terça-feira, 28 de junho de 2016

Estrada 90

A Estrada 90 segue ao longo da fronteira com a Jordânia, ladeia o Mar Morto, atravessa o deserto do Negev e só termina na pequena faixa do território de Israel banhada pelo Mar Vermelho. Numa estreita faixa de terra, Egipto, Israel, Jordânia e Arábia Saudita estão apenas a algumas dezenas de quilómetros, avistam-se à vista desarmada.
Só havia uma razão para aqui vir: a facilidade com que se cruza a fronteira para a Jordânia (mediante o singelo pagamento de mais de $100 entre a saída de Israel e a entrada na Jordânia (e um carimbo)) e – possivelmente consequentemente – a grande oferta de tours para ir a Petra. Pedimos ao receptionista (russo, adivinharam) que nos marque a viagem para o dia seguinte. Diz-nos que é uma excelente ideia, que ele próprio já a fez e gostou muito. Infelizmente não sabe se haverá um grupo para amanhã. Sofro um pouco enquanto pega no telefone para verificar.
You are lucky
Diz-nos após desligar. Às 8h15 no lobby.
Bring a hat, sunscreen and lots of water.
Passeamos à noite à beira do mar, uma espécie de paredão repleto de bares, restaurantes e lojas de souvernirs. Tiro uma fotografia a um termómetro que marca 38 graus às 20h21. E há russos por todo o lado. Mas com uma diferença. A idade média diminuiu consideravelmente. Este já não é o destino das dores de cruzes e problemas cutâneos. É mais uma espécie de Algarve. Com detectores de metais à porta dos centros comerciais com ar condicionado.

domingo, 26 de junho de 2016

O funcionário do hotel pede-nos desculpa

It’s been a long day
Está visivelmente cansado.
Only two more hours to go
Diz-nos com quanto contentamento consegue reunir. Enquanto trata das nossas coisas, fala com outra funcionária em russo. Estranho de início. Pouco depois entranho e percebo. O hotel está cheio de russos, há inúmeras indicações em cirílico, possivelmente atestando a origem russa de uma proporção da população.
Mudamos de roupa rápido, o dia está a acabar e estamos mortos por experimentar a afamada água do mar morto (piada não intencional). A praia privada do hotel já fechou, resta-nos a pública ou comum que não tem espreguiçadeiras nem nadador-salvador
At your own risk
Tinha-nos dito o moço cansado, fluente em russo, como se fosse fisicamente possível alguém afogar-se naquela água quente e que constantemente nos impele para a superfície, como se nos expulsasse, como se fossemos uns visitantes indesejados. É difícil manter os pés para baixo, no fundo mas, ainda assim, sinalizações com
Danger of drowing (em hebraico, árabe, inglês e, adivinharam, russo).
As restantes indicações advertem para não mergulhar e não deixar a água entrar em contacto com os olhos, não ingerir.
(Este que vos escreve – e apesar das precauções – não evitou as duas e confirma que arde imenso nos lábios e olhos.)
Olhando em redor, sinto que estamos deslocados em faixa etária: somos dos mais novos. O mar morto é um destino para quem sofre de maleitas, para quem procura o alívio daquela água salgada com propriedades medicinais, da lama e dos spas com jacuzzi e massagens. É divertida a sensação de ser uma boia mas não poder mergulhar na água é uma limitação que não se espera de um mar. Ou é para quem precisa verdadeiramente de papas e descanso, ou então rapidamente se esgota na piada do primeiro mergulho. No limite, vale mais pela paisagem de cortar a respiração.
Rumamos mais a sul.

Making a killing

Óptimo artigo da New Yorker sobre a evolução do negócio de armas nos EUA aqui.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Innuendo

Não é só no português coloquial que a palavra "pacote" é utilizada com aplicações anatómicas. Mas é interessante apreciar o diferente significado em português e inglês.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Scan

A primeira vez que o disse, disse-o sem se aperceber do que tinha dito. Como se fosse uma qualquer banalidade. Nem a alteração de expressão da pessoa à sua frente lhe levantou qualquer tipo de suspeita. Para além de não ter sabido perceber o que tinha dito, de não ter sabido interpretar-se, também não soube interpretar aquilo que outros interpretaram. Só mais tarde se lhe tornou claro, depois de ter parado para se ouvir. Olhou-se no espelho, quis perceber donde aquelas palavras tinham vindo. E só então se reconheceu.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Deu-nos um envelope, uma folha e uma caneta.

Pediu-nos para escrever o nosso nome e morada no lugar do destinatário. E depois pediu-nos para escrevermos a nós próprios. Prometeu-nos que iríamos receber aquela carta, sem aviso, algures no intervalo de um ano. A ideia era interessante e gira - tornou-se menos quando percebi que era decalcada, como quase tudo, de um livro. Rapidamente escrevi umas linhas que me pareceram adequadas, até inspiradas, e fiquei à espera que os outros acabassem, dobrados sobre o chão que usámos como mesa.

Passados cinco, seis meses, aí estava o envelope na caixa do correio. Inesperado. Mas a reacção já era esperada. No decurso desses cinco, seis meses, lembrei-me do exercício e da carta cuja chegada seria iminente. E lembrei-me, em traços gerais, do que tinha escrito. Percebi que não ia gostar. Demasiado banal, pouco pensado e reflectido. Claro que um aviso prévio de que nos iria ser pedido que escrevêssemos naquela folha branca tiraria o sentido ao exercício. O elemento da surpresa é fundamental. Mas, sobretudo, fez-me perceber que não me percebia. Ou não me percebi naquele momento. E que teria sido (é?) útil perder (?) algum tempo a pensar no que escrever-me.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Agro

Só tinha uma coisa em vista para a reforma que se avizinhava: dedicar-se ao terreno de tamanho assinalável que tinha nas traseiras da casa. E então dizia que ia ter uma reforma agrária.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Terceiro dia

A dúvida já tinha sido suscitada. Depois tinha desaparecido por uns tempos, supostamente resolvida. Mas, contra todas as expectativas, regressou. E então dizia que era uma dúvida ressuscitada.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Gula

Venho da secção da padaria e, passando naquelas prateleiras e escaparates feitas para os incautos, não resisto - possivelmente pela frustração de não ter ficado inteiramente convencido com a escolha de pão - e pego nuns biscoitos de aspecto caseiro. De amêndoa, aos coraçõezinhos. Quando me preparo para me afastar, reparo numa senhora com idade para ser minha avó que me olha, de baixo para cima, e, sem parar a marcha lenta com o carrinho nas mãos, com uma cara de certo desdém, diz

Os gulosos descobrem-se
(ou vêem-se? Já não sei precisar, qualquer coisa assim)

E eu rio-me, enquanto lhe digo qualquer coisa como "sim, nós existimos", ao que ela não liga minimamente, continua a andar com o carrinho. E fico a pensar que, para quem só muito de vez em quando compra doces e similares, aquela senhora atribuiu-me uma fama cujo proveito me escapa em larga medida.

Olho para o conteúdo do meu carrinho e, de repente, apercebo-me que, embora uma compra de pequena monta, não é propriamente o conjunto de itens mais saudável e recomendável que alguma vez comprei. Na altura de pagar, olho para as caixas e fico contente por, numa das que tem menos pessoas a fazer fila, está uma funcionária particularmente obesa a registar compras. Opto imediatamente por essa: dificilmente poderá censurar as minhas escolhas alimentares.