas do “Foxy Lady” e, pouco depois, dou por mim a cantar entredentes, baixinho “You know you're a cute little heartbreaker”. O trompetista fica em evidência no tema seguinte, “Hey baby”, tocando a solo de uma forma que parece que fala e faz um discurso, com inflexões de voz. Seguem-se outros temas marcantes do guitarrista americano, como “Come on let the good times roll”, “Angel” e o original de Bob Dylan “All along the watchtower”.

Os dois momentos mais altos do final de tarde vieram na última parte do espectáculo. Um deles foi numa excelente versão que desconstrói o “If 6 was 9”, iniciando-se com o trompetista e o saxofonista a produzirem sons apenas com os bocais dos respectivos instrumentos, e só a meio da música os voltam a encaixar novamente e a tocar de forma regular. Para último tema do set, os músicos reservaram o tema “Lover man”, uma versão de Hendrix do original de Muddy Waters com o título de “Rock me baby”. A introdução é tocada a solo pelo saxofonista que produz duas linhas melódicas em simultâneo, uma espécie de arpejo na linha de baixo, enquanto os harmónicos de três notas fugidias se ouvem na linha do topo.

O saldo final é bastante positivo. O JiGG é um evento recheado de projectos interessantes e, tendo em conta os preços dos bilhetes, apresenta uma relação qualidade-preço invulgarmente boa, quando comparada com outras alternativas para ver e ouvir música do mesmo género.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

UK

«Thanks to the new show, I had to visit an immigration office in Chicago to extend my work visa (...). It was, of course, meant to be a purely routine matter: I filled the form in carefully and presented it to the immigration officer, a guy in his mid-fifties. The ensuing dialogue went as follows:
‘Are you British?’
‘Yes.’
‘What's this then?’
‘Oh! That's my citizenship.’
‘You said you were British.’
‘... I'm sorry?’
‘Are you Ukrainian?’
‘...Ukrainian?’
‘It says here "UK".’
‘Oh! No, that's the United Kingdom.’
‘The what?’
‘The United Kingdom. England, Scotland, Wales and-‘
‘UK is Ukraine.’
‘Um. I don't think so. You know when they have debates in the Security Council, the British ambassador has a little sign in front of him which says "United Kingdom". UK...’
‘UK is Ukraine.’
‘I promise you, I did international law at Cambridge, and-‘
‘Are you Ukrainian?’
‘...No, but-‘
‘Change it please. There's a law against giving incorrect information.’»

So anyway, John Cleese

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Ignoro as constantes missivas (exortações) para me explicar.

Às vezes até é mais do que isso. É justificar, o que estabelece à partida o meu erro. E, por isso, não tenho outro remédio senão evitar, porque não entendo que esteja, por princípio, errado. Não invalida que, com as constantes investidas, não dê por mim, mais do que aos outros, a explicar-me a mim próprio. E isso não tem justificação.

terça-feira, 5 de julho de 2016

Mañana

Incomoda-me ter emails por ler no email pessoal mas acumulo centenas no endereço profissional.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Um pouco depois das 8h15 surge uma senhora (sim, russa) para nos buscar.

A distância até à fronteira é muito pequena. Saímos da carrinha e ela ajuda-nos com os trâmites para sair de Israel. Depois de tratar da papelada (leia-se, pagar) diz-nos que temos de avançar até à saída, caminhar até à Jordânia e, do outro lado, dirigir-nos a um tipo chamado Hassan que tratará dos vistos de entrada.

Há um conjunto significativo de turistas nas mesmas condições que nós, a maioria a cargo de outro tipo que os trata como meninos da escola. Pouco depois, surge um segundo tipo, bastante musculado, lenço vermelho e branco na cabeça e óculos escuros. Este sim é o nosso guia, que nos levará na viagem de cerca de duas longas horas, com um ar condicionado não chega para as 11 pessoas dentro da carrinha.

Depois de uma curta paragem antes de começar a descer o vale, chegamos ao centro de visitantes. Daqui começamos a descer um caminho largo. Vamos parando, o guia vai explicando a história do local e apontando a nossa atenção para as grutas, os nichos, as construções nas rochas. Oitocentos metros até chegar ao início do Sik, o desfiladeiro que termina na construção principal do complexo. É aqui que começo a evocar o Indiana Jones, serpenteando por entre a estrutura impressionante, em alguns locais bastante estreita. Pouco mais de um quilómetro e, ao fundo, por entre o intervalo das paredes altas começa a vislumbrar-se o Treasury. Avançamos até sair do espaço delimitado pelas rochas e à nossa frente está uma estrutura ampla com o edifício mesmo de frente. Apetece entrar para ir procurar o cálice de madeira mas infelizmente não é possível visitar o interior.

Não temos muito tempo e todos querem ir até ao Convento, uma segunda estrutura similar ao Treasury (embora não tão impressionante) que fica a cerca de 3 quilómetros e a umas centenas de degraus de altura. Dada a restrição horária, o guia aconselha-nos a fazer negócio com os miúdos que alugam burros: 15 dólares mais gorjeta e em meia hora os pobres bichos levam-nos até aos limites do complexo, incluindo os degraus.

O tempo muda. O céu fica cinzento, o vento avança pelo túnel criado pelas rochas, levanta areia. Parece uma tempestade como nos filmes, sinto-me uma espécie de Lawrence da Arábia com uma única preocupação: fechar a máquina e pô-la no estojo para evitar que areia entre no mecanismo e danifique alguma coisa. Recusamos os burros à descida, as razias que fazem ao precipício já são suficientemente assustadoras à subida. Fazemos o trajecto inverso e estamos de regresso à hora combinada.