sábado, 19 de março de 2022

domingo, 13 de março de 2022

Quem te avisa

Um passo adicional face à moda de colocar uma estimativa do tempo de leitura de artigos ou notícias seria ter uma indicação semelhante na capa dos livros. Ou mesmo um daqueles alarmes dos fornos, que disparam irritantemente quando o tempo previsto de assadura chegou ao fim. 

 

sábado, 12 de março de 2022

Cancelar

A notícia dá conta de universidade milanesa que terá considerado cancelar um curso sobre Dostoiévski, assim como de pedidos para remover uma estátua do romancista em Florença. Tolstoi deve estar a dar voltas na campa por não se terem lembrado dele. 

quarta-feira, 9 de março de 2022

O email do Outlook

O email que mais recebo, nos dias que correm, é enviado pelo próprio Outlook, que tira uns minutos do seu tempo para me alertar, (demasiado) amiúde, para o inquietante facto de que a minha caixa de entrada está prestes a rebentar pelas costuras. Parece contra-intuitivo: se há coisa que a minha caixa de entrada menos precisa é de emails adicionais. Mesmo que o objectivo desses emails adicionais seja exactamente esse: avisar-me que a minha caixa de entrada não necessita de emails adicionais. Estou seriamente a pensar classificar os emails do Outlook como spam.    

segunda-feira, 7 de março de 2022

Quatro por quatro

O padre termina a alocução fazendo o gesto da cruz e a mim ocorreu-me que estava a marcar um compasso quaternário.  

quarta-feira, 2 de março de 2022

Primatas como nós

«Sei que os meus pais não eram apenas aquilo que as minhas memórias de criança garantem que foram. Mas tive de chegar aos quarenta e um anos, tendo sido protagonista do medo, do falhanço, da imprudência, do enfado, do desgosto, da injustiça, do egoísmo, do remorso e da vergonha, para perceber que, embora sublimados na minha infância, eles seriam afinal como eu, como todos os outros: primatas de ânimo inconstante e satisfação temporária, julgando-se especiais de manhã e uma merda à noite; tão paralisados pela dúvida como errados nas certezas; irascíveis por estarem com fome ou sono; mesquinhos no exercício do poder, transportadores de arrependimentos, culpas e mentiras; trabalhando em algo de que não gostavam, ficando na cama numa manhã escura de janeiro; em pânico com a doença, cansados, com ciúmes, suscetíveis ao mau agoiro do boletim meteorológico; dispostos a morrer pelos filhos num dia, mas a atirá-los pela janela no outro.»

Filho da mãe, Hugo Gonçalves

terça-feira, 1 de março de 2022

Reflexologia

À medida que sol vai avançando e começa a incidir directamente nas janelas - o que, nesta altura do ano, acontece mais para meio da manhã - a luz reflecte em algumas superfícies e projecta-se nas paredes e no tecto da sala.  

É por esta altura que Beatriz começa a ficar intrigada. De olhos esbugalhados, fixados naquelas manchas que certamente não compreende, levanta-se e dirigi-se até elas, para as ver de mais perto. Qual astrónomo que varre a abóbada celeste em busca de estrelas, Beatriz perscruta o tecto polvilhado de rasgões luminosos. A espaços, olha para nós e solta pequenos miados, como que partilhando o mistério connosco. 

Sobe para cima da mesa, para cima dos móveis, para ficar mais perto, possivelmente desejando ter um telescópio que auxiliasse a observação. Quando os objectos estão nas paredes, opta por uma observação ainda mais directa: apoia-se nas patas de trás e estica-se para lhes tocar com as patas dianteiras. 

É certo que, por vezes, a culpa é nossa: sentados no sofá e armados em safados, pegamos no telemóvel naquela posição e inclinação óptimas para gerar um reflexo. Que é ainda mais convidativo que os outros estáticos, uma vez que este tem o condão de se mexer.

De inicio dava por mim a tentar explicar-lhe "Beatriz, é só um reflexo sua maluquinha". Com o tempo, fui percebendo que o conceito de "só um reflexo" não existe. Ironia do destino: agora, quando chega aquela hora, também eu viro a cabeça para cima e aprecio aqueles rasgões luminosos, projectados no bocado de edifício que nos separa dos vizinhos de cima.